Tu que és Sombra e Sombra vês
2016/III/30
Caravaggio, David com a Cabeça de Golias, 1609-10. Roma: Galleria Borghese. |
Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, expandiu o
alcance do conceito de mal, fez com que descesse da sua dimensão extrema e
contaminasse o ser humano comum. Um ser quase sem sentido como Eichmann não se
revela imbuído de uma perfídia psicopatológica, mas sim de um espírito
meramente executante que não pensa, nem questiona, e que, no entanto, estende o
mal a uma banalidade quase universal. A prática inconsciente do mal pode
parecer uma mera expressão de ignorância, porém atinge uma dimensão mais
profunda, a da aceitação do mal como estado natural das coisas. O extermínio e
a anulação do ser humano nos campos de concentração parecem uma forma
normalizada e rectificada das coisas, tudo porque foram determinados pelo
líder. A confiança cega de que o foi decidido é o melhor é o veículo
adequado para a banalização do mal.
Pensamos no mal como se descendo uma pirâmide. No topo, encontramos a
génese do mal que se alastra para a parte mais larga da pirâmide, ou seja,
partimos da personificação do mal, centrada numa pessoa ou aspecto, e descemos
para o vulgo que se deixa corromper. Todavia, o movimento não é apenas
descendente, nem centralizado. É a base da pirâmide que constrói e legitima o
mal. Não existe senhor, sem súbditos. Os
cultos de personalidade nascem de uma predisposição para o mal, têm a sua
génese numa incompletude massificada que verte essa falta numa corrupção do
mito do herói. Na ausência de uma fé profunda, que anularia esse desejo de
participar na acção de um homem comum, marcado pela Providência, constrói-se
uma imagem de salvação e redenção. Todas as esperanças de um povo estão agora
nas mãos de um ser banal tornado deidade. Esta é uma pura construção do mal.
Quando o sentido da humanidade enfraquece e quando Deus desvanece na
aparência dominical, aparecem deuses do momento que alentam os povos e que os
elevam numa grandeza que não é sua. Os países que viveram em ditadura
revelam uma predisposição, quase natural, para os cultos de personalidade. Em
Portugal, essa fraqueza de espírito é deveras evidente. A nossa pequenez aspira
sempre a tornar os feitos individuais numa glória colectiva. Veja-se o exemplo
de Cristiano Ronaldo. O melhor jogador do mundo é português, logo Portugal é
espectacular. Agora, criou-se, sobretudo na comunicação social, a ideia de um
presidente que vai salvar os portugueses da bruma da sua própria história. Um
homem providencial que anula as fragilidades humanas, as vicissitudes de um
povo e que o transporta, aos ombros, para uma vida melhor.
Criámos uma constelação de deuses que não passam de homens comuns. Do
alto do pedestal, estes ídolos caiem na sua própria humanidade. São os estão em
baixo que operam esta construção do mal. Procura-se consolo numa imagem idílica
de um ser perfeito. Será possível ver apenas um génio num Leonardo Da Vinci com
resto de sopa na barba, como descreve o biógrafo? Ou ver o arauto da educação
num Rousseau que abonou os cinco filhos? Ou um Marx que não pagava o salário à
empregada e desprezava os trabalhadores? Um Gandhi, imagem da paz, que batia na
mulher e tentava a castidade, dormindo com jovens, em especial, com a sobrinha?
Shelley era um mau pagador que pedia dinheiro emprestado e nunca pagava.
Tolstoi era um egocêntrico que se aproveitava sexual e emocionalmente dos
outros. Leia-se Intelectuais de
Paul Johnson e compreende-se a falácia do culto da personalidade. Em Portugal,
encontramos também, por exemplo, um D. Pedro, imagem do amor, amante de D.
Inês, que nutria afecto obsessivo pelo seu escudeiro, ou um Salazar, homem
rectíssimo para muitos, com um fetiche por mulheres casadas.
O problema de prestar culto a seres humanos é o de serem humanos,
falíveis, com debilidades morais e vivências na sombra. A aura quebra-se
perante a sua própria humanidade, mas, mais uma vez, o erro está nos seus fiéis
e é neste aspecto que o mal avança. Só vêem a luz quando o que existe é sombra.
O valor deveria repousar na obra e não no indivíduo. Hannah Arendt, numa carta
a Gershom Scholem, diz que o mal não tem uma dimensão demoníaca, mas espalha-se
como um fungo. Os cultos de personalidade têm essa dimensão de fungo, pois
espalham-se e fixam-se nos ideais, sem ideias, do comum dos mortais.
No Purgatório, Dante coloca Estácio diante de Virgílio e quando o primeiro
tenta abraçá-lo, o segundo diz: "Frate,
non far, ché tu se' ombra e ombra vedi". A noção de que somos sombra e
sombras vemos é o que se pode reter. A luz do Bem tende esconder-se e a pessoa
boa não pode ser objecto de culto. Veja-se a obra, ver-se-á o homem. O
egocentrismo de uma sociedade é uma expressão do mal. A sabedoria pede a
contenção e o silêncio, e essa é imagem do Bem.
Bibliografia:
Arendt, Hannah, Eichmann
em Jerusalém. Coimbra: Tenacitas, 2003.
Dante Alighieri, A
Divina Comédia. Venda Nova: Bertrand Editora, 2000.
Johnson, Paul, Intelectuais. Lisboa: Guerra e Paz,
2008.
Neiman, Susan, O
Mal no Pensamento Moderno. Lisboa: Gradiva, 2005