Reflexões Astrológicas
Retrogradação de Saturno
Lisboa, 20h06min, 29/06/2024
Saturno
Decanato: Júpiter
Termos: Marte
Monomoiria: Lua
Saturno
inicia a sua retrogradação no signo de Peixes, no grau 20 (19º25΄), estando
Sagitário a marcar a hora para o tema de Lisboa e, deste modo, na IV, no lugar
sob a terra (ὑπόγειον), no decanato de Júpiter, nos termos
de Marte e na monomoiria da Lua. A
retrogradação começa assim de dia, abaixo do horizonte, com o Sol a rumar para
o Poente e a Lua junto ao Ponto Subterrâneo. Em 2024, o movimento retrógrado de
Saturno estender-se-á até 15 de Novembro, onde estará no grau 13 (12º41΄), nos
termos de Júpiter e na monomoiria da
Lua. Se observarmos estas dignidades, compreendermos, por um lado, a
consistência de uma natureza lunar na monomoiria
e, por outro, o reafirmar do domicílio jupiteriano de Peixes, pois o movimento
retrógrado ocorre no seu decanato e regressa aos seus termos. Saturno semeará
os dons do feminino e colherá as acções do bem.
Saturno faz o seu movimento pelo signo de Peixes de 7 de
Março de 2023 a 25 de Maio de 2025. Esteve retrógrado de 17 de Junho de 2023 a
4 Novembro de 2023 e estará agora até 15 de Novembro. Em 2025, quando já
estiver em Carneiro, estará retrógrado a partir de 13 de Julho e até 28 de
Novembro. Ora, neste período, voltará ao signo de Peixes, onde estará de 1 de
Setembro de 2025 a 14 de Fevereiro de 2026. O planeta do tempo e da
necessidade, entre a potência e a actividade (movimento retrógrado e directo),
oscilará entre a totalidade (Peixes) e a unidade (Carneiro). Existe assim um
movimento da divisão do uno à estabilização do todo, todavia, esta efectivação
do movimento será balanceada entre a expansão e a contracção. O movimento
retrógrado apela necessariamente a um ensimesmamento da sua natureza
particular.
O estoicismo utiliza o termo οἰκείωσις,
dando-lhe o sentido filosófico de apropriação de si, da prática de actos
apropriados (καθήκοντα), isto é, de actos de acordo com a
natureza. Ora este termo, com um sentido primordial de se fazer aquilo que lhe próprio,
ou seja, de agir de acordo com o seu potencial, tem uma relação significativa
com o conceito astrológico de retrogradação. Ao dar a ilusão que recua, o
planeta regressa a si mesmo, volta à origem. Se pensarmos que οἰκείωσις se
relaciona etimologicamente com o termo οἶκος,
compreendermos que existe um carácter conceptual de regresso a casa. De um
ponto de vista astrológico, a retrogradação, conciliada com a οἰκείωσις
estóica, confere a um determinado movimento ou posição planetária um valor de
afinidade, mas também de reconciliação. Existe então uma propensão natural para
tornar familiar e íntima a experiência do passado e recolher os proveitos da
revisitação. Contudo, essa é uma viagem difícil, daí o carácter potencialmente
nefasto da retrogradação.
Saturno
retrógrado, enquanto planeta do tempo e da necessidade, assume quiçá a proposta
significativa mais adequada a essa propensão. Séneca,
no De ira, diz-nos que “Existe em cada um de nós uma mente de
monarca, esperando que seja concedida liberdade à acção, mas sem que ela se
vire contra nós.” (2.31.3: Regis quisque
intra se animum habet, ut licentiam sibi dari velit, in se nolit. Kaster, R. A., 2023, How to Do the Right Thing: An Ancient Guide
to Treating People Fairly, 94-5. Princeton/
Oxford: Princeton University Press). Ora esta mente de monarca espera que a sua acção
seja livre, no entanto, sem uma consciência de si, sem se alcançar uma afinidade
ensimesmada, ou seja, sem uma reconciliação, a mente não consegue evitar que
essa mesma liberdade se vire contra ela. A incapacidade de se aceitar a
necessidade, os ditames da providência, julgando que a liberdade de acção, o
livre-arbítrio, evita o movimento da roda do destino, revela a importância da
retrogradação de Saturno. A possibilidade de reconciliação com o destino, com
os mistérios do tempo, é uma dádiva de Saturno retrógrado.
