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segunda-feira, 8 de março de 2021

8 de Março: o Assassinato de Hipátia (Dia Internacional da Mulher)

Pormenor da Escola de Atenas de Rafael


Hipátia de Alexandria



"Hipátia de Alexandria tornou-se mártir de uma era que se eclipsava. A filha de Téon, editor dos Elementos de Euclides e comentador do Almagesto de Ptolomeu, era de tal forma reverenciada pela sua sabedoria que era conhecida como a Filósofa. Hipátia terá nascido entre o ano 360 e 370 da nossa era. Estudou com Plutarco de Atenas, fundador de uma academia platónica e, com pouco mais de vinte anos, já leccionava, em Alexandria, na Academia do Museum. As suas áreas dilectas do saber eram a Filosofia, sobretudo os sistemas de Platão e Plotino, e a Astronomia e a Matemática, focando o seu olhar, em especial, no Cânone Astronómico de Ptolomeu, nas Cónicas de Apolónio de Pérgamo e na Aritmética de Diofanto. A correspondência do Bispo Sinésio de Cirene, discípulo de Hipátia, revela a admiração que tinha pela sua mestra. Sinésio envia-lhe sete cartas, numa delas, expressou o seu afecto chamando-lhe mãe, irmã e mestra e diz, mais do que uma vez, que deseja que ela estivesse bem, o que é relevante porque a carta é de 413, quando a situação já era tensa. Hipátia será brutalmente assassinada no dia 8 de Março de 415."

"Os principais testemunhos sobre a sua morte são a História Eclesiástica de Sócrates Escolástico, ou Sócrates de Constantinopla, e a Vida de Isidoro de Damáscio. Segundo Sócrates, Hipátia tinha audiências frequentes com Orestes, um antigo discípulo seu que se tornara perfeito de Alexandria e do Egipto, e, face ao litígio entre este e Cirilo, Patriarca de Alexandria, tornou-se o alvo de todas as críticas. Os cristãos afectos a Cirilo viam nela um problema. Sócrates diz que alguns, mais destemidos e com excesso de zelo e chefiados por um homem chamado Pedro, esperaram que ela voltasse a casa, puxaram-na para fora da sua carruagem e levaram-na para uma igreja chamada Caesareum. Na igreja, despiram-na e assassinaram-na com pedaços de cerâmica. Desmembraram-na, esfolaram-na e, de seguida, levaram os restos mortais para um lugar denominado Cínaron e queimaram-nos. Para o Escolástico, este acto não trouxe nenhuma desonra, opprobium, à pessoa de Cirilo, nem à comunidade cristã de Alexandria, pois os massacres estão muito distantes do espírito do cristianismo. O sucessor historiográfico de Eusébio de Cesareia sentiu necessidade de ilibar Cirilo. Damáscio, o último dos neoplatónicos, que foi perseguido pelo Imperador Justiniano, também escreveu sobre Hipátia e, embora tenha nascido alguns anos após a morte da Filósofa, o seu testemunho é tão válido como Sócrates Escolástico, pois este, apesar de contemporâneo de Hipátia, não estava em Alexandria à data dos acontecimentos. Damáscio diz que Cirilo era um bispo da facção contrária, depreende-se portanto contrária à de Hipátia. Ora esta afirmação pode levar-nos a admitir que Hipátia ou se teria tornado cristã, mas não seguidora do credo de Niceia, ou teria simpatia por outra facção, leia-se, muito provavelmente, uma próxima da visão de Orígenes ou de Nestório. Segundo Damáscio, Cirilo estaria a passar junto da casa de Hipátia, onde viu homens a entrar e a sair, cavalos a chegar ao local e a deixá-lo, um grande tumulto de gente. Cirilo perguntou o que se passava e recebeu como resposta que tinham vindo todos ouvir as palavras de Hipátia. Cirilo ficou com a sua alma amarga, devido à inveja que sentiu, e decidiu engendrar um plano para matar a Filósofa. Desta forma, um grupo de homens raivosos, desprezíveis em todos os sentidos, sem temerem o olhar dos deuses, nem a vingança dos homens, assassinaram a sábia. Damáscio acrescentou ainda que o imperador procurou justiça, mas foi apaziguado por um suborno de um amigo. "


Excertos de um livro inédito da minha autoria.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Karl Popper e o Paradoxo da Tolerância


 Popper, Karl, 2013 (1994), The Open Society and Its Enemies, New One-Volume, volume I, Notes to Seven, note 4 (p. 581).


