Mostrar mensagens com a etiqueta Saturno. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Saturno. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Reflexões Astrológicas 2024: Saturno Retrógrado

 Reflexões Astrológicas


Retrogradações


Retrogradação de Saturno

Lisboa, 20h06min, 29/06/2024

 

Saturno

Decanato: Júpiter

Termos: Marte

Monomoiria: Lua     

 

  Saturno inicia a sua retrogradação no signo de Peixes, no grau 20 (19º25΄), estando Sagitário a marcar a hora para o tema de Lisboa e, deste modo, na IV, no lugar sob a terra (ὑπόγειον), no decanato de Júpiter, nos termos de Marte e na monomoiria da Lua. A retrogradação começa assim de dia, abaixo do horizonte, com o Sol a rumar para o Poente e a Lua junto ao Ponto Subterrâneo. Em 2024, o movimento retrógrado de Saturno estender-se-á até 15 de Novembro, onde estará no grau 13 (12º41΄), nos termos de Júpiter e na monomoiria da Lua. Se observarmos estas dignidades, compreendermos, por um lado, a consistência de uma natureza lunar na monomoiria e, por outro, o reafirmar do domicílio jupiteriano de Peixes, pois o movimento retrógrado ocorre no seu decanato e regressa aos seus termos. Saturno semeará os dons do feminino e colherá as acções do bem.

  Saturno faz o seu movimento pelo signo de Peixes de 7 de Março de 2023 a 25 de Maio de 2025. Esteve retrógrado de 17 de Junho de 2023 a 4 Novembro de 2023 e estará agora até 15 de Novembro. Em 2025, quando já estiver em Carneiro, estará retrógrado a partir de 13 de Julho e até 28 de Novembro. Ora, neste período, voltará ao signo de Peixes, onde estará de 1 de Setembro de 2025 a 14 de Fevereiro de 2026. O planeta do tempo e da necessidade, entre a potência e a actividade (movimento retrógrado e directo), oscilará entre a totalidade (Peixes) e a unidade (Carneiro). Existe assim um movimento da divisão do uno à estabilização do todo, todavia, esta efectivação do movimento será balanceada entre a expansão e a contracção. O movimento retrógrado apela necessariamente a um ensimesmamento da sua natureza particular.

  O estoicismo utiliza o termo οκείωσις, dando-lhe o sentido filosófico de apropriação de si, da prática de actos apropriados (καθήκοντα), isto é, de actos de acordo com a natureza. Ora este termo, com um sentido primordial de se fazer aquilo que lhe próprio, ou seja, de agir de acordo com o seu potencial, tem uma relação significativa com o conceito astrológico de retrogradação. Ao dar a ilusão que recua, o planeta regressa a si mesmo, volta à origem. Se pensarmos que οκείωσις se relaciona etimologicamente com o termo οκος, compreendermos que existe um carácter conceptual de regresso a casa. De um ponto de vista astrológico, a retrogradação, conciliada com a οκείωσις estóica, confere a um determinado movimento ou posição planetária um valor de afinidade, mas também de reconciliação. Existe então uma propensão natural para tornar familiar e íntima a experiência do passado e recolher os proveitos da revisitação. Contudo, essa é uma viagem difícil, daí o carácter potencialmente nefasto da retrogradação.

  Saturno retrógrado, enquanto planeta do tempo e da necessidade, assume quiçá a proposta significativa mais adequada a essa propensão. Séneca, no De ira, diz-nos que Existe em cada um de nós uma mente de monarca, esperando que seja concedida liberdade à acção, mas sem que ela se vire contra nós.” (2.31.3: Regis quisque intra se animum habet, ut licentiam sibi dari velit, in se nolit. Kaster, R. A., 2023, How to Do the Right Thing: An Ancient Guide to Treating People Fairly, 94-5. Princeton/ Oxford: Princeton University Press). Ora esta mente de monarca espera que a sua acção seja livre, no entanto, sem uma consciência de si, sem se alcançar uma afinidade ensimesmada, ou seja, sem uma reconciliação, a mente não consegue evitar que essa mesma liberdade se vire contra ela. A incapacidade de se aceitar a necessidade, os ditames da providência, julgando que a liberdade de acção, o livre-arbítrio, evita o movimento da roda do destino, revela a importância da retrogradação de Saturno. A possibilidade de reconciliação com o destino, com os mistérios do tempo, é uma dádiva de Saturno retrógrado.

  A forma como o poder da acção vive no tempo e como está sujeito à necessidade revela este movimento de Saturno. A mente de monarca teme o limite da liberdade, pois teme a perda do poder. Ora a mitologia de Cronos (Saturno) apresenta a forma ténue e efémera de como se alcança e se perde o poder. Apolónio de Rodes conta-nos, na Argonáutica, que Orfeu: “Cantava como Ofíon e a Oceânide Eurínome/ foram os primeiros a dominar o nevado Olimpo;/ como, pela força dos braços, cederam o seu privilégio/ a Crono e a Reia, ao caírem nas vagas do Oceano; estes/ foram então os senhores dos Titãs, deuses bem-aventurados,/ enquanto Zeus, ainda rapaz e com um coração de criança,/habitava na caverna de Dicte.” (I, 503-9. Apolónio de Rodes: Argonáutica, Livros I e II, ed. A.A.Alves de Sousa, 80-1. Coimbra, 2021: Imprensa da Universidade de Coimbra).O Olimpo foi governado por três pares divinos: Eurínome e Ofíon, Reia e Cronos e Hera e Zeus. No meio do caminho do poder, Saturno ganhou face ao primeiro e perdeu para o terceiro.

