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sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Reflexões Astrológicas 2024: Marte Retrógrado

  Reflexões Astrológicas


Retrogradações


Retrogradação de Marte

Lisboa, 23h33min, 06/12/2024

 

Marte

Decanato: Saturno

Termos: Vénus

Monomoiria: Marte     

 

   Marte inicia a sua retrogradação no signo de Leão, no grau 7 (6º10΄), estando Sagitário a marcar a hora para o tema de Lisboa e, deste modo, na XII, no lugar do Mau Destino ou Mau Espírito (κακός δαίμων), no decanato de Saturno, nos termos de Vénus e na monomoiria de Marte. A retrogradação começa assim de noite, acima do horizonte, com o Sol e a Lua sob a Terra. O movimento retrógrado de Marte estender-se-á até 24 de Fevereiro de 2025. Marte vai recuar até ao grau 18 (17º00΄) de Caranguejo, ou seja, no decanato e termos de Mercúrio e na monomoiria de Marte. Regressará depois a Leão a 18 de Abril, onde vai permanecer até 17 de Junho.

   Como já se analisou noutros momentos, neste ano na retrogradação de Saturno e, em 2023, nas de Vénus e Júpiter, o fenómeno astrológico de retrogradação é como uma semente. Uma vez que o movimento retrógrado é visualmente aparente, o termo fenómeno pode parecer estranho, todavia, é um fenómeno astrológico porque é percepcionado não pelo movimento natural, mas sim pelo movimento como sentido primordial, como experiência. Ora, neste caso, o movimento retrógrado retoma o valor de potência, de regresso a si ou de negação de acção, daí que, na Antiguidade, tenha uma significação nefasta. Doroteu dizia, por exemplo, que os planetas retrógrados causam dificuldade e infortúnio (Carmen Astrologicum, I, 6).

   Marco Aurélio afirma que “Todo o ser, de certo modo, é a semente daquilo que há-de sair dele. Tu naturalmente estás a pensar que sementes é só o que se deita à terra ou num ventre: mas isso é ter noções vulgaríssimas!(Pensamentos IV, 36, trad. J. Maia. Lisboa: Relógio D’Água, 1995). Ora a retrogradação, pelo seu retorno da acção ao potencial, tem este valor de semente. No entanto, devemos também considerar, seguindo as lições da mitologia, que a semente pertence ao domínio de Hades/Plutão. A σπέρμα grega, devido ao seu lugar sob a terra, lembra-nos que, para ser vida, a semente tem de morrer. Esta condição atribui naturalmente certas qualidades agrícolas a Plutão. Nesta retrogradação, Plutão em Aquário opõe-se a Marte em Leão, os regentes de Escorpião, tradicional e moderno, fazem colidir os seus olhares. Este aspecto vem ressalvar essa qualidade de morte que é própria da semente. A astrologia, quando assolada por um espírito positivista de querer ser ciência, tende a rejeitar a sabedoria astrológica, esquecendo-se que esta é uma súmula de saber mitológico, filosófico e científico.  

   Na mitologia grega, para a arte da guerra, Ares concedia a força e Atena a estratégia, daí que seja comum, sobretudo na expressão artística, imagens de Atena a derrotar Ares. A inteligência domina a força. Esta derrota de Ares/Marte é também uma leitura da retrogradação do planeta vermelho, quando a força se vê diminuída. É uma vitória do pensamento sobre a paixão, da reflexão sobre a acção. Naturalmente é uma situação difícil para Marte. Para os gregos, o deus da guerra não era invencível. Na Guerra de Tróia, Diomedes ataca o deus e consegue feri-lo com uma lança, mostrando assim uma mestria em combate que só ficava atrás da de Aquiles. Já em Roma, a situação é um pouco diferente. Marte representa um tipo de virtude, associado à coragem, à masculinidade e à excelência. O seu sagrado animal de Marte é o lobo, associado, como é bem sabido, ao mito fundador da cidade.

   Seguindo também uma linha de sentido astro-mitológica, podemos associar também a retrogradação de Marte ao mito de Adónis. Neste mito, e contrariando a tradição clássica, são as divindades femininas que se enamoram de um humano, de um jovem nascido de uma relação incestuosa. Adónis era filho de Mirra e de seu pai Ciniras, o rei de Pafos do Chipre. Afrodite punira a jovem com um desejo impróprio e, ciente da sua desmedida, fugiu errante, acabando por clamar aos deuses o fim das suas penas. Estes acederam ao pedido da suplicante e transformaram-na numa árvore perfumada, a árvore da mirra. Dez meses lunares depois, a árvore foi cortada e, do seu interior, saiu uma criança. Afrodite, enternecida com a beleza do pequeno rapaz, entregou-o a Perséfone para o criar. Este cresceu e a deusa do submundo recusou-se a devolvê-lo. Zeus teve de mediar o conflito entre Afrodite e Perséfone, entre o amor e a morte. Decidiu que Adónis passaria quatro meses com Afrodite, outros quatro com Perséfone e os restantes seria ele a decidir com quem os passaria, o que nos remete para os ciclos da natureza.

