Reflexões Astrológicas
Estações
Equinócio da Primavera
(Ano Novo Astrológico)
Lisboa, 15h34min, 20/03/2022
Sol
Decanato: Marte
Termos: Júpiter
Monomoiria: Marte
O retorno da Primavera traz sempre
consigo um potencial de renovação. Essa é de facto a palavra que melhor
descreve a raiz de sentido do ingresso anual do Sol em Carneiro e de um novo
ano astrológico. O termo renovação constrói-se a partir de uma simbiose de
repetição e novidade. Existe pois uma recuperação antagónica do novo, ou seja,
repete-se o ciclo sem anular a novidade e que é, na verdade, um Eterno Retorno
que conserva o carácter inaugural da consciência da vida e do tempo. O ciclo
zodiacal que se inicia com a Primavera não é assim nem uma repetição, nem uma
novidade, mas sim uma renovação. É a Perséfone que sobe do Hades, da semente
guardada na terra, e renova a natureza, traz à mesma árvore, uma nova flor, um
novo fruto.
Desta forma, existe no fim de um
ciclo em Peixes e de um novo ciclo em Carneiro uma passagem hermética da
contemplação à acção. A sabedoria da totalidade torna-se a acção sobre a
realidade. No entanto, sem o registo sobre a Roda da Necessidade do ciclo
anterior, Carneiro age sozinho e, centrado no eu – e não no si –, inicia a
experiência de cada estágio de vida, de cada tempo e lugar. Este é Hércules,
realizando sozinho, como exigência de Euristeu, cada um dos doze trabalhos. Existe,
porém, uma excepção. Para matar a Hidra (o trabalho que representa o signo de
Escorpião), Hércules precisa da ajuda de Iolau para cauterizar as cabeças
decepadas, impedindo-as assim de voltar a crescer. Curiosamente, é precisamente
o veneno da Hidra que, mais tarde, mata o herói.
O planeta Marte, que coloca a viagem
iniciática em acção (Carneiro, dia), é o mesmo que conduz ao veneno que mata o
herói (Escorpião, noite) e ao único trabalho em que Hércules é efectivamente
ajudado, onde o eu recorre ao outro para vencer o pior dos monstros, o temor da
morte certa. Este é o trabalho que se segue ao que é diametralmente oposto ao
primeiro (eixo Carneiro-Balança). Depois do eu e do outro, do que nasce e do
que se põe, apreende-se a experiência da morte, do limiar.
Paralelamente, como segunda viagem
iniciática, a que que parte de um Carneiro que viaja a partir de Peixes e renova
a sua demanda, temos a busca de Jasão e dos Argonautas pelo velo de ouro.
Note-se que o aríete imortal que possuía o tosão dourado (Carneiro como
exaltação do Sol) era filho de Posídon (Peixes). Nesta viagem, Jasão não vai
sozinho. As suas aventuras são partilhadas. No entanto, após a demanda, Jasão
abandona Medeia, com quem tinha dois filhos e que o ajudara a conseguir o velo,
por Creúsa, sua prima. Furiosa, Medeia envenena o vestido de noiva de Creúsa,
matando-a, e assassina os filhos que tivera com Jasão. Medeia é então levada
para Atenas por um carro puxado por dragões, ou serpentes, oferecido pelo seu
avô, o deus Hélios (Sol). Os deuses estão do lado de Medeia e Jasão, perdendo
os favores de Hera, morre sozinho.
