A tragédia de Eurípedes As Bacantes é provavelmente o melhor testemunho clássico da natureza de Diónysos e do seu culto. Segundo Kitto, "As Bacantes é, de todas as suas tragédias, a melhor construída. Muitos reivindicariam esta honra para Hipólito, talvez com razão; contudo As Bacantes tem mais unidade e um ímpeto dramático que não se sente a cada passo em Hipólito"(Kitto: 326). Esta passagem mostra que Kitto estabelece uma relativa igualdade de importância entre as duas tragédias, contudo atribui a predominância As Bacantes. Podemos afirmar a semelhança que existe entre as duas tragédias, uma vez que o tema da impiedade, ou seja, o do desrespeito aos deuses, está presente em ambas. Em Hipólito é Afrodite que é ofendida e em As Bacantes é Diónysos. A oposição entre piedade e impiedade era um aspecto fundamental para os deuses, pois estes eram exigentes nos cultos que os gregos tinham de lhes prestar, sendo possuídos pela ira quando estes os desrespeitavam e desobedeciam às ordens.
As
Bacantes começa com uma fala de Diónysos em que este se apresenta
como filho de Zeus e de Sémele, "Venho
aqui, a esta terra dos Tebanos, eu, que sou filho de Zeus, eu, Diónisos, a quem
gerou um dia Sémele, a filha de Cadmo, assistida no seu parto pela chama do
relâmpago" (Bacantes: 1-3).
Diónysos continua, dizendo que "É
que as irmãs de minha mãe - quem menos devia fazê-lo - costumavam afirmar que
eu, Diónysos, não nasci de Zeus e que Sémele, por invenção de Cadmo, depois de
subjugada por um mortal qualquer, atribui a Zeus a falta no leito cometida" (Bacantes: 25-31). Este é o primeiro acto ímpio
contra Diónysos. As irmãs de sua mãe não o vêm como filho de Zeus e rejeitam a sua ascendência divina, rejeitam-no como deus. Diónysos irado com tal
acto torna esta mulheres suas servidoras, faz delas ménades, e afirma "Por isso eu as sacudi para fora de suas
moradas, tomadas de delírio, e, de espírito enlouquecido, habitam na montanha.
E forcei-as a usar a libré das minhas orgias, e a toda a raça feminina dos
Cádmios, a quantas mulheres havia, fi-las sair de casa, desvairadas" (Bacantes: 32-6). Desta forma, não só as irmãs de sua mãe
foram arrastadas para as orgias como todas as mulheres de Tebas.
Da impiedade das filhas de Cadmo, passa-se para a impiedade de
Penteu, "Ora Cadmo entregou as
honras da realeza a Penteu, de sua filha nascido, que declarou guerra aos
deuses na minha pessoa e me expulsa das libações, sem nunca se lembrar de mim
nas suas preces. É por esses motivos que eu vou demonstrar, a ele e a todos os
Tebanos, que sou um deus" (Bacantes: 44-8).
Segundo estas afirmações, temos de considerar, por um lado, os actos ímpios de
Penteu, nos quais ele desrespeita não só Diónysos, mas todos os deuses, pois
quem ofende o filho de Zeus ofende o próprio Zeus e quem ofende o Pai dos
Deuses ofende todos os deuses, por outro lado, temos de considerar a ira que é
despertada em Diónysos que fará com que prove que é um deus e diga "Mas se a cidade de Tebas procurar, na sua
fúria, e pela força das armas, trazer as Bacantes das montanhas, entrarei em
combate, lutando juntamente com as Ménades" (Bacantes: 50-3). Todavia, Cadmo e Tirésias preparam-se para se juntarem às
ménades, vestem a nébride, enfeitam o tirso e estão prontos para dançar. Cadmo diz: "Com que prazer nos
esquecemos da nossa velhice!" (Bacantes: 188-9),
o que está de acordo com os atributos de Diónysos, pois este é um deus que
experimentou a morte e voltou renascido, assim da juventude passa-se à velhice
e da velhice à juventude. Penteu, no entanto, não segue o exemplo dos anciãos e continua a
ofender Diónysos. Persegue as suas servas, as suas sacerdotisas, e afirma: "Estava eu acaso longe desta terra
quando oiço as novas que vão por esta cidade: que as mulheres nos abandonaram
as casas para irem a umas supostas bacanais, e que vagueiam pelas montanhas
umbrosas, dançando em honra desse deus de última hora, esse Diónisos, ou lá
quem é; e que no meio dos tíasos estão os krateres cheios e que uma a uma se
refugiam num recanto isolado, para aí se submeterem à lascívia masculina. De
pretexto servem-lhes, sem dúvida, os rituais das Ménades, mas à frente do culto
de Baco colocam o de Afrodite."(Bacantes: 215-26).