   O amor de Afrodite pelo jovem era intenso e apaixonado. No bosque onde se encontravam, a deusa alertou Adónis do perigo de caçar os animais selvagens. Ora Nono de Panópolis, entre os séculos IV e V EC, contou-nos o seguinte: Ela [Afrodite tendo dado à luz uma filha a Adónis] virou seus olhos redondos e deleitados em todas as direções; apenas os javalis não observava ela nos seus prazeres, por ser uma profetisa sabia que, sob a forma de javali, Ares com presas irregulares e cuspindo veneno mortal, numa loucura de ciúme, estava destinado a tecer o destino de Adónis.” (Dionisíaca 42. 1, tradução do grego é da minha responsabilidade). Existem várias versões para o culpado da morte de Adónis, todavia, esta é nos interessa, pois coloca Ares (Marte) no mito. Ares é aqui a personificação do ciúme e da violência a partir desse ciúme, dessa suposta ofensa.

   Nestas significações astro-mitológicas, a força de Marte não se traduz nem na agressão bélica de Carneiro, nem na vingança calculada de Escorpião. Encontramos neste mito uma outra natureza. O ciúme, uma raiva interiorizada, muito semelhante à inveja, potencia um acto, uma violência que nasce desta dinâmica interior. O processo de retrogradação de Marte encontra o seu sentido no mito da morte de Adónis pelas presas de Ares, transformado num javali enraivecido. Consequentemente, esta retrogradação apresenta uma expressão da irracionalidade, dos vícios da desmedida, do eu que se ofende para além do seu limite.

   Séneca diz-nos que “Nem tudo quanto nos atinge nos fere; é a nossa vida de luxo que nos torna propensos à ira, a ponto de a mínima contrariedade gerar uma explosão de cólera. Criamos em nós próprios uma soberba de reis. E os reis, por seu lado, esquecendo-se do próprio poder e da fraqueza dos outros, enfurecem-se e lançam-se como feras, como se tivessem recebido alguma ofensa, quando a grandeza da própria fortuna os mantém ao abrigo total das ofensas. Eles bem sabem que é assim, só que buscam todas as oportunidades para fazer mal. Sentir-se lesados é para eles um meio de poderem lesar os outros.” (Ep.47.19-20; Cartas a Lucílio, 2ª ed,, trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa, 2004: Fundação Calouste Gulbenkian). Devemos interrogarmo-nos que tipo de natureza tem aquele que ao “sentir-se lesado” assume nessa impressão uma permissão para lesar os outros? E não será essa impressão o resultado de uma falsa representação? A ofensa pode não estar assim naquele que nos ofende ou que julgamos que nos ofendeu, mas sim no foco que colocámos na sensação de nos sentirmos ofendidos.

   A “soberba de reis” é uma bela definição da retrogradação de Marte pelo signo de Leão, pois vai revelar uma interiorização distorcida do princípio da força. A ilusão do poder, seja pela inveja e pelo ciúme, seja pela falsidade e pela corrupção da vontade, vai exemplificar os estados individuais e colectivos deste fenómeno. Quando retornar a Caranguejo, por estar na sua queda, Marte vai trazer a realidade do falso herói e as vicissitudes das falsas noções de origem e do poder que se exerce sobre essa ilusão. As representações colectivas histórico-escatológicas em torno de povos eleitos e de terras prometidas conduzem necessariamente às piores atrocidades. Existe uma agressão quando a origem de uns é considerada melhor, com mais direitos, à de outros e esse tipo de agressão insere-se neste retrogradação e pode encontrar neste período uma renovada pulsão ideológica.   

   O facto do movimento retrógrado, no tema de Lisboa, iniciar-se na XII consubstancia este peso, esta gravidade. Se regressarmos à ideia da retrogradação como semente, temos também de considerar que nem tudo o que germina é sinal de sucesso, de abundância. Existem sementes que criam ervas daninhas que se enraízam e envolvem boas culturas, mas também bons espíritos. A semente nociva tende a brotar junto da boa semente. Desta forma, quando os antigos astrológicos alertavam para a acção deletéria do movimento retrógrado, contemplavam também esta realidade. Associada à “soberba de reis” de Séneca, esta posição enraíza comportamentos narcísicos e egocêntricos, centrados numa falsa divindade, κακός δαίμων, e assombrados pela visão distorcida que tem de si mesmo.