Less well known is the paradox of tolerance: unlimited tolerance must lead to the disappearance of tolerance. If we extend unlimited tolerance even to those who are intolerant, if we are not prepared to defend a tolerant society against the onslaught of the intolerant, then the tolerant will be destroyed, and tolerance with them.—In this formulation, I do not imply, for instance, that we should always suppress the utterance of intolerant philosophies; as long as we can counter them by rational argument and keep them in check by public opinion, suppression would certainly be most unwise. But we should claim the right to suppress them if necessary even by force; for it may easily turn out that they are not prepared to meet us on the level of rational argument, but begin by denouncing all argument; they may forbid their followers to listen to rational argument, because it is deceptive, and teach them to answer arguments by the use of their fi sts or pistols. We should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant. We should claim that any movement preaching intolerance places itself outside the law, and we should consider incitement to intolerance and persecution as criminal, in the same way as we should consider incitement to murder, or to kidnapping, or to the revival of the slave trade, as criminal.



Popper, Karl, 2013 (1994), The Open Society and Its Enemies, New One-Volume, ed. E. H. Gombrich & A. Ryan (Princeton Oxford, PUP)

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Os Fragmentos são Poeira

Fuseli, John Henry, The Artist Moved by
the Grandeur of Antique Fragments
, 1778-79.

A actualidade é estar no tempo sem ser tempo, é soprar para longe as fagulhas da história e inspirá-las quando o vendaval as devolve. Viver a actualidade é como caminhar numa ponte sem lugar sobre o abismo da memória, sem olhar para o sol que cega, para a luz divina.

&

A hipótese do nada é sempre melhor que a pretensão do todo, pois a hipótese alberga o seu contrário e a pretensão tem por por hábito negar tudo o que está para além de si. Nessa arrogância da certeza, acaba sempre na ignorância.

&

Não foram os grilhões que mataram o feminino, foi a vergonha. Aqueles que o calcaram, pisando a luz e a aura, destruíram a harmonia dos opostos.

&

O livro que vive no tempo é aquele cujo desfolhar permanece na frequência do acaso. Sem sentido, encontra-se o único sentido e por livre vontade firmamos-nos no não-lido, no vislumbre de uma palavra solta.

&

O mistério segreda a luz, o enigma solve e resolve.

&

A guerra é essa força que ignorante avança e destrói e oprime, negando a palavra e o texto. A guerra nem sempre é armada, por vezes, serve-se apenas da intolerância.

&

A actualidade é o presente a validar o passado, é um abeirar-se das suas ruínas, um acto que se estende no tempo, no limiar do abismo.

&

Os mitos não morrem, adormecem, repousam entre o sonho e a imaginação, à espera de um novo despertar. O mito não teme a razão, mas sim um longo esquecimento, um sono profundo.


&


Quanto maior a sabedoria, maior será a tormenta. E a tormenta é a via única para a felicidade. Já a ignorância conduz à dormência e a dormência é o caminho para o prazer, pois este luta contra outra, embora sem nunca a vencer.

&

A arrogância e a vaidade intelectual desejam a sabedoria, mas deitam-se sempre com a ignorância.


Fragmentos Escrito entre 2017 e 2018 RMdF

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Logos e Revelação - O Enigma de Heraclito

Turner, Joseph Mallord William, The Angel Standing in the Sun, 1846.
Londres: Tate Gallery.


  O processo de cair em si ou a consciência de que somos um enigma constitui o primeiro momento de todo o acto filosófico, de todo o acto criativo. O enigma surge como um desafio. A sua presença suspende o curso da vida. É portanto necessário sobreviver ao enigma, pois a passagem pelo enigma indica e inicia uma outra vida, uma outra consciência. Ora essa sobrevivência depende do discernimento e da acção. O enigma apresenta-se como a origem de uma inquietude, ou seja, resume todas as disposições afectivas numa só e a partir dela perturba a realidade anterior. A inquietação torna-se assim a plena consciência do enigma e dos limites que ele impõe. O enigma suspende o mundo enquanto extensão do eu e anula o próprio eu até se alcançar a sua revelação. O Logos é para Heraclito a revelação do enigma, ele é o princípio unificador e o portador da candeia do sentido. 