Nestes versos, encontramos traços da personalidade de Penteu que é determinada por um moralismo extremo e por um exacerbado desdém por Diónysos, " desse deus de última hora, esse Diónisos,
ou lá quem é ". Penteu considera que as mulheres usaram o culto de
Diónysos como pretexto para expressar a sua promiscuidade, daí que diga " mas à frente do culto de Baco colocam o de
Afrodite".
A impiedade do rei de Tebas é de tal ordem que chega até a ameaçar
directamente Diónysos, "Se eu o
apanho dentro destes tectos, acabarei com o seu bater do tirso e o sacudir da
cabeleira: arranco-lhe o pescoço para fora do corpo"(Bacantes: 239-41). A ameaça ao homem que corporiza
Diónysos é um indício da sua sorte, pois é ele que irá ficar com "o pescoço para fora do corpo". Tirésias responde a Penteu dizendo: "É que há duas coisas, ó jovem, que ocupam o
primeiro lugar entre os homens: a deusa Deméter, que é a Terra, seja qual for o
nome por que queiras designá-la; é essa que nutre os homens com alimentos
secos; e o que chegou depois, o rebento de Sémele, o que, para completar,
inventou e introduziu entre os homens o licor dos cachos, o licor que faz
cessar os desgostos dos atormentados mortais, quando se enchem da torrente da
videira, e proporciona o sono como olvido dos males do dia a dia - nem há outro
remédio contra o sofrimento"(Bacantes: 274-83).
Esta passagem faz referência a dois dos mais importantes mistérios gregos: os
mistérios de Elêusis e os mistérios dionisíacos. Estes estão interligados, uma vez que dizem respeito à Terra, os seus ciclos e aos seus frutos, daí que Tirésias diga que são duas as coisas "que ocupam o primeiro lugar entre os homens",
uma é a Terra que os alimenta e outra é o Vinho que os faz esquecer dos
sofrimentos e das desgraças próprias da vida humana. Tirésias continua e, como resposta aos actos de Penteu, apresenta uma concepção de Sophia: "Mas obedece-me, Penteu: não
te vanglories de que é a força que domina dos homens; e, se tiveres um
pensamento, mas o teu pensar enfermo, não temes esse pensamento por sabedoria.
Recebe o deus nesta terra, faz-lhe libações, pratica os rituais báquicos e
coroa a tua cabeça"(Bacantes: 309-12). De nada servem os pensamentos daqueles que têm o "pensar enfermo" e Penteu têm-no,
pois não presta culto a Diónysos.No entanto, Penteu não ouve as palavras de Tirésias e de Cadmo e
manda prender Diónysos. Quando o trazem amarrado, Penteu interrogou-o e, numa das
falas , Diónysos diz: "Os nossos
ritos têm horror à impiedade" (Bacantes: 476). Penteu mantém-se descrente face à origem divina de Diónysos e deixa
o estrangeiro preso. Porém, este liberta-se e Penteu fica desesperado e, entretanto, as ménades dirigem-se para as montanhas. Penteu quer persegui-las com os seus guardas, mas Diónysos adverte-o do perigo de tal acto. A impiedade do rei
é, todavia, maior que prudência.
Diónysos oferece a Penteu uma resposta para o seu desejo de justiça: o rei deve vestir-se de ménade para
que possa ver, com seus próprios olhos, os rituais que tanto repudia. O deus
ajuda-o a arranjar-se, tecendo a rede que o levará ao fim desejado, a punição
pela falta, pela hybris cometida, mas Diónysos avisa-o sempre: "Não vás derrubar as capelas das Ninfas e os lugares onde habita Pã e
onde se escuta o tocar do siringe."(Bacantes: 951-2) ou "Serás
transportado no regresso.. (…) …Nos braços da tua mãe"(Bacantes: 968-9). A curiosidade era desproporcionada, logo aventurou-se no meio das ménades. Porém, não resistiu à investida, tendo sido descoberto pelas ménades e dilacerado como um animal. Os primeiros golpes foram desferidos por sua mãe, Ágave. No entanto, Ágave, movida ainda pelo delírio, não reconheceu o seu acto, não se apercebeu que matou o próprio filho,pois julgou ter morto um
leão. No entanto, quando se liberta do êxtase e olha para a cabeça que tem na mão, exclama: "O que vejo é a maior das
dores, desgraçada de mim"(Bacantes: 1282). Concluiu que ela, as suas irmãs e as outras mulheres foram arrebatadas
pelo deus, segundo Cadmo, "Para
castigar a vossa insolência, já que não reconhecíeis nele [Diónysos] um deus"(Bacantes: 1297). Cadmo também é castigado, terá de deixar a sua terra, a pátria que construiu.