   A análise da actual retrogradação de Marte terá necessariamente de observar a oposição entre este e Plutão em Aquário. É fundamental para um entendimento astrológico esclarecido não nos deixarmos cair num certo deslumbramento incoerente da passagem de Plutão por este signo. Se os antigos conhecessem a existência de Plutão e pensassem no seu deus Hades/Plutão ou nos elementos mitológicos da constelação de Aquário, por certo não iriam ver as interpretações efabuladas que têm sido proferidas. Plutão em Aquário é um vulcão em erupção cuja nuvem piroclástica se estende pelo céu e se espalha pelo ar. Ora é esta realidade que se vai unir em oposição ao Marte retrógrado em Leão. Noutros tempos, poderíamos falar da capitulação de líderes face a situações extremas. Hoje, para a astrologia mundana, podemos falar de crises nas lideranças, em especial, nas lideranças democráticas face às lideranças extremistas. Não serão tempos fáceis para a humanidade.

   No início da retrogradação, o Sol está em trígono, onde dois signos de Fogo, Sagitário e Leão, tentam unir as forças, e segundo a sabedoria antiga Marte é o único que não se deixa queimar pelos raios solares. No entanto, o Sol em Sagitário encontra-se sob os raios quadrangulares de Saturno em Peixes, o grande maléfico do tema, e sob o olhar diametral de Júpiter retrógrado, o benéfico que por via do segmento de luz se encontra diminuído. Por outro lado, o luminar que rege o segmento dominante, a Lua, encontra-se em Aquário, com Plutão, adensando o sentido anteriormente explanado. Neste tema, a luz não colabora com a retrogradação.

   O trígono de Mercúrio retrógrado em Sagitário a Marte retrógrado em Leão merece uma análise distinta, pois este aspecto é uma síntese dos tempos, uma que transmite as dificuldades de comunicação, a violência da palavra e a manipulação do discursos. Por ser uma união triangular, esta relação traduz naturalmente o peso da necessidade, do destino, revelando que existem sentidos que colocam o carácter diante do destino. Nestes momentos, ou se segue ou se resiste, pois o desafio não é mudar os acontecimentos, mas mudar aquele que caminha sobre a sua linha. Por outro lado, quando a desmedida toma a palavra e a acção, o silêncio trilha a própria via. A paz interior face ao tumulto não se inquieta, permanece constante na certeza da sua harmonia. O facto de Mercúrio estar como o Sol em oposição a Júpiter e em quadratura a Saturno e Neptuno vai adensar esta mensagem. De uma outra forma, a quadratura de Marte retrógrado em Leão a Úrano retrógrado em Touro firma uma corrupção das estruturas de poder e de comunicação a partir do seu interior.

   No tema do início da retrogradação, a relação entre benéficos e maléficos é particularmente significativa. Por o segmento de luz ser o da Lua, Marte tem a sua força maléfica diminuída, embora o lugar que fez morada contrarie esta contracção. Desta forma, por força do segmento, Saturno torna-se o grande maléfico. No entanto, de acordo com os aspectos ptolemaicos, entre os maléficos não existe, de momento, qualquer relação. Quando Marte, por força do movimento retrógrado, regressar a Caranguejo, aí sim estes dois unir-se-ão triangularmente. Este será um momento em que lição de Petosíris (fragm.38 Riess) de que nem todas as quadraturas são más, nem todos os trígonos são bons trilhará o seu sentido. 

   Na relação com os benéficos, Marte não se une a Vénus, o benéfico do seu segmento de luz. Porém, quando a 7 de Dezembro Vénus ingressar em Aquário, opor-se-á a Marte retrógrado em Leão. Até 3 de Janeiro de 2025, as pulsões primordiais do desejo (Vénus) e da força (Marte) vão colidir, todavia, face a retrogradação, a força estará num estado inactivo e com uma natureza potencial. A 6 de Janeiro, Marte regressa a Caranguejo e une-se a Vénus que já se encontra em Peixes. Será um período em que o destino irá favorecer esta interacção entre o desejo e a força e, apesar da acção da força estar comprometida, poderá favorecer o carácter essencial dos lugares que ocupam e daqueles que com eles se relacionam. Para os temas nocturnos, a retrogradação de Marte pode até ser a semente de bênçãos futuras. 