  Antero de Quental (308-9, vv. 1-4), num soneto intitulado "Logos", expressa a mesma ideia que observamos em Heraclito: 
                                       Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
                                       E, o que é mais, dentro de mim - que me rodeias
                                       Com um nimbo de afectos e de ideias,
                                       Que são o meu princípio, meio e fim…
Estes versos, logo quando dizem "Tu, que não vejo, e estás ao pé de mim", indicam a impossibilidade dos sentidos apreenderem o Logos. Essa determinação aponta para o fragmento do Efésio: "Más testemunhas são para os seres humanos os olhos e os ouvidos, se tiverem almas que não compreendam a sua linguagem" (DK 22 B 107). A linguagem, o Logos, torna-se assim a cifra e a chave do enigma. Por outro lado, Antero de Quental, ao dizer "estás ao pé de mim" e "me rodeias", demonstra a presença suprasensorial do Logos. Este está presente em todas as coisas, é o seu "princípio, meio e fim". 

  A ideia de presença universal surge também quando Heraclito diz que "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, estende-se a toda realidade e participa dela enquanto elemento activo, pois todas as coisas existem de acordo com o seus ditames (DK 22 B 1). Contudo, a maioria não segue esse Logos que é comum, prefere, por seu lado, uma sabedoria particular, que, na verdade, não é sabedoria alguma, porque a sabedoria não pode ser particular. A sabedoria tem de ser sempre uma experiência da totalidade.

  O soneto refere ainda "E, o que é mais, dentro de mim", ou seja, o Logos existe no humano. Heraclito afirma algo idêntico quando diz que "À alma corresponde um Logos que cresce por si só." (DK 22 B 115). Porém, convém referir que este Logo não existe apenas na alma, ele cresce, logo opera de forma dinâmica e estabelece um processo criativo. Na alma, o Logos tem a possibilidade de se auto-superar, de "crescer por si só". Bruno Snell comenta este fragmento da seguinte maneira: "Seja qual for o significado peculiar que tal frase possa ter, Heraclito atribui aqui à alma um logos que pode, a partir de si mesmo, estender-se e crescer. Por conseguinte, considera-se a alma como ponto de partida para determinados desenvolvimentos, ao passo que não teria sentido atribuir ao olho ou à mão um logos, que a si mesmo se amplia" (Snell: 44). 

  O Logos, enquanto revelação do enigma, não o anula, mas estende-se sim como uma síntese dos planos antropológico, cosmológico e teológico. O humano preserva em si essa qualidade essencial de enigma, pois o desenvolvimento do Logos, enquanto revelação constante do enigma, existe em si. Contudo, por mais que cresça, "Perante a divindade, o homem é considerado infantil, tal como a criança face ao homem" (DK 22 B 79; Cf. Fränkel: 214-28). O humano não pode superar os limites que lhe foram determinados, o seu valor sapiencial é nulo face à divindade, pois "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus" (DK 22 B 32). Jaeger diz que "Heraclito é o primeiro pensador que não deseja conhecer apenas a verdade, visto que sustem também que este conhecimento renovará a vida dos homens. Na sua imagem dos que estão acordados e dos que estão a dormir deixa ver o que espera do seu logos. Não tem nenhum desejo de ser outro Prometeu, ensinando aos homens novos e más engenhosos os métodos para alcançar os fins últimos; mas espera torná-los capazes de dirigir as suas vidas totalmente despertos e conscientes do logos segundo o qual ocorrem todas as coisas" (Jaeger: 115). 

  A filosofia de Heraclito não é meramente cosmológica, a sua grande finalidade é antropológica, a sua preocupação é o humano, daí que diga "Tentei decifrar-me a mim mesmo" (DK 22 B 101). O Filósofo Obscuro assume-se como um enigma e, por extensão, prolonga essa qualidade de enigma a toda a humanidade. A alma carece assim de uma revelação. O plano divino permanece eterno, uno e indiferente à realidade humana, daí que Heraclito diga que "A natureza humana (ethos) não possui nenhum instrumento para se conhecer, mas a divina possui" (DK 22 B 78). Ao ser humano, falta-lhe a chave para ultrapassar o portão fechado do enigma, visto que, uma vez colocado o enigma, é impossível virar-lhe as costas. Nietzsche expressa essa via de sentido único quando diz: "Segues o teu caminho para a grandeza: aqui ninguém deve seguir-te furtivamente! O teu próprio pé apagou o caminho atrás de ti, e sobre ele está escrito: 'Impossibilidade' " (Nietzsche 5: 176). Édipo escolheu o seu caminho. Era-lhe impossível voltar as costas à esfinge, pois a sua vida dependia da resolução do enigma.

