Vanitas vanitatum et omnia vanitas
2013/VI/13
O texto que se segue tem por título uma conhecida frase do Eclesiastes.
Salomão, filho de David, diz: "vaidade
das vaidades, tudo é vaidade" (1,2). Esta tese, a de que todas as
paixões se resumem à vaidade, é partilhada por Matias Aires na obra Reflexões sobre a vaidade dos homens ou
discursos moraes sobre os effeitos da vaidade (1752).
Na dedicatória, Matias Aires oferece o opúsculo a D. José I e diz que
"é o mesmo que oferecer em um
pequeno livro aquilo de que o mundo todo se compõe". A vaidade assume
o centro de uma estrutura moral e o próprio criador do texto declara, no
prólogo, que "eu que disse mal das
vaidades vim a cair na de Autor". Segundo o mesmo, "vivemos com
vaidade, e com vaidade morremos" (2), pois "a vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror
da sepultura" (1). A vaidade anima a vida e decora a morte. O cadáver,
a caminho da putrefacção, envolve-se na mesma vaidade de quando era um corpo
vivo e vistoso. Adorna-se o morto, vestindo-o de soberba, glorifica-se o seu
derradeiro habitáculo de madeira nobre e metal rico e compõe-se de valioso
mármore o local que apenas a morte guarda. Se esta é a vaidade na morte, então
quão universal será a vaidade em vida?
Matias Aires, influenciado por La Rochefoucauld, utiliza uma estrutura
textual de pequenos pensamentos ou reflexões, compostos numa lógica aforística
ou fragmentária. Esta forma de apresentar a palavra é que mais se distancia da
vaidade criativa, ou da ostentação textual, pois o pequeno texto, o fragmento,
proclama uma limitação epistemológica, uma síntese daquilo que se conhece em
oposição ao vasto desconhecido.
O autor diz que "a nossa
vaidade é a que nos faz ser insuportável a vaidade dos mais" (6). A
visão exacerbada do eu contamina qualquer projecção identitária do outro. Os
demais ameaçam a nossa vaidade, daí que Matias Aires escreva que "a vaidade parece-se muito com o
amor-próprio, se é que não é o mesmo; e se são paixões diversas, sempre é
certo, que ou a vaidade procede do amor-próprio, ou este é efeito da vaidade"
(10). O amor-próprio e a vaidade potenciam toda e qualquer expressão do humano,
formam a sua relação com o mundo e com os outros.
"Com todas as paixões se une a
vaidade; a muitas serve de origem principal; nasce com todas elas, e é a
última, acaba" (7). O carácter universal da vaidade é o que lhe
permite ser a origem e o fim, a causa e o efeito de todas as paixões. Logo, a
vaidade é a suprema forma de afirmação, de conquista de um lugar no mundo, não
um espaço oculto, mas sim um local de fama e de reconhecimento. "A vaidade faz, que não há cousa, que não
sacrifiquemos ao desejo de parecer entendidos, ainda que seja à custa de um
vício, ou de uma culpa" (16). "Fazemos vaidade de errar com subtileza, e temos pejo de acertar
rusticamente" (15). É preferível parecer-se sábio na ribalta do que
sê-lo no anonimato. Tudo se torna um véu de aparência, uma dissimulação
apadrinhada pela vaidade.
"Para donde quer, que vamos, a
vaidade nos leva" (20), daí que "os homens mais vaidosos são os mais próprios para a sociedade"
(24). O mundo assume uma preferência, mesmo que disfarçada, camuflada de falsa
virtude, por esse empreendedorismo do eu. Os vaidosos dedicam-se a essa
empreitada de firmar o eu no mundo dos outros como se essa fosse a sua condição
natural. "A vaidade nos faz parecer,
que merecemos tudo, por isso empreendemos, e conseguimos às vezes; a falta de
vaidade nos faz parecer, que não merecemos nada, por isso nem buscamos, nem
pedimos" (23). Desengane-se com pensa que a acção que tende para uma
realização pessoal está assente em nobres ideias, porque na verdade ela não
passa de vaidade, de busca incessante por uma glória do eu. A vaidade também
não enfraquece com os anos, muda de forma, mais o seu vigor permanece. Nessa
altura, nos anos da velhice, a vaidade torna-se numa ostentação das glórias
passadas, numa afirmação inabalável de que se conquistou um estatuto, uma
posição de relevo.