   Vénus, ainda em Capricórnio, no tema do início da retrogradação, une-se em sextil a Saturno em Peixes. Já este último une-se quadrangularmente a Júpiter retrógrado em Gémeos que, por sua vez, se une em sextil a Marte retrógrado em Leão. Este é um bom exemplo de que como a realidade se faz de pesos e contrapesos. Naturalmente, a tensão entre o espaço (Júpiter) e tempo (Saturno) condiciona a liberdade de acção das matrizes primordiais do desejo (Vénus) e da força (Marte). Porém, o dom da vida que é, em certa medida, a dádiva da humanidade é o de encontrar caminho, mas este não surge aqui de uma qualquer acção que tenda a contrariar os acontecimentos e a causalidade natural, surge sim da acção sobre si mesmo, da possibilidade de transformar em nós a realidade interna. Essa é a verdadeira liberdade. Se olharmos ao redor e pensarmos que o planeta está no limite e as expressões da humanidade em ruptura, torna-se fácil concluir que a via do bem é a única que brilha do interior para exterior, podendo assim levar a luz ao mundo.

   Face a esta conjuntura astrológica, a actual retrogradação de Marte não vai suspender os desafios, vai pelo contrário enraizar as suas sementes, sobretudo porque, como se viu, ela se relaciona com outras forças que colocam em causa, em suspensão, a natureza daquilo que é criado. Do interior para exterior, a força de Marte traz consigo o gérmen de uma outra destruição, uma que pode corromper o carácter. Devemos portanto cuidar daquilo que criamos em nós, pois, para o bem e para o mal, permanecerá connosco. Em suma, este é um tempo de domar as pulsões e transformar a irracionalidade em sabedoria.  

domingo, 23 de julho de 2023

Reflexões Astrológicas 2023: Retrogradação de Vénus

 Reflexões Astrológicas


Retrogradações


Retrogradação de Vénus

Lisboa, 02h33min, 23/07/2023

 

Vénus

Decanato: Marte

Termos: Marte

Monomoiria: Sol     

 

  Vénus inicia a sua retrogradação no signo de Leão, no 29º grau (28º36΄), estando Gémeos a marcar a hora para o tema de Lisboa e, deste modo, na III, o lugar da Deusa, no decanato de Marte, nos termos de Marte e na monomoiria do Sol. A retrogradação começa assim, de noite, abaixo do horizonte e a cerca de quatro horas do pôr-do-sol. Em 2023, o movimento em que Vénus nos concede a ilusão de estar a recuar estender-se-á até 4 de Setembro, onde estará no 13º grau (12º12΄), nos termos de Saturno. Existirá pois um caminho retrotenso entre os termos de Marte e os de Saturno.

  O amor trilhará a senda dos maléficos, o que, no tema, já está assinalado na oposição entre Marte em Virgem e Saturno em Peixes. Ora, no mesmo dia em que Vénus passará a directo, Júpiter passará a retrógrado. Esta é também uma das principais razões para uma análise mais atenta deste fenómeno astrológico. O caminho dos benéficos será o de uma procura interna, ensimesmada, da dádiva, das bênçãos que iluminam a vida e a morte, a criação e a destruição.

  O movimento retrógrado tem uma significação muito própria. Na Antiguidade, é considerado de forma particularmente nefasta. Por exemplo, Doroteu afirma que os planetas retrógrados causam dificuldade e infortúnio (Carmen Astrologicum, I, 6), já Paulo de Alexandria diz-nos que os planetas quando estão a ocultar-se no Poente, matutina ou vespertinamente, ou quando estão em declínio ou retrógrados tornam-se fracos, desvantajosos e com influências insignificantes (Introdução, capítulo 14).    

  No entanto, se considerarmos como matriz conceptual da influência planetária os conceitos de δύναμις e de ἐνέργεια, teremos de acrescentar também à significação dos movimentos directos e retrógrados, seguindo uma inspiração aristotélica, as qualidades de potencialidade e de actualidade ou actividade. Neste sentido, a retrogradação não traduz a efectivação da influência planetária, mas enraíza, por seu lado, a sua potencialidade. Existe uma suspensão de um sentido activo, mas não uma ausência. Esta visão não vai contrariar em absoluto as definições de Doroteu ou de Paulo de Alexandria, mas também não vai condicionar a avaliação, baseando-a apenas numa significação valorativa. O conceito de potencialidade, ou até, em certas condições, de impotência, pode permitir que se estabeleçam outras relações de sentido. Ora é face a essa realidade que os contributos astro-mitológicos podem ser enriquecedores.  

  As origens de Afrodite/Vénus são obscuras. A deusa olímpica pode ter a sua origem em divindades do Próximo Oriente, como Inanna, Ishtar ou Astarte, ou pode mesmo descender directamente de antigas divindades neolíticas, presentes nos locais dos seus grandes santuários como Pafo ou o Chipre, ou ainda no santuário mais antigo de Ascalon. As raízes de sentido desta origem vão fazer com que o sentido da Vénus astrológica possa não ser apenas o tradicional e se expanda até à sua matriz primordial.