  Em Nietzsche, o enigma oculta-se nas imagens de Apolo e revela-se no êxtase de Diónysos, daí que diga: "É a vós, que buscais, que tentais com ousadia, e a quem alguma vez embarcou com ardilosas velas em mares terríveis, é a vós, ébrios de enigmas, rejubilantes com o lusco-fusco, cuja alma é atraída ao som das flautas para todos os abismos labirínticos, pois não quereis seguir o fio, tacteando-o com mão timorata, e detestais deduzir, quando podeis adivinhar, é unicamente a vós que eu conto o enigma que vi - a visão do mais solitário" (Nietzsche 5: 179). O enigma existe num plano que não é dedutivo, mas sim intuitivo, senão mesmo instintivo. Apolo cria "os abismos labirínticos" e Diónysos, a atracção pelo "som das flautas", que eleva a alma à visão do enigma e a sua revelação. É nesse sentido que afirma que "Temos aqui diante dos nossos olhos, numa suprema simbologia artística, aquele mundo apolíneo de beleza e o seu subsolo, a terrível sabedoria de Sileno, e entendemos por intuição a sua mútua necessidade" (Nietzsche 1: 39).

  O enigma é terrível, pois é ele que inicia a experiência da queda, o cair em si, esse choque inicial de toda a pulsão criativa. O dom de criar é assustador, pois provém do assombro que é a totalidade, do absoluto que o humano rejeita. Nessa estrada de muitos caminhos, a escolha torna-se imperativa. Porém, a sabedoria do enigma é mediada pela intuição e, segundo Nietzsche, Heraclito alcançou-a na perfeição: "O dom real de Heraclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efectiva em conceitos e combinações lógicas" (Nietzsche 6: 40). Ora é com base no princípio de representação intuitiva que Heraclito diz: "O saber de muitas coisas não ensina a intuição. Se assim fosse teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, e também Xenófanes e Hecateu" (DK 22 B 40; Cf. Mansfield: 442-48). O saber deve ser orientado para um fim e não se deve dispersar, senão a intuição não é alcançada. Não se chega ao Logos, que está presente em todas as coisas, sem uma visão teleológica de totalidade, daí que Heraclito afirme que "É mais necessário extinguir a desmedida que um incêndio" (DK 22 B 43). A não aceitação dos limites e a sua transgressão implica a prática de um crime, que deve ser severamente castigado. As Erínias hão-de perseguir os infractores, obrigando-os a pagar com a sua própria vida. Esse é o preço de seguir a outra via, pois, sem a visão de totalidade, é tudo destruição e morte.

  É a consciência dos limites que permite a apreensão do enigma e da sua revelação. No entanto, para ser a humano, o conhecimento dos limites implica o conhecimento da finitide e da morte, o que, tendo em conta a sua arrogância, a sua predisposição para ignorância e a sua incapacidade de acolher o dom do nascimento, não é fácil de alcançar. Nesse mesmo sentido, Heraclito diz que "É difícil combater contra a paixão; o que ela quiser, está disposta a pagá-lo com a alma" (DK 22 B 85). A alma descontrolada que se deixa mergulhar no sonho e na paixão enche-se de vapores húmidos e torna-se molhada e, segundo o Efésio, "A alma seca é mais sábia e melhor" (DK 22 B 118), pois o ar está mais próximo de se tornar fogo do que a água e é o fogo sempre vivo que governa todas as coisas. Encontramos assim em Heraclito a primeira doutrina dos elementos, não numa concepção cosmológica, mas sim como fundamento de uma teoria da alma e como modelo de sabedoria.

  Giorgio Colli afirma que "o enigma é a manifestação na palavra daquilo que é divino, oculto, uma interioridade indizível" (Colli: 49). Heraclito revela isso mesmo no célebre fragmento: "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 40; Cf. Nietzsche 7: 203-5; Hölscher: 229-30). A palavra sugerida, qual canto oracular, possui um carácter demiúrgico, um valor de passagem entre o humano e o divino. Neste sentido, a sugestão torna-se superior à revelação, pois esta define e indica o fim, a outra abre caminhos, desbrava as florestas ignotas. Existe também na sugestão um sentido didáctico, uma vez que, na maior parte dos casos, o ser humano é incapaz de compreender o alcance da revelação, desse Logos comum, mas desconhecido, e assim a única solução é sugerir essa realidade, é indicar os sinais, as luzes que guiam na sombra. 