Estas duas variações do ciclo
zodiacal e vernal têm um elemento em comum: a relação entre o eu e o outro e o Sagrado
Feminino. A mitologia olímpica, demasiado masculinizada e a que mais
influenciou os modelos astrológicos elementares, faz de Hera a esposa ciumenta
e vingativa. Porém, Hera é uma Grande Mãe, sucessora de Reia-Cíbele. E,
esquecido quiçá por os leitores de Os
Trabalhos de Hércules de Alice Bailey (1957-8), Hércules é o grego Herácles (Ἡρακλῆς) que significa glória de Hera (Ἥρα+κλέος). A inimiga patriarcal é, na verdade,
a deusa benévola. De uma forma ou de outra, tanto Hércules como Jasão rejeitam
o Feminino e sofrem o seu castigo. Se nos focarmos em demasia no simbolismo
masculino do signo de Carneiro e ignorarmos a exaltação do Feminino que é o
início da Primavera, perdemos o valor primordial da transformação, da passagem
da noite escura invernal à natureza em flor, dádiva do Feminino.
A Perséfone, renascida no Equinócio
da Primavera é, segundo o hino órfico que lhe é dedicado (hino 29), tanto “a rainha sob a terra” (ὑποχθονίων βασίλεια, hino órfico a Perséfone 29.6) como “a donzela
abundante em frutos” (κόρη καρποῖσι βρύουσα, hino órfico a
Perséfone 29.10). É a mãe
das Erínias e a filha de Démeter. É a luz e a sombra. A Primavera implica
sempre essa passagem da sombra do Inverno à luz que brota da cornucópia
primaveril e que atinge a sua plenitude no Solstício de Verão. Ora, neste
equinócio, a luz do Sol no início de Carneiro estende-se até à Lua no final de
Balança e, tal como nos exemplos astro-mitológicos, a projecção do eu no outro
e do outro em nós determinam os tempos difíceis que vivemos em que Marte brande
o gume e o escudo, a lança e o elmo.
O regente de Carneiro encontra-se em
Aquário, no signo da humanidade, e, com ele, Vénus e Saturno constroem essa
potência concentrada de força, desejo e necessidade. A guerra não surge como
sinal dos tempos, mas como consequência do humano. E, nessa ponte entre o eu e
o outro, a solidariedade e a bondade (Júpiter e Neptuno) colidem com a
impossibilidade dessa relação. A apreensão do outro torna-se apenas imagem de
nós. A caridade líquida e fotogénica (Mercúrio em Peixes), que não é uma
verdadeira solidariedade e que nasce da corrupção do espírito da Era de Peixes
e que se acentua no trânsito de Júpiter e Neptuno, serve mais quem a pratica do
quem recebe, pois não tem por objectivo transformar a realidade. Confortar quem
sofre não é o mesmo que impedir o sofrimento.
Devemos então trazer até nós a
questão e a dúvida. Porque conseguimos mostrar mais empatia porque sofre na
Ucrânia do que por quem sofre no Iémen, na Somália, na Palestina ou em Myanmar,
só para dar alguns exemplos? Será que esse outro que sofre mais longe permanece
o outro, o estranho, e não serve a projecção do eu no imediatismo dos media e na vaidade das redes sociais? As
crianças que morrem de fome, por exemplo, no Iémen e por quem a ONU e a UNICEF
têm clamado não merecem a nossa atenção e compaixão? Ou que ajuda humanitária entregámos
colectivamente nos campos de refugiados de Calais ou Mória? Neptuno e Júpiter
em Peixes são tanto a empatia e a justiça social como a ilusão e o fanatismo. A
necessidade de totalidade não se efectiva e a parcialidade permanece.
A ligação hexagonal que se
estabelece entre o Sol em Carneiro com Vénus, Marte e Saturno em Aquário ou
triangular destes com Lua colide com a relação diametral dos luminares e com o
aspecto quadrangular do Sol a Plutão em Capricórnio. Os instintos primários do
humano são aqueles fazem transparecer a impossibilidade filosófica da relação
sujeito-objecto, do eu com o outro. E, por outro lado, tanto o Dragão da Lua
como Úrano em Touro pedem uma reavaliação (ou mesmo revolução) dos valores e
uma refundação necessária que estende da morte ao viver (eixo nodal
Escorpião-Touro). A configuração do equinócio vernal alerta também, em
consequência destas posições ou aspectos, aliadas a Mercúrio, Júpiter e Neptuno
em Peixes, para os perigos do pensamento único e dos nacionalismos.