  De uma outra perspectiva mitológica, tecida pelo desejo de uma linhagem patriarcal e uma forte e indiscutível significação psicológica, Cronos (Saturno) usurpa o poder do pai, Úrano, e vê o seu poder usurpado pelo próprio filho, Zeus (Júpiter). Úrano, o deus do céu, temendo perder o poder, obriga a sua prole a regressar ao ventre da mãe, de Gaia. A Terra, sofrendo das dores de ter de albergar todos os seus filhos, cria uma enorme foice de aço e incita os seus filhos a usá-la contra o pai tirano, mas, por temor, todos recusam, com a excepção de Cronos. O titã aproveita os ímpetos lúbricos de Úrano e, quando este deixa cair a noite celeste sobre a terra, castra-o com a foice. Dos testículos caídos no mar, nascerá Afrodite (Vénus), daí que a relação astrológica de Saturno e Vénus não seja das mais tensas.

  Calímaco (Aetia frag. 43) conta-nos que a cidade de Zankle, na Sicília, hoje Messina, foi construída em torno de uma caverna, onde no seu interior, repousava a foice que Cronos usou para castrar o pai, Úrano, pois em grego ζάγκλον indica o objecto cortante utilizado. Neste mito, Úrano não é o planeta “fofinho” da astrologia new age, é um deus cruel, autoritário e misógino, que perde a masculinidade por abusar dela. Já Cronos (Saturno) surge como aliado do Eterno Feminino, seja com a mãe Gaia, seja com a esposa Reia, uma Grande Mãe, ou com a primogénita Héstia. Lembremo-nos que o primeiro filho do casal é Héstia, uma deusa, a deusa do lar, do fogo sagrado. Zeus (Júpiter) é o último a nascer. Existem aqui estruturas matrilineares determinantes e indicadoras de poderes matriarcais mais antigos.

  Neste mito, encontramos muitos dos elementos que justificam a atribuição do género feminino a Saturno, aquela que encontramos em Doroteu (Carmen Astrologicum, I, 10, 18-19. Cf. Figueiredo, R. M. de, 2024, Fragmentos Astrológicos, 2ª ed. revista e aumentada, 165-77. Lisboa: Livros – Rodolfo Miguel de Figueiredo) e que, na verdade, conferem uma certa significação ao Saturno Retrógrado. Quando Cronos, repetindo a desmedida do pai, teme ser destronado por um dos seus filhos, ele engole-os, guardando-os dentro de si como Gaia fizera. Esta é indiscutivelmente uma qualidade feminina. Reia salva o bebé Zeus (Júpiter), trocando-o por uma pedra, e esconde-o em Creta. O deus crescerá e acabará por derrotar o pai. O sextil actual do Saturno Retrógrado em Peixes a Úrano em Touro e a quadratura de Saturno a Júpiter em Gémeos revelam o sentido desta relação de poder entre Úrano, Cronos (Saturno) e Zeus (Júpiter), bem como o potencial da retrogradação de Saturno. 

  A estação de retorno pelo signo de Peixes encerra em si uma dimensão escatológica que possui também ela uma significação astro-mitológica. O planeta austero, senhor dos grilhões da fortuna, possui também um carácter salvífico. Hesíodo, nos Trabalhos e Dias, afirma o seguinte: “Agora, se queres, contar-te-ei outra,/ com pormenor e saber; e tu recolhe em teu espírito/ que têm origem comum os deuses e os homens mortais./ De ouro era a primeira geração de homens mortais/ criada pelos imortais que habitam as moradas Olímpicas./ Eram do tempo de Cronos, quando ele reinava no céu:/ como deuses viviam, com o coração liberto de cuidados,/longe e apartados de penas e misérias. Sem a presença da triste/ velhice, sempre igualmente fortes de pés e braços,/ alegravam-se em festins, a recato de todos os males./ Morriam como se vencidos pelo sono. Todos os bens/ espontaneamente, muitos e copiosos; e eles, contentes/ e tranquilos, partilhavam os trabalhos com alegrias infinitas,/ [ricos em rebanhos, queridos aos deuses bem-aventurados.]/ Mas depois que a terra cobriu os homens desta raça,/ eles são, por vontade do grande Zeus, divindades/ benignas, subterrâneas, guardiãs para os homens mortais,/ [o que vigiam a justiça e as acções malvadas,/ vestidos de bruma, percorrendo toda a terra,]/ distribuidores de riqueza. Tal é a honra real que obtiveram.” (106-26. Hesíodo: Teogonia & Trabalhos e Dias, ed. A. Elias Pinheiro & J. Ribeiro Ferreira, 97-8. Lisboa, 2014: INCM). O regresso à Idade de Ouro implica uma transformação do humano em espírito puro ou divindade benigna e, com alguma severidade, recuperar esse bem perdido.

  Após a prisão no Tártaro, Cronos é reabilitado pelo filho e torna-se o soberano das Ilhas dos Bem-Aventurados (Cf. Platão, Gorgias 525a e ss, Leis 713a, Píndaro, Ode Olímpia 2.55 e ss.), as quais poderiam incluir os Açores. No Elísio, existe uma recuperação e também uma reconciliação com a Idade de Ouro. Não se pense porém que, com as descrições mitológicas apresentadas, o Saturno astrológico perde o seu carácter. A retrogradação traz sim um outro peso, uma outra gravidade. O tempo e a necessidade revelam o que está para além do humano, das limitações, da desmedida que ele próprio criou. Na roda da necessidade, não existe pecado original, cada um responde pelas suas acções e é através delas que determina o seu destino. Ora o trígono entre Saturno e Neptuno em Peixes e o Sol, Mercúrio e Vénus em Caranguejo transporta a visão do tempo como totalidade até à sua origem, até à fundação da realidade. O desafio desta retrogradação de Saturno é procurar para além do esquecimento, sem a água do Letes, a raiz do destino.  

  A malignidade de Saturno impõe-se pela fixação tripartida da linha, do limiar e do limite. O destino tece a linha no tempo e coloca-a no espaço, ou seja, estabelece a relação entre Saturno e Júpiter, entre o tempo e o espaço. A necessidade funda assim, face aos ditames da providência, o limiar e o limite da dádiva do bem. A actual quadratura entre Saturno retrógrado em Peixes e Júpiter em Gémeos, construída em signos mutáveis, firma a transitoriedade de uma estruturação complexa e, por vezes, dolorosa entre o silêncio e a palavra. Eco perde-se e Narciso também. Este é o grande aspecto astrológico de 2024 e aquele fixa os alicerces, as colunas dóricas, da nossa realidade actual, do templo que vemos e que temos medo de entrar. A mente de monarca deixou de estar temorosa face à liberdade que se esfuma no horizonte, diante da imagem que projectou, ela acredita que possui uma liberdade incondicional. Precisamos pois de regressar àquilo que nos é próprio.