A
forma como o poder da acção vive no tempo e como está sujeito à necessidade
revela este movimento de Saturno. A mente
de monarca teme o limite da liberdade, pois teme a perda do poder. Ora a
mitologia de Cronos (Saturno) apresenta a forma ténue e efémera de como se
alcança e se perde o poder. Apolónio de Rodes
conta-nos, na Argonáutica, que Orfeu:
“Cantava como Ofíon e a Oceânide Eurínome/
foram os primeiros a dominar o nevado
Olimpo;/ como, pela força dos braços,
cederam o seu privilégio/ a Crono e a
Reia, ao caírem nas vagas do Oceano; estes/ foram então os senhores dos Titãs, deuses bem-aventurados,/ enquanto Zeus, ainda rapaz e com um coração
de criança,/habitava na caverna de
Dicte.” (I, 503-9. Apolónio de
Rodes: Argonáutica, Livros I e II, ed. A.A.Alves de Sousa, 80-1. Coimbra,
2021: Imprensa da Universidade de Coimbra).O
Olimpo foi governado por três pares divinos: Eurínome e Ofíon, Reia e Cronos e
Hera e Zeus. No meio do caminho do poder, Saturno ganhou face ao primeiro e
perdeu para o terceiro.
De uma outra perspectiva mitológica, tecida pelo desejo
de uma linhagem patriarcal e uma forte e indiscutível significação psicológica,
Cronos (Saturno) usurpa o poder do pai, Úrano, e vê o seu poder usurpado pelo
próprio filho, Zeus (Júpiter). Úrano, o deus do céu, temendo perder o poder,
obriga a sua prole a regressar ao ventre da mãe, de Gaia. A Terra, sofrendo das
dores de ter de albergar todos os seus filhos, cria uma enorme foice de aço e
incita os seus filhos a usá-la contra o pai tirano, mas, por temor, todos
recusam, com a excepção de Cronos. O titã aproveita os ímpetos lúbricos de
Úrano e, quando este deixa cair a noite celeste sobre a terra, castra-o com a
foice. Dos testículos caídos no mar, nascerá Afrodite (Vénus), daí que a
relação astrológica de Saturno e Vénus não seja das mais tensas.
Calímaco (Aetia
frag. 43)
conta-nos que a cidade de Zankle, na Sicília, hoje Messina, foi construída em
torno de uma caverna, onde no seu interior, repousava a foice que Cronos usou
para castrar o pai, Úrano, pois em grego ζάγκλον indica o objecto cortante
utilizado. Neste mito, Úrano não é o planeta “fofinho” da astrologia new age, é um deus cruel, autoritário e
misógino, que perde a masculinidade por abusar dela. Já Cronos (Saturno) surge
como aliado do Eterno Feminino, seja com a mãe Gaia, seja com a esposa Reia,
uma Grande Mãe, ou com a primogénita Héstia. Lembremo-nos que o primeiro filho
do casal é Héstia, uma deusa, a deusa do lar, do fogo sagrado. Zeus (Júpiter) é
o último a nascer. Existem aqui estruturas matrilineares determinantes e
indicadoras de poderes matriarcais mais antigos.