"Se a melancolia nos desterra
para a solidão do ermo, não deixa de ir connosco a vaidade; e então somos como
a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre
leva no peito atravessada a seta: nunca podemos fugir de nós: para donde quer
que vamos, imos com os nossos mesmos desvarios, se bem que as vaidades do ermo
são vaidades inocentes" (37). Aquele que julga que ao distanciar-se de
um mundo de vaidades foge da própria vaidade, engana-se, uma vez que a leva
consigo, pois ela participa da sua própria natureza. É uma vaidade inocente,
mas não deixa de ser vaidade.
"O que chamamos inveja, não é
senão vaidade. Continuamente acusamos a injustiça da fortuna, e a consideramos
ainda mais cega do que o amor, na repartição das felicidades. Desejamos o que
os outros possuem, porque nos parece, que tudo o que os outros têm, nós o
merecíamos melhor; por isso olhamos com desgosto para as cousas alheias, por
nos parecer, que deviam ser nossas: que é isto senão vaidade?" (43). A
inveja é uma vaidade afectada, diminuída na sua nobre consciência de si. O
êxito do outro torna-se, na ausência do nosso sucesso, um inimigo. Gera-se uma
sensação de afronta e de despeito e então o vaidoso constrangido vitupera a
glória alheia como se ela fosse um ataque à sua própria dignidade.
"A vaidade é de todo o mundo,
de todo o tempo, de todas as profissões, e de todos os estados" (64).
Cai no erro quem pensar que rejeita a vaidade, que a sua acção ou profissão,
que o seu modo de pensar ou de agir se envolvem de virtude e que são tudo menos
vaidades. A mais nobre das opiniões ou dos raciocínios podem não ter a vaidade
no conteúdo, mas vão tê-la na forma, pois toda a expressão, seja fruto da razão
ou do sentimento, visa a aceitação e esta não é mais do que vaidade. Desta
forma, "o aplauso é o ídolo da
vaidade" (68). Esta paixão universal visa o reconhecimento, a
atribuição de valor aos nossos passos. A vaidade procura a estima e rejeita o
desprezo.
"A vaidade é engenhosa em
glorificar tudo o que vem de nós, e em reprovar tudo que vem dos outros"
(121). A vaidade teme os feitos dos outros. Matias Aires diz que "na república das letras não há menos vaidade
que na república das armas" (120). No que compete ao pensamento e à
palavra, "o ter ou não ter razão, é
verdadeiramente a guerra em que se passam os nossos dias, e os nossos anos"
(121). Para essa assunção da verdade do eu, o mais é o melhor. O autor de um
tratado assume ter a razão face ao autor de um ensaio que visa a mesma
temática. Diz outro que um extenso romance é preferível à síntese de um conto.
Ou que um fragmento não iguala a torrente de páginas escritas. Ou ainda que uma
ode de cento e onze versos é melhor do que um haiku. A vaidade criativa
precisa de uma qualquer forma de ostentação seja pela quantidade de texto, pelo
estilo da palavra ou pela pomba da sua apresentação. "Quantas injustiças não terá feito a vaidade de fazer justiça"
(134)
Em suma, "vanitas vanitatum et
omnia vanitas". Tudo é vaidade. Leia-se as Reflexões sobre a Vaidade dos Homens de Matias Aires e
compreenda-se a universalidade da vaidade.
Bibliografia:
·
Bíblia de Jerusalém - Nova Edição, Revista e
Ampliada. São Paulo: Paulos, 2002.
· Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. Prefácio de António Pedro
Mesquita. Fixação do texto e notas de Violeta Crespo Figueiredo e Jacinto do
Prado Coelho. Lisboa: INCM, 2ª Edição - Revista, 2005
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