  O sextil entre Saturno e Neptuno em Peixes e Marte e Úrano em Touro confere, sob a fina égide de uma certa liberdade de acção o perigo do afastamento radical do númen feminino, trazendo consigo o medo do feminino. A Lua em Carneiro, no lugar onde se exalta o Sol, junto da Caput Draconis, e com a Cauda junto ao Ponto de Culminação, estando tanto a Lua como o Dragão da Lua em quadratura ao Sol, revela a dificuldade de afirmação do feminino, da luta pela presença e pelos seus direitos. Pesam as amarras e o preconceito. Quando a discórdia impera e não existe harmonia nos opostos, a retribuição, que é uma lei de Saturno, exercerá a sua acção, reequilibrando a desmedida. De um outro modo, o trígono de Ar entre Júpiter em Gémeos, Plutão retrógrado em Aquário e a Cauda Draconis em Balança coloca sobre o destino a restruturação do pensamento e do discurso. Quando a humanidade se afasta do bem, da verdade e da justiça, a destruição e a morte vão trilhar o seu caminho, pois a senda da verdade é o fio da roda da necessidade. O irracional não nos dá hoje o sonho e a imaginação, consagra a ilusão e defende a ignorância.

  A quadratura da Lua em Carneiro ao Sol, Mercúrio e Vénus em Caranguejo, a par do sextil da Lua a Júpiter em Gémeos e a Plutão em Aquário, apresenta a incapacidade de interiorizar a proposta do Saturno retrógrado, da escatologia saturnina. A identidade centrada na imagem que tem de si mesma, mesmo trazendo o potencial de esclarecimento e transformação, é incapaz de aceitar esse movimento radical de origem, de reconciliação com o destino. A quadratura entre Marte e Úrano em Touro e Plutão em Aquário confere também um clima de conflito e tensão aos nossos dias. Os tempos sombrios que vivemos, em que a extrema-direita galga os limites da democracia, trazendo consigo o retrocesso em direitos e valores e uma destruturação dos pilares do estado social e dos princípios da solidariedade e da tolerância, surge daqui com perigo inegável. A lição do tempo é um ensinamento de Saturno, bem como o destino como retribuição, e a humanidade está assim no limiar do seu próprio fado.

  A retrogradação de Saturno é, em suma, um tempo para revisitarmos a lição do destino. Temos, durante este período, uma oportunidade de nos reconciliarmos com tudo aquilo que antes de bebermos do Lete aceitámos. A Necessidade não agiu sozinha. Nós somos uma parte activa do lote que nos foi entregue e essa é a liberdade que contraria a mente de monarca e distorce a relação do humano com o seu destino. Saturno retrógrado dá assim gravidade ao tempo.    

segunda-feira, 6 de março de 2023

Reflexões Astrológicas 2023: Saturno em Peixes

  Reflexões Astrológicas


Lunações


Saturno em Peixes

Lisboa, 13h35min, 07/03/2023

 

Sol-Lua

Decanato: Saturno

Termos: Vénus

Monomoiria: Júpiter  

 


  O primeiro ingresso de Saturno em Peixes ocorre com Caranguejo a marcar a hora, para o tema de Lisboa e, deste modo, na IX, no Lugar de Deus, no Lugar do Deus Sol, no decanato de Saturno, nos termos de Vénus e na monomoiria de Júpiter. O ingresso dá-se assim acima do horizonte e cerca de seis horas após o nascer-do-sol. Saturno encontra-se, deste modo, favorecido por estar no seu próprio segmento (αἵρεσις) e no lugar do regente do segmento, o Sol. O estudo deste ingresso e do seu tema é essencial para a compreensão dos tempos que se avizinham. A chegada de Saturno a Peixes é o acontecimento astrológico mais importante de 2023, seguido pelo ingresso de Júpiter em Touro em Maio, criando-se, nesse momento, uma harmonia entre os planetas e os elementos Água e Terra. No tempo (Saturno) e no espaço (Júpiter), o Eterno Feminino tornar-se-á a dádiva da transformação.

  Primeiramente é necessário situar, no tempo cronológico, este ingresso de Saturno em Peixes que acontece em dois momentos. O primeiro ingresso ocorre de 7 de Março de 2023 a 25 de Maio de 2025 e o segundo, mais curto, de 1 de Setembro de 2025 a 14 de Fevereiro de 2026. Passará por três momentos em que estará retrógrado: o primeiro, de 17 de Junho a 4 de Novembro de 2023; o segundo, de 29 de Junho a 15 de Novembro de 2024; e o terceiro, de 13 de Julho a 28 de Novembro de 2025 e que inclui, como é perceptível pelos períodos anteriormente mencionados, o primeiro ingresso de Saturno em Carneiro e o retorno a Peixes. Neste dois períodos, convém também assinalar a passagem de Júpiter pelos signos de Carneiro a Caranguejo e o ingresso de Neptuno em Carneiro (primeiro de 30 de Fevereiro a 22 de Outubro de 2025 e depois a partir de 26 de Janeiro de 2026), isto para não falar do ingresso de Plutão em Aquário, a 23 de Março de 2023.