Quando Marte e Júpiter estiverem
co-presentes em Carneiro no Solstício de Verão, a guerra e os nacionalismos que
estão na origem de regimes totalitários podem não só persistir como agravar-se.
Natália Correia escreveu, num
papel avulso, conservado no seu espólio: “Consumada
que é a Pátria, falta dizer Mátria para que no tempo os amantes escrevam o nome
da realidade unificante: Frátria.” (Franco, J. E. & J. A. Mourão, 2005, A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa: Escritos de
Natália Correia sobre a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo, 229.
Lisboa: Roma Editora). Uma Mátria não tem fronteiras, nem nacionalidades, tem terra e
gentes. E uma Frátria só tem um planeta e uma humanidade. Essa a verdadeira
promessa aquariana. E o Sagrado Feminino é o elemento de passagem. O destino
por cumprir não é de um país é sim de uma “Mãe
que é Deus também”, uma proposta de sentido explorada no meu romance A Casa da Torre Velha (2022).
Marte
em Gémeos no Equinócio de Outono e no Solstício de Inverno podem trazer hostilidade
às negociações e extremismo aos media,
mas pelo menos existirão verdadeiras negociações. O movimento ao longo do ano
de Marte e Júpiter serão fundamentais para compreender o que nos espera num
mundo que pede mudança, mas permanece no mesmo. Por outro lado, o regresso dos movimentos
de retrogradação retomará a difícil lição que vai da desmedida à retribuição,
trazendo até nós o imperativo da Necessidade. Neste ano em que infelizmente os
conflitos serão o gérmen dos dias, será fundamental compreender a primeira de
todas as lições da astrologia antiga: a luz e a sombra.
A
doutrina do segmento de luz (αἵρεσις) permite-nos
compreender essa harmonia dos opostos. No ingresso das estações e com um olhar
a partir de Lisboa, os luminares estarão em acima do horizonte nos dois
primeiros e de dia (Primavera e Verão) e nos outros dois abaixo e de noite
(Outono e Inverno), cumprindo o significado radical. Existe, deste modo, e como
sempre, uma necessidade de integrar a luz na sombra e a sombra na luz. De um
ponto de vista astrológico, é preciso sobretudo não ler o mundo com os olhos do
nosso próprio tema, pois se o fizermos, rejeitarem-nos a parte que a sombra
guarda em nós e no mundo e revelaremos apenas a dimensão inabitada dos nossos temores.
Liz
Greene resume na perfeição esta dificuldade quando diz que "Se
nos identificamos muito fortemente com um determinado conjunto de qualidades na
nossa própria natureza, quando o oposto vem à superfície ou aparece em outra
pessoa, o resultado em geral é a repulsa. Trata-se de uma profunda repulsa
moral, uma verdadeira aversão pelo que a outra pessoa representa. Não é apenas
um desinteresse ou um desagrado casual. A sombra desperta em nós uma raiva
totalmente desproporcional à situação." (Greene, Liz, 1994, "A Sombra na
Astrologia" in Ao Encontro da
Sombra: O Potencial Oculto do Lado Escuro da Natureza Humana, org. C. Zweig
& J. Abrams, 177 [175-8]. São Paulo: Editora Cultrix). É portanto necessário integrar a sombra na
luz e compreender que nem nós, nem o mundo somos o sentido absoluto da parte,
mas devemos sim aspirar a ser o todo, um verdadeiro microcosmos. O ciclo anual das
estações e do Zodíaco é uma imagem dessa totalidade.
Em suma, quer-se que esta Primavera
reforce o espírito de renovação que a natureza nos transmite e que o humano tende
a rejeitar. A serenidade da compaixão, tornada uma natureza em acto, deve ser o
caminho e a humanidade precisa dessa renovação. O Sagrado Feminino é luz no
caminho.