Neste
mito, encontramos muitos dos elementos que justificam a atribuição do género feminino
a Saturno, aquela que encontramos em Doroteu (Carmen Astrologicum, I, 10, 18-19. Cf. Figueiredo, R. M. de, 2024, Fragmentos Astrológicos, 2ª ed. revista
e aumentada, 165-77. Lisboa: Livros – Rodolfo Miguel de Figueiredo) e
que, na verdade, conferem uma certa significação ao Saturno Retrógrado. Quando
Cronos, repetindo a desmedida do pai, teme ser destronado por um dos seus
filhos, ele engole-os, guardando-os dentro de si como Gaia fizera. Esta é indiscutivelmente
uma qualidade feminina. Reia salva o bebé Zeus (Júpiter), trocando-o por uma
pedra, e esconde-o em Creta. O deus crescerá e acabará por derrotar o pai. O
sextil actual do Saturno Retrógrado em Peixes a Úrano em Touro e a quadratura
de Saturno a Júpiter em Gémeos revelam o sentido desta relação de poder entre
Úrano, Cronos (Saturno) e Zeus (Júpiter), bem como o potencial da retrogradação
de Saturno.
A
estação de retorno pelo signo de Peixes encerra em si uma dimensão escatológica
que possui também ela uma significação astro-mitológica. O planeta austero,
senhor dos grilhões da fortuna, possui também um carácter salvífico. Hesíodo, nos Trabalhos e Dias, afirma o seguinte: “Agora, se queres, contar-te-ei outra,/ com pormenor e saber; e tu recolhe em teu espírito/ que têm origem comum os deuses e os homens
mortais./ De ouro era a primeira
geração de homens mortais/ criada
pelos imortais que habitam as moradas Olímpicas./ Eram do tempo de Cronos, quando ele reinava no céu:/ como deuses viviam, com o coração liberto de
cuidados,/longe e apartados de penas
e misérias. Sem a presença da triste/ velhice,
sempre igualmente fortes de pés e braços,/ alegravam-se em festins, a recato de todos os males./ Morriam como se vencidos pelo sono. Todos os
bens/ espontaneamente, muitos e
copiosos; e eles, contentes/ e
tranquilos, partilhavam os trabalhos com alegrias infinitas,/ [ricos em rebanhos, queridos aos deuses
bem-aventurados.]/ Mas depois que a
terra cobriu os homens desta raça,/ eles
são, por vontade do grande Zeus, divindades/ benignas, subterrâneas, guardiãs para os homens mortais,/ [o que vigiam a justiça e as acções malvadas,/
vestidos de bruma, percorrendo toda a
terra,]/ distribuidores de riqueza.
Tal é a honra real que obtiveram.” (106-26. Hesíodo: Teogonia & Trabalhos e Dias, ed. A. Elias Pinheiro
& J. Ribeiro Ferreira, 97-8. Lisboa, 2014: INCM). O regresso à Idade de Ouro implica
uma transformação do humano em espírito puro ou divindade benigna e, com alguma
severidade, recuperar esse bem perdido.
Após
a prisão no Tártaro, Cronos é reabilitado pelo filho e torna-se o soberano das
Ilhas dos Bem-Aventurados (Cf. Platão, Gorgias 525a e ss, Leis 713a, Píndaro, Ode Olímpia 2.55 e ss.), as
quais poderiam incluir os Açores. No Elísio, existe uma recuperação e também
uma reconciliação com a Idade de Ouro. Não se pense porém que, com as
descrições mitológicas apresentadas, o Saturno astrológico perde o seu
carácter. A retrogradação traz sim um outro peso, uma outra gravidade. O tempo
e a necessidade revelam o que está para além do humano, das limitações, da
desmedida que ele próprio criou. Na roda da necessidade, não existe pecado
original, cada um responde pelas suas acções e é através delas que determina o
seu destino. Ora o trígono entre Saturno e Neptuno em Peixes e o Sol, Mercúrio
e Vénus em Caranguejo transporta a visão do tempo como totalidade até à sua origem,
até à fundação da realidade. O desafio desta retrogradação de Saturno é
procurar para além do esquecimento, sem a água do Letes, a raiz do destino.