  O ingresso de Saturno, do planeta do Tempo e da Necessidade, em Peixes, no signo da totalidade, transporta consigo um sentido natural de conclusão, de término ou fim de ciclo. Segundo a ordem vernal, Peixes é o último signo e, assim sendo, a chegada de Saturno a este signo tem necessariamente a significação do fim, mas também a da repetição, da estruturação do mesmo, da criação de uma unidade de sentido, resultante da assimilação da totalidade em torno do propósito que a Necessidade estabelece. Ora essa ideia de propósito une tanto a regência de um deus do tempo como a de um deus agrícola. Esse é também o sentido do aforismo de Novalis que diz que “o fragmento é semente”, ou seja, a singularidade de um fragmento de tempo torna-se quer o potencial, quer a finalidade da proposta que ele próprio apresenta. A Necessidade é portanto uma totalidade que permeia toda e qualquer parte.

  Se a respeito de Peixes já discutimos o imperativo de refundar a sua significação (v. Reflexão Astrológica da Lua Nova de Peixes), então, no que a Saturno concerne, confirma-se o mesmo imperativo. A questão em torno da refundação do sentido não é exclusiva deste planeta, mas é neste caso mais evidente. A significação planetária, e também zodiacal, tal como a conhecemos, resulta, de um modo geral, de um modelo categórico da física aristotélica ou do eclectismo ptolemaico. Porém, existiam, na Antiguidade, outros modelos interpretativos, nomeadamente o de Platão e o do platonismo. Segundo Plotino, Saturno simbolizaria o Intelecto (Νοῦς) e Zeus, a Alma (Enéadas V, I, 4). Existia pois uma glorificação de Saturno por este não representar os poderes terrenos, mas sim o poder mais puro do pensamento.

  Klibansky, Panofsky e Saxl dizem-nos que “Saturno possuía a dupla propriedade de ser o antepassado de todos os outros deuses planetários e de ter o seu trono no céu superior. Essas duas qualidades, que devem ter estado originalmente conectadas, garantiram-lhe uma supremacia, sem qualquer contestação, no sistema neoplatónico, que se esforçou neste caso, como em outros, por reconciliar as visões platónicas com as aristotélicas. A hierarquia dos princípios metafísicos que remontava a Platão, segundo a qual o genitor tinha precedência sobre o gerado, estava ligada ao princípio aristotélico do pensamento "topológico", segundo o qual uma posição mais elevada no espaço significava maior valor metafísico.” (Saturn and Melancholy, 1979: 152-3. Nendeln/ Liechtenstein: Kraus Reprint). Esta proeminência de Saturno, a par da atribuição de Plotino, desperta uma outra questão, visto que normalmente o Intelecto é o Sol.

  Existiu uma tradição babilónica, sobretudo num período de cerca de 750 a 612 AEC, que designava Saturno como “o Sol”, Šamaš, em vez da nomenclatura astronómica mais comum (cf. van der Sluijs, M. A. & P. James, 2013, “Saturn as the Sun of Night in Ancient Near Eastern Tradition” in Aula Orientalis 31.2, 279-321). Esta designação torna Saturno o “Sol da Noite”, em oposição ao próprio Sol, o “Sol do Dia”, e pode ter a sua origem num dos elementos astrológicos radicalmente babilónico: as exaltações planetárias (as outras são o aspecto de trígono e as dodecatemoria). O lugar de exaltação do Sol, Carneiro, opõe-se ao da exaltação de Saturno, Balança. Esse eixo pode ser assim aquele que une o “Sol do Dia” e o “Sol da Noite” e a tradição deste sentido de Saturno persiste, mesmo que de forma discreta, na tradição greco-romana. Ptolomeu, por exemplo, diz que os habitantes do território entre a Mesopotâmia e a Índia chamavam à estrela de Vénus Ísis e à de Saturno Mitra Hélios (Apotelesmática II, 3).

  Por outro lado, e seguindo também uma interpretação que é quase oposta ao Saturno aristotélico, temos o Saturno feminino, algo que já abordei por diversas vezes (Fragmentos Astrológicos, 2020: 167-72; Reflexões Astrológicas 2021: Parte II, 2022: 30-1). Esta é a tradição cuja referência mais antiga pertence a Doroteu de Sídon (Carmen Astrologicum, I, 10, 18-19) e que pode ter ainda uma matriz de sentido na proeminência do númen feminino no reinado de Saturno. A astrologia precisa pois de uma metodologia interdisciplinar para melhor compreender os seus conceitos. O estudo rigoroso da mitologia pode, desta forma, contribuir para refundação desses mesmos conceitos.

  No tempo de Cronos/Saturno, a sua mãe Gaia e a sua esposa Reia eram duas deusas poderosas, que não se apresentavam com uma submissão ao paradigma androcêntrico, como a que encontramos nos deuses olímpicos. Ora esse factor está presente em Manílio quando coloca a Mãe dos Deuses (Reia/Cíbele), a par de Júpiter, como regente divino do signo de Leão (Astronomica II, 447). Se pensarmos que, do outro lado do eixo, está Saturno como regente astrológico de Aquário, encontramos então um elo de ligação com Saturno como o “Sol da Noite”.     

  Compreendemos, desta forma, que as significações não são lineares e que, ao longo dos tempos, transmitem uma prevalência interpretativa que não é, no entanto, exclusiva. Existem outros sentidos que podem e devem ser recuperados. De um ponto de vista mitológico ou astro-mitológico, encontramos ainda uma outra tradição que nos concede um elemento de passagem entre o próprio Saturno e o Saturno em Peixes. Para além do facto de Saturno ser o regente da Idade de Ouro, ele é também o rei da Ilhas dos Bem-Aventurados, ou Ilhas Abençoadas.

  Neste mito (e.g. Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias 156 e ss.; Platão, Górgias 525a e ss.), após o seu destronamento e prisão no Tártaro, Cronos/Saturno terá sido reabilitado e terá encontrado um novo trono nas Ilhas dos Bem-Aventurados que, segundo alguns, incluiriam os nossos Açores ou toda a Macaronésia. Nestas ilhas, onde se encontram os Campos Elísios, viveriam aqueles que não têm de perturbar a terra com o vigor das mãos e que vivem uma existência sem lágrimas (Píndaro, Ode Olímpia 2.55 e ss.). Este mito indica, sem grande esforço interpretativo, Saturno em Peixes, a Necessidade sobre a Totalidade.

