Reflexões Astrológicas
Retrogradação de Marte
Lisboa, 23h33min, 06/12/2024
Marte
Decanato: Saturno
Termos: Vénus
Monomoiria: Marte
Marte
inicia a sua retrogradação no signo de Leão, no grau 7 (6º10΄), estando
Sagitário a marcar a hora para o tema de Lisboa e, deste modo, na XII, no lugar
do Mau Destino ou Mau Espírito (κακός δαίμων), no decanato de Saturno, nos termos de Vénus e na monomoiria de Marte. A retrogradação
começa assim de noite, acima do horizonte, com o Sol e a Lua sob a Terra. O movimento
retrógrado de Marte estender-se-á até 24 de Fevereiro de 2025. Marte vai recuar
até ao grau 18 (17º00΄) de Caranguejo, ou seja, no decanato e termos de
Mercúrio e na monomoiria de Marte.
Regressará depois a Leão a 18 de Abril, onde vai permanecer até 17 de Junho.
Como já se analisou noutros
momentos, neste ano na retrogradação de Saturno e, em 2023, nas de Vénus e
Júpiter, o fenómeno astrológico de retrogradação é como uma semente. Uma vez
que o movimento retrógrado é visualmente aparente, o termo fenómeno pode parecer
estranho, todavia, é um fenómeno astrológico porque é percepcionado não pelo
movimento natural, mas sim pelo movimento como sentido primordial, como
experiência. Ora, neste caso, o movimento retrógrado retoma o valor de
potência, de regresso a si ou de negação de acção, daí que, na Antiguidade,
tenha uma significação nefasta. Doroteu dizia, por exemplo, que os planetas
retrógrados causam dificuldade e infortúnio (Carmen
Astrologicum,
I, 6).
Marco
Aurélio afirma que “Todo o ser, de certo
modo, é a semente daquilo que há-de sair dele. Tu naturalmente estás a pensar
que sementes é só o que se deita à terra ou num ventre: mas isso é ter noções
vulgaríssimas!” (Pensamentos IV, 36, trad. J. Maia. Lisboa:
Relógio D’Água, 1995). Ora a
retrogradação, pelo seu retorno da acção ao potencial, tem este valor de
semente. No entanto, devemos também considerar, seguindo as lições da
mitologia, que a semente pertence ao domínio de Hades/Plutão. A σπέρμα grega,
devido ao seu lugar sob a terra, lembra-nos que, para ser vida, a semente tem
de morrer. Esta condição atribui naturalmente certas qualidades agrícolas a
Plutão. Nesta retrogradação, Plutão em Aquário opõe-se a Marte em Leão, os
regentes de Escorpião, tradicional e moderno, fazem colidir os seus olhares.
Este aspecto vem ressalvar essa qualidade de morte que é própria da semente. A
astrologia, quando assolada por um espírito positivista de querer ser ciência,
tende a rejeitar a sabedoria astrológica, esquecendo-se que esta é uma súmula
de saber mitológico, filosófico e científico.
Na
mitologia grega, para a arte da guerra, Ares concedia a força e Atena a
estratégia, daí que seja comum, sobretudo na expressão artística, imagens de
Atena a derrotar Ares. A inteligência domina a força. Esta derrota de
Ares/Marte é também uma leitura da retrogradação do planeta vermelho, quando a
força se vê diminuída. É uma vitória do pensamento sobre a paixão, da reflexão
sobre a acção. Naturalmente é uma situação difícil para Marte. Para os gregos,
o deus da guerra não era invencível. Na Guerra de Tróia, Diomedes ataca o deus
e consegue feri-lo com uma lança, mostrando assim uma mestria em combate que só
ficava atrás da de Aquiles. Já em Roma, a situação é um pouco diferente. Marte representa um tipo de virtude, associado à coragem, à
masculinidade e à excelência. O seu sagrado animal de Marte é o lobo,
associado, como é bem sabido, ao mito fundador da cidade.