  Segundo Hesíodo, na Teogonia, Afrodite nasceu da seguinte forma: “Os testículos, por sua vez, assim que cortados pelo aço/ e lançados desde a terra firme ao mar de muitas vagas / foram levados pelo mar, por longo tempo; à sua volta, uma branca/ espuma se libertou do órgão imortal e dela surgiu uma / rapariga. Primeiro, foi em direcção aos divinos Citérios/ que ela nadou, e de lá em seguida chegou ao Chipre rodeada de mar;/ aí aportou a bela e celebrada deusa que, à sua volta,/ sob os seus pés ligeiros, fazia florescer o solo, Afrodite/[a deusa nascida da espuma e Citereia de belo toucado]/ esse é o nome que lhe deram deuses e homens, porque na espuma/ surgira, e ainda Citereia, por ter aportado junto dos Citérios,/ e Ciprogeneia, por ter nascido em Chipre rodeada de ondas,/ou ainda Filomedeia, porque surgida dos testículos.” (188-200, trad. A. Elias Pinheiro & J. Ribeiro Ferreira. 2005: 50. Lisboa: IN-CM).

  A descrição de Hesíodo é aquela que determinou toda uma tradição e vinculou a significação da Vénus astrológica, todavia, numa leitura atenta, podemos observar com facilidade a predominância de um paradigma patriarcal e androcêntrico na génese mitológica de Afrodite. Esse paradigma levará, por exemplo, a que Afrodite, para ascender ao Olimpo, tenha de se casar. Hefesto/Vulcano, o deus da forja e da técnica é o escolhido, pois para a conservação da harmonia dos opostos não poderia ser Ares/Marte. O casamento é aqui uma forma de misoginia, uma tentativa de converter a deusa ao patriarcalismo e de tornar a sua sensualidade submissa, voltada para o masculino.  

  A Afrodite olímpica é totalmente condicionada por essa visão, todavia, como Jane Ellen Harrison diz, “As deusas matriarcais reflectem a vida das mulheres, e não as mulheres a vida das deusas” (Prologomena to the Study of Greek Religion, 262. Princeton, 1991 (1903): Princeton University Press). Ora, seguindo essa premissa, as deusas seriam a Donzela (Κόρη), a Noiva (Νύμφη), a Mãe (Μήτηρ) e a Avó (Μαῖα). Harrison afirma, a respeito de Afrodite, que “Ela é Kore na sua juventude eterna e radiante: Kore como Virgem ela não é. Ela é, por sua vez, Nymphe, a Noiva, mas é a Noiva da velha ordem, ela nunca é a Esposa, nem nunca tolera o laço conjugal permanente e patriarcal” (262). Porém, Afrodite, não se vai tornar nem a Esposa, nem a Mãe, ela é a Noiva e permanece a Donzela, porque, em certo sentido, continua a ser a Senhora dos Animais Selvagens (Πτνια Θηρῶν) e do impulso radical que leva à união sexual.

  A razão deste papel assenta em dois aspectos: por um lado, a virgindade não tinha a conotação que teve mais tarde, a Donzela era aquela que não era a Mãe, era portanto o parto e não o falo que mudava a sua condição, daí que existissem os banhos rituais (e.g. Hera em Argos) que renovavam a “virgindade” das deusas; por outro lado, a prostituição sagrada, presente nos cultos de Afrodite e nos das deusas do Próxima Oriente que podem ter estado na sua origem (sobretudo Ishtar e Astarte), revela a independência sexual da deusa. Hesíodo, mesmo anulando esta herança, conserva certos aspectos quando diz que “Seguiu-a, sem demora, Eros e acompanhou-a o belo Desejo,/mal ela nasceu e se uniu à família dos deuses./ E, desde o início, teve como competências e foi/ seu destino, entre os homens e dos deuses imortais,/ as intimidades das meninas, os sorrisos, os enganos/ o prazer doce, o amor, a meiguice.” (Teogonia, 201-206).

  De um ponto de vista conceptual, Afrodite/Vénus, seja a deusa matriarcal e primordial ou a patriarcal e olímpica, firma o seu poder, a sua influência, entre Himeros, o desejo, e Eros, o prazer, ou seja, entre a origem e o fim da sua natureza divina de Grande Deusa. Este elemento de passagem é fundamental para compreender a Afrodite Pandêmia e a Afrodite Urânia e estabelecer os sentidos profundos da Vénus astrológica, tanto nos seus movimentos directo e retrógrado como no seu ciclo de 8 anos e na sua fase helíaca. É nesta alternância de sentidos que temos de analisar a fase actual. A retrogradação de Vénus pelo signo de Leão vai trazer para a sua significação a Afrodite Pandêmia e a Afrodite matriarcal. O poder de Leão trará então, como potencialidade radical, a força de uma Vénus antiga.