  O tema do ingresso de Saturno em Peixes, para a hora de Lisboa, tem uma particularidade deveras interessante, pois ao fixar a hora em Caranguejo reproduz a disposição de lugares do Thema Mundi. Ora, desta forma, Saturno vai cair no lugar de Peixes, a IX, o Lugar de Deus. Esta posição torna mais significativa uma certa diminuição da malignidade de Saturno, uma vez que em Peixes está no domicílio de Júpiter, aquele mitologicamente ocupou o seu lugar, e está também fora de seu segmento de luz e num signo feminino. A condição de Saturno pode assim, se a humanidade permitir, conceder à totalidade a Necessidade, ou seja, pode conferir a dádiva da aceitação do destino, a sua interiorização. Se conhecermos o propósito, a finalidade, o sentido do todo, o caminho adquire um outro valor e transforma toda a acção.  

  Este tema, considerando-se os eixos de ascensão e culminação, apresenta uma beleza singular e uma intensa expressão do feminino que, tendo em conta os sentidos alternativos para Saturno, alcança uma proposta significativa profunda. Primeiro temos o eixo pós-plenilúnio que une a Lua em Virgem a Saturno, Mercúrio, ao Sol e a Neptuno em Peixes, estendendo esta concentração até ao Lugar da Deusa, a III, onde a Lua se encontra.   

  De seguida, temos os dois trígonos: o da Água que une o ponto que marca a Hora em Caranguejo aos planetas em Peixes e à Cauda Draconis em Escorpião, em que o Destino se torna a vida e a fé, a sabedoria; e o de Terra que, por sua vez, une a Lua em Virgem a Úrano e à Cauda Draconis em Touro e a Plutão em Capricórnio, a caminho do poente, ou seja, um triângulo que faz da Deusa, do Eterno Feminino, o espírito que se erguerá sobre as cinzas do velho mundo e a aurora de uma Nova Era. Por fim, face a estes dois trígonos, temos os seis sextis que resultam destas ligações, destas harmonias.

  Existem, no entanto, dois elementos que divergem desta unidade entre a Água e a Terra. Um diverge, convergindo, pois afirma a acção do bem sobre esta proposta de sentido. Vénus e Júpiter em Carneiro permitem que o bem, a beleza e justiça se tornem actividade. Desde que a humanidade queira, a efectivação da dádiva é uma possibilidade. Os benéficos são os astros mais altos, raiando de esperança, de luz, mas colidindo com a morte sobre o Ocaso (Plutão em Capricórnio), sobre o seu poder. A destruição é o perigo de uma actividade movida pela desmedida. No entanto, uma vez mais, será Marte em Gémeos a expressar uma pulsão de divergência disruptiva, firmada pelos raios quadrangulares aos planetas em Peixes e à Lua em Virgem. A malignidade do pensamento dual que finge querer a mudança, quando o que faz é ferir e separar, continua a ser uma ameaça real. As teias de desinformação que alimentam o ódio, a xenofobia, a misoginia, o racismo, a intolerância são o abismo do humano. Porém, a acção do bem, dos actos que promovem a igualdade, a liberdade e a fraternidade continuam a ser o outro lado da barricada (sextil de Marte em Gémeos a Vénus e Júpiter em Carneiro).

  Saturno ingressa em Peixes no momento em que, neste signo, se encontram o Sol, Mercúrio e Neptuno. Esta concentração de luz, a partir do Lugar de Deus, apresenta-se como o fogo na câmara interna, no Santo dos Santos. Desse santuário profundo, a luz e a necessidade, a palavra e o amor universal podem alcançar a humanidade, a totalidade. Se considerarmos Saturno como o Intelecto, o que não diverge da ideia estóica de Destino ou a ideia platónica de Necessidade, podemos observar então a sua acção como parte deste princípio que permeia o mundo e que tece uma harmonia, uma simpatia, entre o microcosmos e o macrocosmos. Saturno em Peixes é, em suma, a Necessidade ou o Destino na totalidade.  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Saturno, a Saturnália e o Tempo de Excepção: Exemplo Textual



Versnel, H. S., Inconsistencies in Greek and Roman Religion, vol. II: Transition and Reversal in Myth and Ritual
, 155-6.


Among the many ways of visualising a reversal, none is so obvious, unequivocal and popular as the reversal in attire. The most easy and effective way to turn reality upside down is to change your clothes for the garment of the opposite sex or of social antipodes, or for distinguishing marks of animals or gods. Circumstantial information has been presented on these forms of disguise and their function in the first chapter of this book. By thus inverting normality the new situation is marked as exceptional and abnormal. It is noteworthy that among the signs that mark Greek sacrifices as exceptional or extraordinary-such as the absence of wine or the presence of milk-one is that the sacrificers do not wear the wreaths that are normally one of the most characteristic signs of sacrificial ceremonies. This provides a perfect parallel for the reversal of the Saturnian sacrifice. During the festival everything is out of order, above all clothing regulations. Moreover, Saturn himself is the marker of abnormality par excellence. His veiled head-irrespective whether this is an originally Roman element or a Greek heritagestamps him as 'different' and exceptional. Another way of expressing a reversal of ordinary life is by imitating odd customs of foreign nations. Romans could and did give expression to abnormality by allusions to 'the Greek way of life'. In the (Roman) fabula togata it was not allowed to stage slaves that outwitted their masters, whereas this was accepted in the fabula palliata, the pallium conveniently evoking a Greek atmosphere. In Greece, as any decent Roman knew, odd things happened that were quite incompatible with Roman customs. Graeculi just had a habit of mixing up the normal order. Viewed in this light, it is very well possible and in my view becomes very likely that sacrificing ritu Graeco was just another reference to the eccentric nature of the total ritual. This supposition is supported by a tiny piece of evidence on Saturn himself which has remained unnoticed so far. Apart from the covering of his head there is another trait that sets him apart. The ivory statue in his temple was clothed with a purple-coloured cloak, as Tertullian, Testim. anim. 2, 137, 12, testifies. His exact words are: pallio Saturni coccinato. It is true that in the course of time pallium has become the term for any kind of garment. In this case, however, a positively un-Roman pallium is meant - the extrinsecus habitus sharply censured by the same Tertullian, De pallio 4, 9: Galatici ruboriss uperiectio (a wrap of Galatian red). Now, the pallium never quite lost the negative connotations of its Greek or, more generally, foreign flavour. It characterized (Greek) philosophers, especially the Cynics and other dubious specimens, and prostitutes; in short, those marginals who refused to subject themselves to the norms and codes of civilized society. A fortiori a purple pallium was the very opposite of what could be regarded as normal Roman custom.