  O fragmento "Tentei decifrar-me a mim mesmo" não constitui um solipsismo radical. Heraclito não rejeita o mundo, mas nega a compreensão que a maioria julga ter. O filósofo não deixa de brincar com as crianças no templo de Ártemis (Diógenes Laércio: IX, 3; Marco Aurélio: VI, 42), pois existe na infância a mesma simplicidade e reconhecimento do Deus que joga aos dados. Nietzsche diz que o "«Conhece-te a ti mesmo», é toda a ciência - Só depois de conhecer todas as coisas o homem se conhecerá. Pois as coisas são simplesmente as fronteiras do homem." (Nietzsche 8: 44, §48). Heraclito tentou conhecer essas fronteiras, esse limiar que separe e une o cume e o abismo. A doutrina do Logos, a noção de harmonia e de guerra e a concepção de uma divindade una que assimila todos os contrários são a prova desse esforço gnoseológico. Em Heraclito, tudo aponta para a revelação do enigma.

  O Logos é o elemento central no pensamento de Heraclito, daí que Guthrie diga que "Heraclito acredita primeiro e acima de tudo no Logos" (Guthrie: 419). Existe portanto uma universalidade do Logos, todavia o Logos, sendo acessível a todos, mas não é partilhado por todos. Nietzsche afirma que "Nós veneramos tudo o que é tranquilo, frio, nobre, longínquo, passado, tudo aquilo cujo aspecto não obrigue a alma a defender-se e guarnecer-se, tudo aquilo a que se pode falar; sem elevar a voz." (Nietzsche 4: 109). A visão do Logos é sublime, ela traz paz à alma, pois é o seu "princípio, meio e fim". A alma não se defende dele porque ele é o seu motor, nela ele cresce por si só. Já Aristóteles defende, pelo contrário, que "Para Heraclito o princípio consiste na própria alma, em virtude de ela ser aquela emanação quente pela qual todos seres são criados. Trata-se, por conseguinte, de uma realidade incorpórea e em mutação contínua: conhece-se o movimento consoante mais se movimenta, sendo sua opinião (e também a de muitos outros) a circunstância de todos os seres se encontrarem em movimento" (De Anima, 405 a 25-30). Porém, não compreende que este movimento da alma é regulado por um princípio único e universal, o Logos.

  O estilo oracular de Heraclito não é um mero artifício de linguagem, mas sim uma metodologia do Logos, uma imagem sibilina da revelação do enigma. Nesse sentido, Nietzsche diz que "Nos escritos de um eremita nota-se sempre também algo do eco do deserto, algo do ciciar e do tímido olhar da solidão; das suas palavras mais fortes, mesmo do seu grito, ressoa ainda uma espécie nova e mais perigosa de silêncio, de mutismo. Quem esteve sentado durante anos, dia e noite, só com a sua alma em discussões e diálogos íntimos, quem na sua caverna - seja ela um labirinto ou uma mina de ouro - se tornou um urso ou um pesquisador ou guarda de tesouros, um dragão: as suas ideias acabam por adquirir um tom de meia-luz, um odor de profundidade e de decomposição, algo de incomunicável e de repugnante que lança um bafo frio aos que passam" (Nietzsche 3: 213, §289). Existe portanto uma impossibilidade hermenêutica de compreensão dos escritos de um eremita. Foi face a esse limite de interpretação que Heraclito colocou o seu livro no templo de Ártemis. Os seus escritos estavam ao alcance de todos, mas só os eleitos, os iniciados na sabedoria do Logos, os podiam ler. O elitismo de Heraclito resulta assim do valor do enigma e do sentido da sua revelação.

  Heraclito compreendeu que a maioria, o vulgo, era incapaz de compreender a verdade, pois estava preso à sua sabedoria particular, à incoerência das suas verdades, das suas opiniões. A ignorância parte sempre do particular, daquela negação individual, e só se torna colectiva quando, por vontade, o pensamento deixa de ser uma harmonia concordante e se torna uma comum discórdia. Nietzsche aponta para esse caminho quando afirma que "O filósofo grego atravessava a existência com o sentimento secreto de que havia muito mais escravos do que se pensava: quem quer que não fosse filósofo, era escravo do seu ponto de vista" (Nietzsche 2: 53, §18). No entanto, se não existisse uma esperança de que alguns seriam capazes de ler o seu livro, Heraclito teria-o destruído, mas ele não o fez, deixou-o à mercê da interpretação, daqueles que o procurassem.