Seguindo
também uma linha de sentido astro-mitológica, podemos associar também a
retrogradação de Marte ao mito de Adónis. Neste mito, e contrariando a tradição
clássica, são as divindades femininas que se enamoram de um humano, de um jovem
nascido de uma relação incestuosa. Adónis era filho de Mirra e de seu pai Ciniras,
o rei de Pafos do Chipre. Afrodite punira a jovem com um desejo impróprio e,
ciente da sua desmedida, fugiu errante, acabando por clamar aos deuses o fim
das suas penas. Estes acederam ao pedido da suplicante e transformaram-na numa
árvore perfumada, a árvore da mirra. Dez meses lunares depois, a árvore foi
cortada e, do seu interior, saiu uma criança. Afrodite, enternecida com a
beleza do pequeno rapaz, entregou-o a Perséfone para o criar. Este cresceu e a
deusa do submundo recusou-se a devolvê-lo. Zeus teve de mediar o conflito entre
Afrodite e Perséfone, entre o amor e a morte. Decidiu que Adónis passaria
quatro meses com Afrodite, outros quatro com Perséfone e os restantes seria ele
a decidir com quem os passaria, o que nos remete para os ciclos da natureza.
O
amor de Afrodite pelo jovem era intenso e apaixonado. No bosque onde se
encontravam, a deusa alertou Adónis do perigo de caçar os animais selvagens.
Ora Nono de Panópolis, entre os séculos IV e V EC, contou-nos o seguinte: “Ela [Afrodite tendo dado à luz uma filha
a Adónis] virou seus olhos redondos e
deleitados em todas as direções; apenas os javalis não observava ela nos seus
prazeres, por ser uma profetisa sabia que, sob a forma de javali, Ares com
presas irregulares e cuspindo veneno mortal, numa loucura de ciúme, estava
destinado a tecer o destino de Adónis.” (Dionisíaca 42. 1, tradução do grego é da minha responsabilidade). Existem várias versões para o culpado da morte de Adónis, todavia, esta é nos
interessa, pois coloca Ares (Marte) no mito. Ares é aqui a personificação do
ciúme e da violência a partir desse ciúme, dessa suposta ofensa.
Nestas
significações astro-mitológicas, a força de Marte não se traduz nem na agressão
bélica de Carneiro, nem na vingança calculada de Escorpião. Encontramos neste
mito uma outra natureza. O ciúme, uma raiva interiorizada, muito semelhante à
inveja, potencia um acto, uma violência que nasce desta dinâmica interior. O
processo de retrogradação de Marte encontra o seu sentido no mito da morte de
Adónis pelas presas de Ares, transformado num javali enraivecido.
Consequentemente, esta retrogradação apresenta uma expressão da
irracionalidade, dos vícios da desmedida, do eu que se ofende para além do seu
limite.
Séneca
diz-nos que “Nem tudo quanto nos atinge nos fere; é a nossa vida de luxo que nos
torna propensos à ira, a ponto de a mínima contrariedade gerar uma explosão de
cólera. Criamos em nós próprios uma soberba de reis. E os reis, por seu lado,
esquecendo-se do próprio poder e da fraqueza dos outros, enfurecem-se e
lançam-se como feras, como se tivessem recebido alguma ofensa, quando a
grandeza da própria fortuna os mantém ao abrigo total das ofensas. Eles bem
sabem que é assim, só que buscam todas as oportunidades para fazer mal.
Sentir-se lesados é para eles um meio de poderem lesar os outros.” (Ep.47.19-20; Cartas a Lucílio, 2ª ed,, trad. J. A.
Segurado e Campos. Lisboa, 2004: Fundação Calouste Gulbenkian). Devemos interrogarmo-nos que tipo de natureza tem aquele
que ao “sentir-se lesado” assume nessa impressão uma permissão para lesar os
outros? E não será essa impressão o resultado de uma falsa representação? A
ofensa pode não estar assim naquele que nos ofende ou que julgamos que nos
ofendeu, mas sim no foco que colocámos na sensação de nos sentirmos ofendidos.