Versnel, H.S., 1993, Inconsistencies in Greek and Roman Religion, vol. II: Transition and Reversal in Myth and Ritual. Leiden, Nova Iorque, Köln: E. J. Brill.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Saturno e a Melancolia - A Origem das Qualidades Saturninas: Exemplo Textual

 


Klibansky, R., E. Panofsky & F. Saxl, 1979, Saturn and Melancholy,137-8.


The Greeks at first developed the planetary doctrine transmitted to them in classical times in a purely scientific direction. In this, an astrophysical viewpoint seems from the beginning to have been adopted simultaneously with the purely astronomical. 

Epigenes of Byzantium, who is thought to have lived in early Alexandrian times and therefore to have been one of the oldest mediators between Babylon and Hellas, classified Saturn as "cold and windy". The epithet "cold", according both with the planet's great distance from the sun and with the god's great age adhered to Saturn throughout the years and was never questioned. The property of dryness, implied by "windy", on the other hand, came into conflict with the fact that Pythagorean and Orphic texts described the mythical Kronos as just the opposite, namely, as the god of rain or of the sea; and this accounts for the fact that in later, especially in astrological literature, we so often encounter the singular definition "natura frigida et sicca, sed accidentaliter humida", or something of the sort - a contradiction which can only be explained, if at all, with the help of laborious argumentation. 

Whether it was really Posidonius who reduced the elemental qualities of the planets to an orderly system, we would not venture to decide, but it would be safe to say that it was, within the framework of the Stoic system that the doctrine was efldowed with its full meaning. Not till the formation of a cosmological system in which the opposites heat and cold determined the basic structure of the universe, did the qualities hitherto more or less arbitrarily tributed to the stars reveal a general and universally applicable law of nature, valid for both heavenly and earthly things and therefore establishing for the first time a rationally comprehensible connexion between the one set and the other. To Saturn, which was cold because of its distance from the sun (whether the Stoics thought it moist or dry we do not know), everything cold on earth was first related and finally subordinated ; and it is clear that this embodying of planetary qualities in a universal framework of natural laws must have brought the basic tenet of astrology, namely, the dependence of all earthly things and events upon the "influence" of the heavenly bodies, considerably nearer to Greek thought. 



Klibansky, R., E. Panofsky & F. Saxl, 1979, Saturn and Melancholy. Nendeln/ Liechtenstein: Kraus Reprint.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A Relação Saturno/Lua a partir da Leitura de Liz Greene do Liber Novus de Jung: Exemplo Textual

Jung, The Red Book: Liber Novus, Elijah and Salome.


Greene, L., 2018, The Astrological World of Jung's Liber Novus: Daimons, Gods and the Planetary Journey,75.


Like Elijah, the Scholar lives in isolation with his daughter, far from the world with its extraverted, banal life. Unlike Elijah, he is neither a prophet nor a magus; he is a grief-stricken recluse, echoing Ficino’s association of Saturn with grief as well as solitude. In the ‘small, old castle’, the hall is lined with ‘black chests and wardrobes’ – a colour Jung associated directly with Saturn – while the Old Scholar’s study reveals ‘bookshelves on all four walls and a large writing desk, at which an old man sits wearing a long black robe’. The sheets in the tiny chamber in which Jung is offered a bed are ‘uncommonly rough’, and the pillow is hard. Associations of the colour black with Saturn abound in antiquity as well as throughout the medieval and early modern periods, and today the association still lingers in the present-day attribution of black gemstones such as jet, obsidian, and black onyx to this planetary god.

The air in the room is heavy, and the Old Scholar seems ‘careworn’. He has given himself tirelessly ‘to the material of science and research, anxiously and equably appraising, as if he personally had to represent the working out of scientific truth’. In this description Jung seems to be recreating the portrayal of Saturn given by a long list of astrological authors over many centuries, but in an extreme and highly personalised form. Jung at first believes the Old Scholar leads ‘an ideal though solitary existence’. Although no image of him appears in Liber Novus – only his stone castle – his description mirrors Waite’s image of The Hermit in the Major Arcana of the Tarot, standing alone in a barren, mountainous landscape with a lantern and a staff. 

But the Scholar, although he belongs to the same chain of senex images as Elijah, is a sad and self-destructive figure. His personality is lopsided, and he seems to personify what Jung experienced as his own rigidity of intellect – the same rigidity that ‘poisoned’ the giant Izdubar. The Scholar is ‘petrified in his books, protecting a costly treasure and enviously hiding it from all the world’. The old man keeps his daughter imprisoned, fearful of allowing her to confront the dangers of worldly life. (...)




Greene, L., 2018, The Astrological World of Jung's Liber Novus: Daimons, Gods and the Planetary Journey. Londres/ Nova Iorque: Routledge.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

As Órbitas de Júpiter e Saturno e os Ciclos de Vida



  As órbitas de Júpiter e de Saturno, tanto na astrologia tradicional como na astrologia moderna ou contemporânea, são porventura as que melhor definem o ser humano e os seus ciclos de vida, pois numa análise do tempo são aquelas que melhor se relacionam com a extensão da vida. As órbitas de Mercúrio, de Vénus e Marte determinam mais o quotidiano que os ciclos de vida e as órbitas de Úrano, de Neptuno e Plutão apontam para uma análise que ultrapassa os limites de uma vida, sendo portanto mais relevantes para uma astrologia aplicada à história que a uma astrologia individual. Porém, estes planetas contribuem de forma parcelar para ideia de ciclos de vida.

