A Actualidade de O Jantar do Bispo: Reler
Sophia
2013/IV/04
O conto de Sophia de Mello Breyner Andersen, presente nos Contos Exemplares, "O
Jantar do Bispo" é de uma enorme actualidade. A realidade que Sophia
passou para as suas palavras servia para o país de ontem como serve para o de
hoje. O imperativo moral é o mesmo.
"O Jantar do Bispo" começa com uma descrição da
casa e das terras que a rodeiam. A frase "quanto mais pobre é a terra,
mais rico é o vinho" (45) é a síntese inaugural deste texto.
A dicotomia entre a riqueza e a pobreza é desenvolvida ao longo do conto.
O Dono da Casa precisa da intervenção do Bispo, necessita de um favor, "uma
semente de guerra" (46) minou a sua autoridade.O jovem padre, o novo
pároco de Varzim contraria a pobreza que se instalara no seu rebanho e, para o
Dono da Casa, "a sua presença ia crescendo como uma acusação que o
acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o tocava"
(46). O Dono da Casa pensava que o padre se imiscuiu nos seus assuntos e ia
para além da sua competência e, ao confrontá-lo com sua posição, o pároco
respondeu que "da nossa própria fome
(...) podemos dizer que é um
problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral"
(47). Esta máxima é de tal forma importante que devia ser cravada na cartilha
da vida de qualquer pessoa, sobretudo daqueles que tem uma responsabilidade
política ou social. "A fome dos outros é um problema moral"
fixe-se e use-se como arma da Justiça.
Para o Dono da Casa, "as suas conveniências, as suas
comodidades, as usas vantagens e os seus interesses pareciam-lhe direitos éticos
absolutos, princípios sagrados da paz e da ordem" (47), daí que a
postura do padre fosse considerada uma afronta, no entanto, o padre era pobre,
o que dificultava qualquer acusação que lhe pretendesse fazer. O pároco era um
homem insignificante, não era um homem à altura daquele grande homem, habituado
a mandar, consagrado pelos ramos de uma família antiga a exercer o seu poder.
Porém, ao averiguar a linhagem do seu inimigo, concluiu que "o padre
era parente afastado duns seus parentes afastados e que a fome escrita na sua
cara não era hereditária, mas sim voluntária" (48). A sua pobreza era
um mandamento da sua identidade. O Dono da Casa via nesta opção do padre uma
forma de traição, um desafio chocante à ordem estabelecida, ao normal progresso
de uma vida abençoada por uma boa família.
O padre dava tudo o que tinha. Os seus bens, os frutos da sua
lavra eram uma dádiva aos outros. O Dono da Casa pensava que isso "era
desordem, anormalidade, bolchevismo" (49). Como poderia alguém sair do
seu conforto, abandonar o que era seu para dar, para dar aos pobres? Os sermões
do padre provocavam-lhe enfado, desprezo, não se revia naquela "esperança
num mundo melhor" (49). A sua caridade era da esmola regular. Não era
uma palavra viva.
Os retratos de família, ostentados na casa antiga,
consagravam o poder aquela gente, dignificavam o seu rosto no tempo. Era uma
tradição que promovia a autoridade. Porém, um certo familiar separava-se
daquela aura familiar. "O primo Pedro tinha a sensibilidade certa como
a sensibilidade dum artista, tinha a inteligência dum inventor e o espírito de
justiça dum revolucionário. Mas em toda a sua vida nada fizera" (53),
o que o tornara num pária, num falhado, logo não podia estar naquele jantar,
naquela cerimónia que tinha tão alto propósito. "Só tinha convidado
gente discreta e segura, com cujo apoio, concordância e silêncio podia contar
inteiramente" (54). Quase podíamos pensar que estava a constituir um
governo, a elaborar a formação do seu conselho de ministros. O seu objectivo
era "explicar claramente que o padre novo era um perigo para a ordem
social" (55) e o melhor seria mudá-lo de paróquia. Acreditava que, com
as palavras certas - ou o cheque adequado -, o Bispo aceitaria a sua
pretensão.
O Bispo também tinha um pedido a fazer ao Dono da Casa.
"Pedir é uma coisa difícil. E tanto mais difícil quanto mais aquele a
quem se pede é rico e poderoso. Mas a quem havia de pedir senão aos ricos e
poderosos?" (55) O tecto da igreja mais bela da sua diocese estava
cair. Noutros tempos, os homens poderosos mandavam erguer igrejas para salvar
as suas almas e curar as maleitas dos seus corpos, porém os tempos mudaram. Os
remédios de hoje deixavam em ruínas as igrejas de ontem. Sophia escreve, neste
contexto, uma frase que é de uma actualidade imensa: "a doença já não
igual para pobres e ricos" (56). O dinheiro compra a saúde.
O Bispo acreditava que o Dono da Casa lhe daria o dinheiro
necessário para restaurar a igreja, a sua vaidade, a sua fome de fama ia
enobrecer a sua virtude. Assim, o Bispo, embora contrariado, seguiu o rumo do
repasto. O acaso de uma derrapagem trouxe um outro convidado à mesa. O Homem
Importantíssimo juntou-se aos tribunos. É curioso, mas de facto é assim que
surgem estes homens. Os homens importantíssimos aparecem sempre devido a uma
derrapagem. Este homem ilustre tornou-se o centro das atenções. Bem-falante e
afável, criou logo empatia, como aliás o fazem os homens importantes. É então
que começa uma amena discussão. O Homem Importante começa por dizer que "este
tempo (...) é um tempo de crise: estamos dominados pelo materialismo. Até nos
campos, onde só devia reinar a espiritualidade ouvimos constantemente falar de
problemas materiais", e continua, afirmando que "o nosso tempo
só vê problemas materiais. É um tempo de revolta. Os homens não querem aceitar.