  Heraclito não era apenas um filósofo, era um poeta, com a necessidade e o dever de cantar a Verdade. Aos seus olhos, tudo era nítido, não existia nem dúvida, nem hesitação, pois, como diz Dodds, "o poeta não pede para ser 'possuído', mas apenas para servir de intérprete para a Musa possuída." (Dodds, 82). Heraclito foi sobretudo um intérprete do Logos e é ele que o afirma: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). O Efésio surge com uma voz oracular que não é sua, mas sim do Logos. Nietzsche compreendeu na perfeição o valor da revelação de Heraclito, a obra a que ele se propunha, e expressa-o através de Zaratustra. O respeito por este filósofo é tão grande que o leva a afirmar que "o mundo precisa eternamente da verdade, precisa, portanto, eternamente de Heraclito: embora ele não precise do mundo." (Nietzsche 6: 55). 

  Heraclito decifrou-se a ele mesmo como um enigma e atingiu a revelação máxima do ser humano, do mundo e de deus. Foi essa transformação, aquela que estabelece a passagem entre o enigma e a revelação, que o tornou, não um filósofo, mas sim um sábio. O pensamento do Obscuro é o enigma, a sabedoria que, embora não ouvida, persiste como verdade e caminho.


Bibliografia

Antero - Quental, Antero de, "Logos" in Poesia Completa 1842-1891, Org. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

Aristóteles (De Anima) - Aristóteles, Da Alma (De Anima), Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2001.

Colli - Colli, Giorgio, O Nascimento da Filosofia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d.

Diógenes Laércio - Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.

DoddsDodds, E. R., The Greeks and the Irrational. Berkeley and Los Angeles and London: University of California Press, 1951.

Fränkel - Fränkel, Hermann, "A Thought Pattern in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical EssaysOrg. Alexander P. D. Mourelatos. Princeton: Princeton University Press, 1993, pp. 214-228.

Guthrie - Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, Vol. I. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.

Heraclito (DK 22 B)Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Hölscher - Hölscher, Uvo, "Paradox, Simile and Gnomic Utterance in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical EssaysOrg. Alexander P. D. Mourelatos. Princeton: Princeton University Press, 1993, pp. 229-238.

Jaeger - Jaeger, Werner, La Teologia de los Primeros Filosofos Griegos, Trad. José Gaos. México, Madrid, Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica; 1982. 

Mansfield - Mansfield, Jaap, Studies in the Historiography of Greek PhilosophyAssen/Maastricht: Van Gorcum & Comp. B.V., 1990.

Marco Aurélio - Marco Aurélio, Pensamentos, Trad. João Maia. Lisboa: Relógio D'Água, 1995.

Nietzsche 1 - Nietzsche, Friedrich, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Friedrich, Gaia Ciência, 2a. Edição. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores; 1977.

Nietzsche 3 - Nietzsche, Friedrich, Para Além do Bem e do Mal, Trad. Hermann Peluger; Lisboa: Guimarães Editores; 1978; p. 213 (§289).

Nietzsche 4 - Nietzsche, Friedrich, Genealogia da Moral, Trad. Carlos José de Meneses. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.

Nietzsche 5 - Nietzsche, Friedrich, Assim Falava Zaratustra - Um Livro para Todos e Ninguém. Tradução Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D' Água, 1998.

Nietzsche 6 - Nietzsche, Friedrich, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Nietzsche 7 - Nietzsche, Friedrich, Considerações Intempestivas, Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p. 203-205.

Nietzsche 8 - Nietzsche, Friedrich, Aurora, Trad. Rui Magalhães. Porto: Rés Editora Lda., 1977, p. 44 (§48).

SnellSnell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

sábado, 1 de abril de 2017

Do Baú VI: 9 Fragmentos (ou O Fragmento é Semente)

Botticelli, Sandro, Madonna com a Romã (Pormenor), c.1487.
Florença: Galleria degli Uffizi.

O Fragmento é Semente – I
2013/VI/20

A História é uma faca que talha os factos numa forma que é intencional e imaginativa.


O Fragmento é Semente – II
2013/VI/21

Que Deus nos livre do momento em que a noção de interesse nacional seja uma e a mesma, pois quando isso acontecer já não estaremos em Democracia.


O Fragmento é Semente – III
2013/VIII/06

A memória e a imaginação exaltam a natureza mítica da realidade, atribuindo-lhe um carácter de ideal ou de arquétipo.