  Úrano completa o seu retorno em cerca de 84 anos. Dessa forma, teremos uma oposição de Úrano aos 42 anos, um sextil aos 14 e aos 70, uma quadratura aos 21 e aos 63 e um trígono aos 28 e aos 56. Nos casos de Neptuno e de Plutão, já não consideramos um ciclo completo, mas sim alguns segmentos da sua órbita. No caso de Neptuno, podemos avaliar um sextil aos 27 anos, uma quadratura, aos 41, um trígono, aos 54 e uma oposição, aos 82. Já Plutão apresenta um sextil, aos 41, uma quadratura, aos 62 e um trígono, aos 82. Naturalmente, o aumento da esperança média de vida leva a que, por vezes, tenha de se ampliar a escala de tempo avaliada. De fora, fica a Lua e o Sol, pois o seu movimento, real e aparente, traduz, mais que um ciclo de vida, uma condição de possibilidade para a própria vida, daí que sejam designados como luminares. O Sol e a Lua, na relação entre o tempo e a vida, representam a medida e o valor da luz e é dessa forma que devem ser estudados. 

  O espaço e o tempo são as categorias expressas por Júpiter e Saturno e pelas suas órbitas. A posição relativa destes planetas no sistema solar aponta para esse carácter intermédio ou demiúrgico. Existe assim um valor de passagem nestes dois astros, pois indicam o espaço e o tempo que medeiam os dois segmentos: aquele constituído por Mercúrio, Vénus e Marte e aquele formado por Úrano, Neptuno e Plutão. Exclui-se a Terra, a Lua e o Sol pelas razões acima indicadas e pelo de facto de uns serem o espelho dos outros, pois Mercúrio une-se a Úrano, Vénus, a Neptuno e Marte, a Plutão. Por outro lado, a órbita de Júpiter, medida em 4.331,572 dias (11 anos, 10 meses e 10 dias), ou seja, cerca de 12 anos, e a órbita de Saturno, medida em 10.759,22 dias (29 anos, 5 meses e 14 dias), introduzem uma unidade simbólica com o Sol e a Lua.

  A relação entre o Sol e Júpiter é facilmente compreensível, tanto de forma empírica como matemática, pois se dividirmos a órbita de Júpiter pelo período sideral do Sol (365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9,8 segundos) encontramos um número que arredondado dá 12. O doze expressa a segmentação do Sol e de Júpiter: um, em meses e o outro, em anos. Por outro lado, se dividirmos a órbita de Saturno pelo período sinódico da Lua (29,530589 dias) chegamos ao resultado de 364, um número muito próximo da unidade do ano solar. Neste caso, também se pode relacionar, de modo imediato, a órbita de Saturno, de cerca de 29 anos e 5 meses, com o movimento orbital aparente de 29,5 dias da Lua. Esta relação foi vertida na mitologia, pois Saturno (Cronos) assume um carácter ctónico, próximo do feminino e da Lua, e Júpiter (Zeus) declara sua natureza olímpica e solar. Segundo a lição de Nietzsche, Saturno e a Lua estão para dionisíaco como Júpiter e o Sol estão para apolíneo. 

  As tabelas apresentadas resumem as órbitas de Júpiter e Saturno e traduzem a sua afinidade com os ciclos de vida. No entanto, o modelo indicado representa um sistema-padrão que, por essa mesma razão, não pode contemplar algumas especificidades. A primeira resulta da divisão aritmética da órbita sem considerar a sua natureza elíptica, a qual, embora seja a real, não introduz o simbolismo do círculo que é tão caro à linguagem astrológica. A segunda, e que conduz a uma diferença quantitativa no cálculo astrológico, resulta do facto de a órbita considerada ser a sideral e não aquela que é representada na eclíptica, daí que entre o valor dos ciclos e aquele expresso pelo trânsito astrológico possa existir uma pequena discrepância. Contudo, existe uma relação dinâmica, uma representação de tempo e vida, entre a posição orbital de um astro em torno do Sol e a posição simbólica desse mesmo astro na eclíptica. 

  Devemos considerar portanto os períodos de tempo entre uma e outra como uma linguagem de vida, não apenas aquela que a biologia determina, mas sim aquela que se torna uma génese de sentido. Nem o astrólogo se pode fechar no mapa astrológico, gerado por um software, nem o astrónomo se pode cingir aos cálculos, é importante conservar um certo deslumbramento. O olhar o céu deve preservar um espanto inaugural. Por fim, as tabelas, por  se firmarem no movimento destes astros em torno do Sol, não referem os períodos de retrogradação. Estes, à semelhança das cartas invertidas no Tarot, fixam-se numa noção de perspectiva e sentido, contrário ao valor do real, mas sem que por isso percam o seu significado. Revelam a dicotomia elementar que persiste na natureza. 

  Em suma, deve-se tecer uma afinidade electiva entre os períodos de tempo resultantes da órbita destes astros e os que resultam do sistema astrológica. A esse tempo singular, expresso por ciclos de vida, atribui-se um carácter de transformação.



segunda-feira, 10 de abril de 2017

O Número de Casamentos segundo Doroteu de Sidon

Doroteu de Sidon
(Século I da E.C.)
Pentateuco 
Ou
Carmen Astrologicum
Livro II, 5
Acerca do Número de Casamentos

Pingree, David (Ed.),
Dorothei Sidonii Carmen Astrologicum, p. 50.

Se se desejar saber com quantas mulheres vai um homem casar, então deve-se marcar do Meio do Céu até Vénus, o número de planetas que estiver entre os dois indica o número de mulheres com quem irá casar, porém, sempre que se encontrar Saturno, deve-se esperar frieza e tensão, e se se encontrar Marte, deve-se esperar a morte, a menos que sobre ele existam aspectos benéficos. Nas natividades das mulheres, se se desejar saber com quantos homens vai casar, então deve-se contar do Meio do Céu até Marte, mas se Marte estiver no Meio do Céu, deve-se contar do Meio do Céu até Júpiter, o número de planetas que estiver entre os dois indica o número de homens com quem vai casar. Se, a partir do Meio do Céu, Vénus estiver cadente, pode-se dizer que existirá pouca constância do homem para com as mulheres, o mesmo se pode afirmar em relação às mulheres se Marte estiver na sétima.