  No tema do início da retrogradação, existe um outro elemento interpretativo que merece a nossa atenção. Vénus (28º O 36΄) encontra-se no ponto médio entre os luminares, ou seja, no caminho ascendente da luz que se estende da Lua (27º V 50΄) ao Sol (29º C 59΄), a deusa do amor encontra-se a meio caminho. Se pensarmos que a Lua está com Marte e que Vénus está com Mercúrio e junto ao Ponto Subterrâneo, compreendermos que a necessidade de reavaliação do valor de Vénus, tal como o anunciámos, está reafirmada. Existe, desta forma, uma dádiva por compreender, um valor suspenso no tempo que pede uma renovada actividade.

  As relações de Vénus no tema são também significativas. A conjunção com Mercúrio firma necessariamente a reflexão de que temos falado, até porque, na fase final da retrogradação de Vénus, Mercúrio iniciará o seu movimento retrógrado no signo de Virgem, potenciando a exaltação tanto da sua actividade como da sua potencialidade. Por outro lado, une-se triangularmente (Caput) e hexagonalmente (Cauda) ao Dragão da Lua no eixo Carneiro-Balança, no eixo da identidade. Esta é uma relação que vai contrastar com a oposição entre os maléficos, Marte em Virgem e Saturno em Peixes, considerando-se que este último é o astro mais alto, pois se, por um lado, existe uma tensão na consciência da parte e do todo, como se a força e o tempo não encontrassem nem sentido, nem lugar, por outro lado, existe uma necessidade visceral de encontrar a consciência de si através da identidade.

  A quadratura entre Vénus retrógrada em Leão e Júpiter e Úrano em Touro destrutura o movimento da realidade. A união quadrangular dos benéficos, seguindo a lição de Nechepso e Petosíris, não tende a ser negativa, todavia, obriga a repensar o valor da dádiva, a bênção do bem, da união da beleza à justiça, do amor à verdade. Este aspecto terá também nos tempos próximos uma expressão que colocará em maior relevo as alterações climáticas, as mudanças que afectam o planeta, aqui não tanto como a expressão dos fenómenos naturais, mas sim como a expressão da humanidade, das suas respostas. Será o desejo, a ânsia, de um bem maior que poderá mudar o nosso futuro. Teremos de ver para além das nossas necessidades primárias, das nossas vaidades.

  Durante o período de retrogradação de Vénus, assistiremos às seguintes mudanças em termos astrológicos: o Sol transitará de Leão para Virgem e Mercúrio também, iniciando depois a sua própria retrogradação, e Marte passará de Virgem para Balança, onde se unirá hexagonalmente à Vénus retrógrada. As lições que, deste modo, podemos retirar é que a compreensão da Vénus, neste caso no seu movimento retrógrado, deve ser expandida para além das estruturas interpretativas mais comuns e tradicionais. A mitologia e a análise astro-mitológica podem ser um importante contributo para essa reformulação. Existe uma Vénus por descobrir e a retrogradação é excelente momento para a encontrar.

Vénus Retrógrado: De 23 de Julho a 4 de Setembro de 2023


Vénus Retrógrada: De 23 de Julho a 4 de Setembro de 2023.

Vénus Retrógrada a partir das 10h36min do dia 23 de Julho.

Sol em Leão: De 23 Julho a 23 de Agosto de 2023


Sol em Leão: De 23 de Julho a 23 de Agosto.

O Sol ingressa em Leão hoje às 02h51min

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Reflexões Astrológicas 2022: Lua Nova em Leão

 Reflexões Astrológicas


Lunações


Lua Nova em Leão

Lisboa, 18h54min, 28/07/2022

 

Sol-Lua

Decanato: Saturno

Termos: Júpiter

Monomoiria: Júpiter   

 

   A Lua Nova de Agosto ocorre no signo de Leão, com Capricórnio a marcar a hora para o tema de Lisboa, e assim no Lugar da Morte (VIII), no decanato de Saturno, termos de Júpiter e na monomoiria de Júpiter. A sizígia dá-se, desta forma, acima do horizonte e a cerca de duas horas do pôr-do-sol. O Sol encontra-se favorecido por estar no seu próprio domicílio, bem como no seu Segmento de Luz (αἵρεσις), embora a caminho do Poente. Do Sol convém ressalvar-se primeiramente, face ao tema em análise, o caminho que se estabelecerá com o benéfico e o maléfico do seu segmento, pois a 31 de Julho estabelecerá um trígono com Júpiter e a 14 de Agosto, uma oposição com Saturno. A luz persiste no espaço e no tempo como dádiva e necessidade, ocultando e semeando, colhendo e ceifando.