A
“soberba de reis” é uma bela
definição da retrogradação de Marte pelo signo de Leão, pois vai revelar uma
interiorização distorcida do princípio da força. A ilusão do poder, seja pela
inveja e pelo ciúme, seja pela falsidade e pela corrupção da vontade, vai
exemplificar os estados individuais e colectivos deste fenómeno. Quando retornar
a Caranguejo, por estar na sua queda, Marte vai trazer a realidade do falso
herói e as vicissitudes das falsas noções de origem e do poder que se exerce
sobre essa ilusão. As representações colectivas histórico-escatológicas em
torno de povos eleitos e de terras prometidas conduzem necessariamente às
piores atrocidades. Existe uma agressão quando a origem de uns é considerada
melhor, com mais direitos, à de outros e esse tipo de agressão insere-se neste
retrogradação e pode encontrar neste período uma renovada pulsão ideológica.
O
facto do movimento retrógrado, no tema de Lisboa, iniciar-se na XII
consubstancia este peso, esta gravidade. Se regressarmos à ideia da
retrogradação como semente, temos também de considerar que nem tudo o que
germina é sinal de sucesso, de abundância. Existem sementes que criam ervas
daninhas que se enraízam e envolvem boas culturas, mas também bons espíritos. A
semente nociva tende a brotar junto da boa semente. Desta forma, quando os
antigos astrológicos alertavam para a acção deletéria do movimento retrógrado,
contemplavam também esta realidade. Associada à “soberba de reis” de Séneca, esta posição enraíza comportamentos narcísicos
e egocêntricos, centrados numa falsa divindade, κακός δαίμων, e
assombrados pela visão distorcida que tem de si mesmo.
A
análise da actual retrogradação de Marte terá necessariamente de observar a
oposição entre este e Plutão em Aquário. É fundamental para um entendimento
astrológico esclarecido não nos deixarmos cair num certo deslumbramento
incoerente da passagem de Plutão por este signo. Se os antigos conhecessem a
existência de Plutão e pensassem no seu deus Hades/Plutão ou nos elementos mitológicos
da constelação de Aquário, por certo não iriam ver as interpretações efabuladas
que têm sido proferidas. Plutão em Aquário é um vulcão em erupção cuja nuvem
piroclástica se estende pelo céu e se espalha pelo ar. Ora é esta realidade que
se vai unir em oposição ao Marte retrógrado em Leão. Noutros tempos, poderíamos
falar da capitulação de líderes face a situações extremas. Hoje, para a
astrologia mundana, podemos falar de crises nas lideranças, em especial, nas
lideranças democráticas face às lideranças extremistas. Não serão tempos fáceis
para a humanidade.
No
início da retrogradação, o Sol está em trígono, onde dois signos de Fogo,
Sagitário e Leão, tentam unir as forças, e segundo a sabedoria antiga Marte é o
único que não se deixa queimar pelos raios solares. No entanto, o Sol em
Sagitário encontra-se sob os raios quadrangulares de Saturno em Peixes, o
grande maléfico do tema, e sob o olhar diametral de Júpiter retrógrado, o
benéfico que por via do segmento de luz se encontra diminuído. Por outro lado,
o luminar que rege o segmento dominante, a Lua, encontra-se em Aquário, com
Plutão, adensando o sentido anteriormente explanado. Neste tema, a luz não
colabora com a retrogradação.