A malignidade de Saturno impõe-se pela fixação tripartida
da linha, do limiar e do limite. O destino tece a linha no tempo e coloca-a no
espaço, ou seja, estabelece a relação entre Saturno e Júpiter, entre o tempo e
o espaço. A necessidade funda assim, face aos ditames da providência, o limiar
e o limite da dádiva do bem. A actual quadratura entre Saturno retrógrado em
Peixes e Júpiter em Gémeos, construída em signos mutáveis, firma a
transitoriedade de uma estruturação complexa e, por vezes, dolorosa entre o
silêncio e a palavra. Eco perde-se e Narciso também. Este é o grande aspecto
astrológico de 2024 e aquele fixa os alicerces, as colunas dóricas, da nossa
realidade actual, do templo que vemos e que temos medo de entrar. A mente de monarca deixou de estar
temorosa face à liberdade que se esfuma no horizonte, diante da imagem que
projectou, ela acredita que possui uma liberdade incondicional. Precisamos pois
de regressar àquilo que nos é próprio.
O sextil entre Saturno e Neptuno em Peixes e Marte e
Úrano em Touro confere, sob a fina égide de uma certa liberdade de acção o
perigo do afastamento radical do númen feminino, trazendo consigo o medo do
feminino. A Lua em Carneiro, no lugar onde se exalta o Sol, junto da Caput Draconis, e com a Cauda junto ao Ponto de Culminação, estando
tanto a Lua como o Dragão da Lua em quadratura ao Sol, revela a dificuldade de
afirmação do feminino, da luta pela presença e pelos seus direitos. Pesam as
amarras e o preconceito. Quando a discórdia impera e não existe harmonia nos
opostos, a retribuição, que é uma lei de Saturno, exercerá a sua acção, reequilibrando
a desmedida. De um outro modo, o trígono de Ar entre Júpiter em Gémeos, Plutão
retrógrado em Aquário e a Cauda Draconis
em Balança coloca sobre o destino a restruturação do pensamento e do discurso.
Quando a humanidade se afasta do bem, da verdade e da justiça, a destruição e a
morte vão trilhar o seu caminho, pois a senda da verdade é o fio da roda da
necessidade. O irracional não nos dá hoje o sonho e a imaginação, consagra a
ilusão e defende a ignorância.
A quadratura da Lua em Carneiro ao Sol, Mercúrio e Vénus
em Caranguejo, a par do sextil da Lua a Júpiter em Gémeos e a Plutão em
Aquário, apresenta a incapacidade de interiorizar a proposta do Saturno
retrógrado, da escatologia saturnina. A identidade centrada na imagem que tem
de si mesma, mesmo trazendo o potencial de esclarecimento e transformação, é
incapaz de aceitar esse movimento radical de origem, de reconciliação com o
destino. A quadratura entre Marte e Úrano em Touro e Plutão em Aquário confere
também um clima de conflito e tensão aos nossos dias. Os tempos sombrios que
vivemos, em que a extrema-direita galga os limites da democracia, trazendo
consigo o retrocesso em direitos e valores e uma destruturação dos pilares do
estado social e dos princípios da solidariedade e da tolerância, surge daqui
com perigo inegável. A lição do tempo é um ensinamento de Saturno, bem como o
destino como retribuição, e a humanidade está assim no limiar do seu próprio
fado.
A retrogradação de Saturno é, em suma, um tempo para revisitarmos a lição do destino. Temos, durante este período, uma oportunidade de nos reconciliarmos com tudo aquilo que antes de bebermos do Lete aceitámos. A Necessidade não agiu sozinha. Nós somos uma parte activa do lote que nos foi entregue e essa é a liberdade que contraria a mente de monarca e distorce a relação do humano com o seu destino. Saturno retrógrado dá assim gravidade ao tempo.