(...)

Doroteu de Sidon, Carmen Astrologicum, II, 5.  Tradução RMdF.


Versão Utilizada:
Pingree, David (Ed.), Dorothei Sidonii Carmen Astrologicum. Leipzig: Teubner, 1976, p. 50 e 204.


 Comentário

   Em teoria, o método apresentado por Doroteu de Sidon sustenta-se num modelo formal e material válido e plausível, todavia a verificação dos seus pressupostos permite que se estabeleçam algumas inconsistências. Em primeiro lugar, deve-se ter em consideração que o modelo é  constituído apenas por sete astros (Sol, Lua, Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno, isso se o Sol e a Lua forem incluídos na designação de planeta), pois Úrano, Neptuno e Plutão ainda não haviam sido descobertos e, uma vez que a astrologia tradicional se fundamenta no que é observável pelo olhar humano, também não devem  ser considerados. Dos sete astros, ainda temos de reduzir um, Vénus para os homens e Marte ou Júpiter para as mulheres. Desta forma, só existem seis astros disponíveis e, como a probabilidade de estarem todos ou quase todos entre o Meio do Céu e o respectivo planeta é limitada, então o número de casamentos possíveis está restringido a um valor pequeno. 

   Este aspecto levanta alguns problemas, sobretudo em casos como, por exemplo, o de Elizabeth Taylor, que casou oito vezes, embora duas delas com Richard Burton. Ora Elizabeth Taylor  tem o Meio do Céu a 14° de Balança e Marte a 1° de Peixes e entre eles estão apenas a Lua e Saturno. Apesar do elemento quantitativo, descrito por Doroteu de Sidon, não se verificar neste caso, o valor do sentido não deixa de ser relevante, pois, por um lado, a presença da Lua e de Saturno aponta para instabilidade emocional e relacional na vida de Elizabeth Taylor como, por outro lado, permite que se estabeleçam interpretações que vinculam, por exemplo, a Lua em Escorpião com a morte de Michael Todd, seu terceiro marido, e a dor dessa perda, bem o peso das dívidas herdadas, e, noutro exemplo, o Saturno em Aquário com a relação tempestuosa com Richard Burton, onde a liberdade emocional de Taylor foi restringida, de tal modo que iniciou uma relacionamento extraconjugal com o Embaixador Iraniano Ardeshir Zahedi. Desta forma, embora o elemento quantitativo produza inconsistências, o valor material e significativo permite que o contributo de Doroteu de Sidon continue actual.

   Um outro aspecto que também deve ser considerado é a natureza do conceito de casamento, que evoluiu ao longo dos tempos. Neste quadro interpretativo de Doroteu de Sidon, deve-se estabelecer como premissa a natureza dos relacionamentos a considerar, onde um mero pressuposto legal pode não ser suficiente. Por exemplo, até ao Sinodo de Whitbey, em 664 E.C., os povos da antiga Bretanha praticavam um casamento, Handfasting, que era celebrado por um ano e um dia, após esse período os esposos decidiam se este continuava ou não. A consumação também pode ser um requisito prévio para constar no número estabelecido por Doroteu de Sidon, bem como qualquer forma de relacionamento íntimo que implique a vida em comum. Ou, por outro lado, deve-se enumerar apenas aqueles que se estabeleceram numa base afectiva genuína?  Esta questão é de suma importância, pois é a sua resposta que permite atestar a veracidade do método proposto.

   Por fim, a questão textual e acerca das fontes também merece alguma atenção. Doroteu de Sidon terá escrito a sua obra entre os anos 25 e 75 da nossa era e, embora fosse originário de Sidon, uma parte significativa da sua vida terá sido passada em Alexandria. O Carmen Astrologicum ou Pentateuco é um texto sobre astrologia, escrito em verso, e que se destaca por ter sido o primeiro texto de que se conhece a incluir as katarchai, as Interrogações ou Eleições, as quais se tornaram em importantes indicadores da actividade dos astrólogos e dos motivos que levavam as pessoas a procurá-los. Doroteu distinguiu-se também de Ptolomeu por incluir as Partes na sua obra. O Carmen Astrologicum tornou-se num texto importante que serviu de fonte para, por exemplo, Heféstion de Tebas e Firmicus Maternus. No Catalogus Codicum Astrologorum Graecgrum (CCAG), podemos encontrar cerca de trezentos fragmentos da obra de Doroteu de Sidon, que serviram de fonte directa para os seus textos, mas foi a partir da edição de David Pingree que pudemos aceder à maioria do Carmen Astrologicum. Essa edição sustenta-se em primeiro lugar nas versões de Abû Hafs 'Umar ibn Farrukhân Tabarî, conhecido no ocidente como Omar Tiberiades, que datam de 800 E.C. e baseiam-se numa tradução pahlavi, ou seja, persa, do século III. Existe também uma outra versão árabe, de cerca de 770 E.C., com um carácter  fragmentário e atribuída a Māshā'allāh, onde encontramos textos que não estão na versão de al Tabarî, mas que estão, em parte nos fragmentos do CCAG. Foi esta concórdia de fontes que permitiu que hoje seja possível aceder à maior parte do Carmen Astrologicum.

   Em suma, a obra de Doroteu de Sidon merece ser lida e pode contribuir para uma fundamentação da linguagem astrológica, que hoje tem uma natureza líquida, dispersa e sem um sistema de sentido que lhe dê forma. A astrologia clássica permite um rigor que na astrologia contemporânea nem sempre existe e a análise ao número de casamentos de Doroteu de Sidon fornece-nos um indicador de estudo que não deve ser desprezado. A sabedoria está em quem procura.