   O signo de Leão como domicílio do Sol, aquele que surge da casa da Mãe Divina, do útero do Divino Feminino e do signo da origem, Caranguejo, encerra em si uma forte conexão com a luz, com o fogo recém-nascido. É Hórus, nascido de sua mãe, da Grande Ísis. É o poder que, como trono da Terra, matrilinearmente se institui. Lembremo-nos do thema mundi e de como a Lua, no Ascendente do Universo (Caranguejo), amamentará o jovem Sol – tal como a Madonna e a criança –, em Leão, no segundo lugar. Ora esse sentido profundo da luz inaugural, do Sol nascente leva, por exemplo, o filósofo estóico Cleantes de Assos a dizer que este, sendo “o maior dos astros” (τὸ μέγιστον τῶν ἄστρων), é “o princípio que governa o mundo”, ἡγεμονικόν (Ário Dídimo phys., frag. 29.25-30 = SVF I.499a).

   A ideia de Cleantes do Sol enquanto ἡγεμονικόν está em harmonia com Crisipo de Solos, embora este prefira o éter, quando afirma o seguinte: “Porque não existe nada mais perfeito que o universo, nada é melhor que a virtude. Desta forma, a virtude é própria do mundo” (Cícero, Sobre a Natureza, II, 14, 39 = SVF II, 641: Este autem mundo nihil perfectius, nihil virtute melius: ignitus mundi est própria virtus). A virtude que une a perfeição do universo e o próprio Sol não transmitem um regramento catequista, mas representam sim a excelência, a ἀρετή, uma finalidade que une no indivíduo a beleza e o bem, καλοκἀγαθία, as bênçãos de Vénus e Júpiter, e que na sua acção traduz a nobreza da alma, a antítese da vaidade de Narciso. Com os luminares no signo de Leão e para se expressar essa nobreza da alma, o reflexo no lago deve deixar de ser a sua imagem para se tornar a imagem de si. A individualidade conquista-se, transformando o “seu” em “si”, onde aquilo que nos define e dignifica passa do exterior para o interior, onde a luz habita – e a sombra também.

   Existe, neste novilúnio, um potencial de luz, mas também de sombra, pois, na sua viagem diária, os luminares, recebendo da morte a própria vida, estão caindo para a sua ocultação. O fim do horizonte já se vislumbra e existe um caminho celeste que se inicia em Mercúrio e termina no próprio Poente (δύσις). Nessa senda, Mercúrio em Leão surge como Estrela da Tarde, sob os raios solares e em posição posterior, enquanto Vénus em Caranguejo avança na dianteira para a Noite Anunciada. O feminino conduz-nos ao reino nocturno que se avizinha, trazendo consigo, como feixe de luz, o Amor da Origem.

   Essa serpente de luz poente contrasta com o facto de não existir no tema da sizígia nenhuma luz que suba ou culmine. A cauda do Dragão da Lua é a que mais se aproxima do Ponto de Culminação (MC). O Destino sobe no céu, trazendo a imagem da morte ao espírito, e, no Bom Espírito (ἀγαθόν δαίμων), a destruição é interiorizada enquanto condição necessária não da acção humana, mas sim da ordem de valor que a Necessidade estabelece e que coloca, por consequência, sobre o colectivo (Cauda Draconis em Escorpião na XI).

   O Dragão da Lua representa, deste modo, essa ponte, esse elemento de passagem, entre o Destino e a Necessidade. Não é portanto o passado por si só, é sim a integração do destino no tempo. Ora, na actual Lua Nova, a sizígia dos luminares encontra-se em posição quadrangular ao Dragão da Lua, revelando a dificuldade da luz, bem como nobreza da alma se expressarem acima dos ditames da Providência, sem assim os integrar ou revelar o seu propósito.

   Mercúrio em Leão, seguindo atrás do Sol, adquire aqui um carácter feminino. Ele é Hermes Crióforo: o pastor astuto. A palavra brilha aqui enquanto potencial criativo, ela não é a argumentação e o discurso racional, mas a linguagem artística e cultural. Mercúrio tenta mostrar ao poder da luz (Sol e Lua) que a arte continua a transformar o mundo e que a nobreza daquilo que se faz pode também através dela ser alcançada. Naturalmente, uma Vénus em Caranguejo dignificada colabora com este Mercúrio feminino, promovendo os dons do Amor e do Harmonia e confirmando o sentido desse caminho descendente.

   No entanto, Mercúrio e os luminares estão sob o olhar dos maléficos: Marte em Touro, com Úrano, em quadratura e Saturno em Aquário em oposição. Se tivermos em consideração a noite que se aproxima, Saturno ganha um papel, não pela intensidade do seu carácter maligno, pois, segundo o Segmento de Luz, é Marte que assume o papel de Grande Maléfico, mas sim pelo facto de este ser denominado de “Sol da Noite”. Este conceito remonta à astrologia babilónica, nomeadamente a um período pré-aqueménida, e resulta de uma certa identificação de Saturno com o deus Samas, uma divindade que reúne aspectos solares e saturninos. Apesar de esta ser uma atribuição que ainda hoje intriga os académicos, o seu valor astrológico é facilmente compreensível, em especial, se Saturno (Aquário) e o Sol (Leão) se olharem de frente (diâmetro ou oposição), repetindo o sentido radical do thema mundi e o significado oculto dos mistérios de Mitra.