Paciência e resignação são palavras que perderam o sentido" (60).
Depois, passa para os padres que se vêem imbuídos desse revolta materialista, e
a caridade não serve de justificação, pois em nome desse mandamento, que,
segundo o Homem Importante, pode ser interpretado de diversas formas, é
possível que se caia no comunismo, veja-se os padres operários.
"O Dono da Casa gostava de estar à mesa com visitas.
Nada lhe agradava mais do que dar de comer a quem não tem fome" (63) Parecia
aqueles que, nas sombras do poder, se alimentam e, por excesso de fartura, já
correm o risco de indigestão. O jantar termina e o Dono da Casa conduz o Homem
Importante e Bispo para outra sala. Tinham negócios para fechar. O Dono da Casa
dá cinquenta contos e o Homem Importante outros cinquenta. A igreja em ruínas
podia agora ter um telhado. E o Padre de Varzim seria forçado a um outro
caminho, afastado para uma outra aldeia. Claro está que "ninguém falou
em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes" (64). É assim
que os altos dignitários fazem negócios.
A segunda parte deste conto começa com a cozinheira Gertrudes
a abrir a porta da cozinha a um homem. "Não o conhecia, mas nem era
preciso perguntar-lhe quem era: era mais um pobre." (67) As criadas
tinham ordem para lhe dar de comer, para o levar à mesa dos pobres. O homem
queria falar com o Dono da Casa, todavia a cozinheira quis demovê-lo com duas
afirmações lapidares: primeiro, "a esmola é ao sábado" (68) e
naquele dia não era sábado; e segundo, "as coisas importantes são para
as pessoas importantes" (69), logo como poderia o pobre dizer que era
importante. O homem insistia, ao que o criado respondeu que um senhor não podia
deixar as suas visitas para vir falar com um mendigo, disse "tenha paciência,
não pode ser. O mundo é como é. Temos que ter paciência" (70). É como
aqueles senhores, titulares de cargos públicos, que nunca podem falar, nem
ouvir as pessoas comuns, as suas conversas são reservadas a pessoas
importantes.
A casa estava envolta numa tempestade, chuva, relâmpagos e
trovões atemorizavam as criadas. O céu falava. A escuridão fechou o espaço
e uma criança assustada, filho do Dono da Casa, acabou por ficar em frente do
homem que lhe disse vinha da parte do Padre de Varzim. A criança foi contar ao
pai, que não quis descer do alto da sala até aos confins da cozinha. João
contou ao homem a decisão do Dono da Casa. Os dois despediram-se e o homem
saiu. O mendigo não tocara na comida tão caridosamente disposta na mesa dos
pobres, e, à semelhança de Deus, rejeitou as ofertas de Caim.
A terceira e última parte do conto traz o maravilhoso a esta
narrativa. O Bispo deixa a casa do Dono da Casa e entra no seu automóvel. No
meio do caminho, encontrou um mendigo na estrada e o Bispo decidiu levá-lo.
Perguntou-lhe para onde ia, a que o mendigo respondeu que ia para casa do Padre
de Varzim. Olhou para o homem, coberto de lama, e viu que "nas
mãos havia um gesto de paciência. Um gesto muito antigo de paciência. E de
repente pareceu ao velho Bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento,
toda a solidão, o olhavam de frente no rosto daquele homem. Coisa difícil de
olhar de frente" (80). O Bispo disse que a distância era longa e
estrada estava cheia de lama, sugerindo que passasse a noite na sua casa. O
homem não respondeu e quando o Bispo ergueu o rosto, o mendigo desaparecera.
Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. Por fim, o Bispo
iluminou-se com o reconhecimento, sabia agora quem era aquele homem. As
palavras, abafadas pelo silêncio, concluíram: "aquilo que eu fiz
tem de ser desfeito" (81). O Bispo voltou à Casa Grande, afim de falar
com o Dono da Casa e de lhe comunicar que queria desfazer o negócio fechado.
Deus viera testemunhar em favor de um homem injustamente acusado e o Bispo foi
voz desse testemunho. O Dono da Casa duvidou, não quis acreditar, "estava
fechado na certeza dos seus direitos" (82).
O Bispo apresentou, em síntese, o que concluíra: "o
padre de Varzim não foi só acusado. Foi também vendido. Vendido pelo telhado de
uma igreja. Da Igreja da Senhora da Esperança" (83). O Dono da Casa
respondeu, dizendo que "não houve nenhuma venda. Dei uma esmola e fiz,
de acordo com a minha consciência, um pedido" (83). O Bispo "estava
a trair as regras do jogo" (83) e Dono da Casa não suportava aquela
atitude e apenas refreou a sua cólera porque a sua reputação e fama eram mais
importantes. Depois, decidiu chamar o outro contribuinte, o Homem Importante.
Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. O Homem Importante desaparecera
e com ele o seu cheque. Todos procuravam o papel, mas nada, não havia sinal do
cheque. A criada Júlia conclui que "talvez o diabo o tenha levado"
(86). A cozinheira Gertrudes perguntou quem era esse homem e o criado respondeu
que "parece que entrou o demónio nesta casa" (86).
O conto termina com frase de Gertrudes: "nos tempos
que correm (...) já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se
quem puder" (87). Pega num pano e limpa as pegadas do mendigo.
Sophia de Mello Breyner Andresen oferece-nos, pela letra da
sua palavra, um conto que viaja no tempo, entra no Estado Novo, passa no Pós 25
de Abril e repousa nos dias de hoje, quando os pobres perdem a esperança e os
ricos asseguram os seus "direitos". "O Jantar do Bispo" é
um texto actual. Leia-se.
"O Jantar do Bispo", pp. 43-87.
Contos Exemplares
Figueirinhas
2006
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