O
trígono de Mercúrio retrógrado em Sagitário a Marte retrógrado em Leão merece
uma análise distinta, pois este aspecto é uma síntese dos tempos, uma que
transmite as dificuldades de comunicação, a violência da palavra e a
manipulação do discursos. Por ser uma união triangular, esta relação traduz
naturalmente o peso da necessidade, do destino, revelando que existem sentidos
que colocam o carácter diante do destino. Nestes momentos, ou se segue ou se
resiste, pois o desafio não é mudar os acontecimentos, mas mudar aquele que
caminha sobre a sua linha. Por outro lado, quando a desmedida toma a palavra e
a acção, o silêncio trilha a própria via. A paz interior face ao tumulto não se
inquieta, permanece constante na certeza da sua harmonia. O facto de Mercúrio
estar como o Sol em oposição a Júpiter e em quadratura a Saturno e Neptuno vai
adensar esta mensagem. De uma outra forma, a quadratura de Marte retrógrado em
Leão a Úrano retrógrado em Touro firma uma corrupção das estruturas de poder e de
comunicação a partir do seu interior.
No tema do início da retrogradação, a relação entre
benéficos e maléficos é particularmente significativa. Por o segmento de luz
ser o da Lua, Marte tem a sua força maléfica diminuída, embora o lugar que fez
morada contrarie esta contracção. Desta forma, por força do segmento, Saturno
torna-se o grande maléfico. No entanto, de acordo com os aspectos ptolemaicos,
entre os maléficos não existe, de momento, qualquer relação. Quando Marte, por
força do movimento retrógrado, regressar a Caranguejo, aí sim estes dois
unir-se-ão triangularmente. Este será um momento em que lição de Petosíris (fragm.38 Riess)
de que nem todas as quadraturas são más, nem todos os trígonos são bons
trilhará o seu sentido.
Na relação com os benéficos, Marte não se une a Vénus, o
benéfico do seu segmento de luz. Porém, quando a 7 de Dezembro Vénus ingressar
em Aquário, opor-se-á a Marte retrógrado em Leão. Até 3 de Janeiro de 2025, as
pulsões primordiais do desejo (Vénus) e da força (Marte) vão colidir, todavia,
face a retrogradação, a força estará num estado inactivo e com uma natureza
potencial. A 6 de Janeiro, Marte regressa a Caranguejo e une-se a Vénus que já
se encontra em Peixes. Será um período em que o destino irá favorecer esta
interacção entre o desejo e a força e, apesar da acção da força estar
comprometida, poderá favorecer o carácter essencial dos lugares que ocupam e
daqueles que com eles se relacionam. Para os temas nocturnos, a retrogradação
de Marte pode até ser a semente de bênçãos futuras.
Vénus, ainda em Capricórnio, no tema do início da retrogradação, une-se em sextil a Saturno em Peixes. Já este último une-se quadrangularmente a Júpiter retrógrado em Gémeos que, por sua vez, se une em sextil a Marte retrógrado em Leão. Este é um bom exemplo de que como a realidade se faz de pesos e contrapesos. Naturalmente, a tensão entre o espaço (Júpiter) e tempo (Saturno) condiciona a liberdade de acção das matrizes primordiais do desejo (Vénus) e da força (Marte). Porém, o dom da vida que é, em certa medida, a dádiva da humanidade é o de encontrar caminho, mas este não surge aqui de uma qualquer acção que tenda a contrariar os acontecimentos e a causalidade natural, surge sim da acção sobre si mesmo, da possibilidade de transformar em nós a realidade interna. Essa é a verdadeira liberdade. Se olharmos ao redor e pensarmos que o planeta está no limite e as expressões da humanidade em ruptura, torna-se fácil concluir que a via do bem é a única que brilha do interior para exterior, podendo assim levar a luz ao mundo.
Face a esta conjuntura astrológica, a actual retrogradação de Marte não vai suspender os desafios, vai pelo contrário enraizar as suas sementes, sobretudo porque, como se viu, ela se relaciona com outras forças que colocam em causa, em suspensão, a natureza daquilo que é criado. Do interior para exterior, a força de Marte traz consigo o gérmen de uma outra destruição, uma que pode corromper o carácter. Devemos portanto cuidar daquilo que criamos em nós, pois, para o bem e para o mal, permanecerá connosco. Em suma, este é um tempo de domar as pulsões e transformar a irracionalidade em sabedoria.