   Se Saturno traz ao tema do novilúnio o valor da Necessidade sobre o viver, a justiça do tempo sobre a vida humana, com uma expressão que é mais didáctica que punitiva, Marte surge com uma solidez bélica e a destruição enraíza-se nas profundezas da terra e da nossa realidade, destruindo os velhos valores e deixando queimado o solo onde os novos podem nascer. A cinza fertiliza não o tempo do humano, mas sim a natureza que, de uma forma ou de outra, encontra sempre caminho. A união de Marte e Úrano em Touro cria assim uma revolução disruptiva na abundância criadora da V, da Boa Fortuna (ἀγαθή τύχη). O tesouro da cornucópia, do corno de Amalteia, pode então passar despercebido e ser ignorado, pois olhar fixa-se nas velhas riquezas, na ostentação.

   O belicoso deus itifálico e o celeste deus eunuco da natura naturata colidem com a deusa Gaia da natura naturans e, a partir desse choque, lançam os seus raios contra os luminares e Mercúrio. O essencial da vida e do viver sofre, desta forma, uma reavalição e os novos valores nascem das novas prioridades, despidas de vaidades e reduzidas às necessidades primordais. Marte e Saturno unem-se, porém, quadrangularmente e Marte, o Grande Maléfico deste novilúnio, tende a atacar, como se fosse uma pilhagem, aquilo que consiste no minímo da dignidade humana. A crise para muitos é sempre o enriquecimento de alguns e essa é uma roda que ainda não conseguimos destruir, pois, seguindo o engano da espuma dos dias, preferimos ignorar essa roda e permitir que persistem modelos de desigualdade.  

   Por outro lado, os benéficos distribuem a sua dádiva. Júpiter, o Grande Benéfico deste novilúnio, prestes a iniciar a sua retrogradação, promovendo uma integração da fé e do bem numa futura exteriorização da justiça e da compaixão (retorno a Peixes e reingresso em Carneiro). Essa bênção surge no trígono de Júpiter em Carneiro aos luminares e a Mercúrio em Leão como a potência do fogo puro que se quer efectivar, da luz que transforma o mundo. O sextil de Júpiter e Saturno contribui para atenuar do peso da Retribuição, visto que o benéfico do Segmento de Luz atenua o carácter maligno do maléfico do mesmo segmento. Porém, a Justiça quer ser uma força em acto e tornar-se determinante para o progresso da humanidade. A dignidade humana terá de ser uma luz no tempo.

   Vénus em Caranguejo, por seu lado, exacerba a Mãe do Mundo que chega, qual Afrodite Cipriota, à costa, às margens da terra (sextil a Marte e a Úrano em Touro), lembrando que a Terra se renova pelo Feminino e que a destruição, se o humano o permitir, trará do útero de Gaia o seu renascimento. No entanto, os benéficos encontram-se em quadratura e, embora Petosíris diga que uma quadratura entre os benéficos perde a sua tensão quadrangular, existe uma aqui uma desarmonia entre a dádiva do Pai e a dádiva da Mãe, ou seja, a acção perde o potencial de origem, a Vontade desliga-se da Sabedoria. Esta é, porém, uma tensão criadora que alimentará, no futuro, a reunião na Câmara Nupcial, reafirmando a harmonia dos opostos e o nascimento do Filho/Filha.

   A partir do Leme da Vida (I), o Senhor da Morte (Plutão em Capricórnio) lança o seu olhar sobre Marte em Tour (trígono), fazendo da luta e da morte uma parte da linha que o destino tece e que conduz naturalmente à transformação. Essa verdade tão difícil de aceitar traduz-se na tensão entre Plutão e os benéficos (oposição a Vénus e quadratura a Júpiter). A dádiva dos Elísios, diferente da lição do Tártaro, é difícil de alcançar, pois segundo os antigos está reservada a poetas, sacerdotes, heróis e deuses, o que implica ver a vida com outros olhos, daí o choque entre Plutão e os benéficos.

   Existe, porém, uma outra bênção: o trígono entre Vénus em Caranguejo e Neptuno em Peixes. O desejo de cuidar e o amor ao próximo podem contribuir para a presença da luz no mundo, para a sizígia dos luminares em Leão. Nesta Lua Nova, a nobreza da alma, mais do nunca, é a luz que guia a humanidade.