O Fragmento é Semente – IV
2013/VIII/07

Os sonhos guardam-nos do horror do mundo. No inconsciente, repousa a origem da nossa vocação.


O Fragmento é Semente – V
2013/X/03

Rejeitar o acto de votar é uma negação da democracia. A abstenção mina a legitimidade dos eleitos e destrói a sustentação do regime. Sem voto, a democracia é uma ilusão.


O Fragmento é Semente – VI
2013/X/11

O som do mundo nasce da sensação e o pensamento do seu silêncio.


O Fragmento é Semente – VII
2013/X/16

Neste mundo confuso, não existem caminhos rectos, apenas passos longos e quedas iminentes. 


O Fragmento é Semente – VIII
2013/X/18

A Esperança é como o Colosso de Rodes. Firma-se, de um lado, no Momento e, do outro, na Oportunidade. E o Tempo é o mar que por ela passa.


O Fragmento é Semente - IX
2013/XI/01

Primeiro tínhamos Deus, depois a Humanidade, e agora temos os estilhaços dessas duas crenças.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Do Baú II: Da Vaidade

Vanitas vanitatum et omnia vanitas
2013/VI/13




O texto que se segue tem por título uma conhecida frase do Eclesiastes. Salomão, filho de David, diz: "vaidade das vaidades, tudo é vaidade" (1,2). Esta tese, a de que todas as paixões se resumem à vaidade, é partilhada por Matias Aires na obra Reflexões sobre a vaidade dos homens ou discursos moraes sobre os effeitos da vaidade  (1752).
Na dedicatória, Matias Aires oferece o opúsculo a D. José I e diz que "é o mesmo que oferecer em um pequeno livro aquilo de que o mundo todo se compõe". A vaidade assume o centro de uma estrutura moral e o próprio criador do texto declara, no prólogo, que "eu que disse mal das vaidades vim a cair na de Autor". Segundo o mesmo, "vivemos com vaidade, e com vaidade morremos" (2), pois "a vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura" (1). A vaidade anima a vida e decora a morte. O cadáver, a caminho da putrefacção, envolve-se na mesma vaidade de quando era um corpo vivo e vistoso. Adorna-se o morto, vestindo-o de soberba, glorifica-se o seu derradeiro habitáculo de madeira nobre e metal rico e compõe-se de valioso mármore o local que apenas a morte guarda. Se esta é a vaidade na morte, então quão universal será a vaidade em vida?
Matias Aires, influenciado por La Rochefoucauld, utiliza uma estrutura textual de pequenos pensamentos ou reflexões, compostos numa lógica aforística ou fragmentária. Esta forma de apresentar a palavra é que mais se distancia da vaidade criativa, ou da ostentação textual, pois o pequeno texto, o fragmento, proclama uma limitação epistemológica, uma síntese daquilo que se conhece em oposição ao vasto desconhecido. 
O autor diz que "a nossa vaidade é a que nos faz ser insuportável a vaidade dos mais" (6). A visão exacerbada do eu contamina qualquer projecção identitária do outro. Os demais ameaçam a nossa vaidade, daí que Matias Aires escreva que "a vaidade parece-se muito com o amor-próprio, se é que não é o mesmo; e se são paixões diversas, sempre é certo, que ou a vaidade procede do amor-próprio, ou este é efeito da vaidade" (10). O amor-próprio e a vaidade potenciam toda e qualquer expressão do humano, formam a sua relação com o mundo e com os outros. 
"Com todas as paixões se une a vaidade; a muitas serve de origem principal; nasce com todas elas, e é a última, acaba" (7). O carácter universal da vaidade é o que lhe permite ser a origem e o fim, a causa e o efeito de todas as paixões. Logo, a vaidade é a suprema forma de afirmação, de conquista de um lugar no mundo, não um espaço oculto, mas sim um local de fama e de reconhecimento. "A vaidade faz, que não há cousa, que não sacrifiquemos ao desejo de parecer entendidos, ainda que seja à custa de um vício, ou de uma culpa" (16). "Fazemos vaidade de errar com subtileza, e temos pejo de acertar rusticamente" (15). É preferível parecer-se sábio na ribalta do que sê-lo no anonimato. Tudo se torna um véu de aparência, uma dissimulação apadrinhada pela vaidade.
"Para donde quer, que vamos, a vaidade nos leva" (20), daí que "os homens mais vaidosos são os mais próprios para a sociedade" (24). O mundo assume uma preferência, mesmo que disfarçada, camuflada de falsa virtude, por esse empreendedorismo do eu. Os vaidosos dedicam-se a essa empreitada de firmar o eu no mundo dos outros como se essa fosse a sua condição natural. "A vaidade nos faz parecer, que merecemos tudo, por isso empreendemos, e conseguimos às vezes; a falta de vaidade nos faz parecer, que não merecemos nada, por isso nem buscamos, nem pedimos" (23). Desengane-se com pensa que a acção que tende para uma realização pessoal está assente em nobres ideias, porque na verdade ela não passa de vaidade, de busca incessante por uma glória do eu. A vaidade também não enfraquece com os anos, muda de forma, mais o seu vigor permanece. Nessa altura, nos anos da velhice, a vaidade torna-se numa ostentação das glórias passadas, numa afirmação inabalável de que se conquistou um estatuto, uma posição de relevo.
"Se a melancolia nos desterra para a solidão do ermo, não deixa de ir connosco a vaidade; e então somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta: nunca podemos fugir de nós: para donde quer que vamos, imos com os nossos mesmos desvarios, se bem que as vaidades do ermo são vaidades inocentes" (37). Aquele que julga que ao distanciar-se de um mundo de vaidades foge da própria vaidade, engana-se, uma vez que a leva consigo, pois ela participa da sua própria natureza. É uma vaidade inocente, mas não deixa de ser vaidade. 
"O que chamamos inveja, não é senão vaidade. Continuamente acusamos a injustiça da fortuna, e a consideramos ainda mais cega do que o amor, na repartição das felicidades. Desejamos o que os outros possuem, porque nos parece, que tudo o que os outros têm, nós o merecíamos melhor; por isso olhamos com desgosto para as cousas alheias, por nos parecer, que deviam ser nossas: que é isto senão vaidade?" (43). A inveja é uma vaidade afectada, diminuída na sua nobre consciência de si. O êxito do outro torna-se, na ausência do nosso sucesso, um inimigo. Gera-se uma sensação de afronta e de despeito e então o vaidoso constrangido vitupera a glória alheia como se ela fosse um ataque à sua própria dignidade.
"A vaidade é de todo o mundo, de todo o tempo, de todas as profissões, e de todos os estados" (64). Cai no erro quem pensar que rejeita a vaidade, que a sua acção ou profissão, que o seu modo de pensar ou de agir se envolvem de virtude e que são tudo menos vaidades. A mais nobre das opiniões ou dos raciocínios podem não ter a vaidade no conteúdo, mas vão tê-la na forma, pois toda a expressão, seja fruto da razão ou do sentimento, visa a aceitação e esta não é mais do que vaidade. Desta forma, "o aplauso é o ídolo da vaidade" (68). Esta paixão universal visa o reconhecimento, a atribuição de valor aos nossos passos. A vaidade procura a estima e rejeita o desprezo. 
"A vaidade é engenhosa em glorificar tudo o que vem de nós, e em reprovar tudo que vem dos outros" (121). A vaidade teme os feitos dos outros. Matias Aires diz que "na república das letras não há menos vaidade que na república das armas" (120). No que compete ao pensamento e à palavra, "o ter ou não ter razão, é verdadeiramente a guerra em que se passam os nossos dias, e os nossos anos" (121). Para essa assunção da verdade do eu, o mais é o melhor. O autor de um tratado assume ter a razão face ao autor de um ensaio que visa a mesma temática. Diz outro que um extenso romance é preferível à síntese de um conto. Ou que um fragmento não iguala a torrente de páginas escritas. Ou ainda que uma ode de cento e onze versos é melhor do que um haiku. A vaidade criativa precisa de uma qualquer forma de ostentação seja pela quantidade de texto, pelo estilo da palavra ou pela pomba da sua apresentação. "Quantas injustiças não terá feito a vaidade de fazer justiça" (134)
Em suma, "vanitas vanitatum et omnia vanitas". Tudo é vaidade. Leia-se as Reflexões sobre a Vaidade dos Homens de Matias Aires e compreenda-se a universalidade da vaidade. 


Bibliografia:
·         Bíblia de Jerusalém - Nova Edição, Revista e Ampliada. São Paulo: Paulos, 2002.
·       Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. Prefácio de António Pedro Mesquita. Fixação do texto e notas de Violeta Crespo Figueiredo e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: INCM, 2ª Edição - Revista, 2005