Diónysos justifica estas sentenças, por um lado, pela impiedade
cometida contra ele, por outro, pelo facto de Zeus ter aceite tal justiça,
"Há muito que Zeus, meu pai, aprovou
estes acontecimentos"(Bacantes: 1349). A peça
termina com o coro a dizer:
"Muitas são as formas do divino
e muitas coisas os deuses fazem sem contar.
Vimos o que esperava não se realizar,
p'ra o que não se sabia o deus achar caminho.
Assim vistes o drama terminar"
(Bacantes:1388-1392).
Este
desfecho apela para um desenlace de tipo deus
ex machina que, segundo Aristóteles, "É,
pois, evidente que também os desenlaces devem resultar da própria estrutura do
mito, e não do deus ex machina(…) Ao deus ex machina, pelo contrário, não se
deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do
passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado
conhecer, ou nos futuros, que necessitam ser preditos ou prenunciados - pois
que aos deuses atribuímos nós o poder de tudo verem."(Poética: 1454 b 1-8). A afirmação de Aristóteles permite compreender que tragédias como As
Bacantes não tinham a perfeição estrutural que a tragédia devia ter, em sentido contrário está o Édipo Rei de
Sófocles, um exemplo de perfeição. Porém, Eurípides, nesta peça, desenvolve um tema que iria precisar de
um deus ex machina, pois ao opor a
esfera humana à esfera divina, a impiedade de Penteu à ira de Diónysos, teria
de avançar com desfecho regulado e sentenciado pelos ditames proferidos pela
divindade, ou seja, a hybris de Penteu e de todos os que não reconheceram Diónysos como
deus é punida pela própria divindade e com a concordância de Zeus. Segundo
Kitto, "Dioniso não está a vingar-se de Penteu sòmente, mas de todos -
Cadmo e os que se deixaram enganar por ele - que o rejeitaram."(Kitto: 330), ou seja, Diónysos pune todos os que o
desrespeitaram. No entanto, Penteu foi o líder da impiedade e portanto foi o
que sofreu com toda a violência a sua ira. É
também de se notar que "Reflecte-se acerca da 'sabedoria', mas todas essas
reflexões se originam directamente a partir do conflito de Penteu e
Dioniso"(Kitto: 334-5). A discussão acerca da sabedoria
resulta da oposição entre Penteu e Diónysos.
É Polemos que se estabelece entre os dois intervenientes principais e é através de si que se desenrola todo mito e que se define o valor simbólico desta tragédia. Penteu representa o paradigma da Grécia clássica do
século V a. C., mas este é um paradigma decadente. A razão já não tem força para lutar,
deixa-se ir, não consegue resistir ao culto dionisíaco, os seus limites são
mais extensos do que se imaginava. A curiosidade mística abarcou-se da sua alma e a moral restritiva é demasiado frágil. Pelo contrário, a religião dionisíaco atinge o universal, supera-se a si
mesma, cresce, e, mesmo admitindo a hipótese de que Diónysos
vinha da Trácia para a Grécia, temos de concluir que o seu culto expande-se sem restrições. Lembremos
as palavras de Tirésias quando diz que duas são as coisas mais importantes
na vida dos homens, por um lado, a Terra que nos nutre e nos alimenta, Deméter
que semeia, cresce e colhe e, por outro, o vinho de Diónysos que ajuda a esquecer
os tormentos da vida, que nos introduz nos mistérios do desconhecido e que nos deixa embriagados com a revelação. Deste
modo, segundo Jaeger, "Em As
Bacantes, obra da sua extrema velhice, pretendeu-se ver uma auto-descoberta
do poeta, uma fuga do intelectualismo iluminista para a experiência religiosa e
a embriaguez mística."(Jaeger: 410). Nesta peça, Eurípides supera o racionalismo decadente da sua época e
isola-se num individualismo místico, apesar de céptico em alguns pontos, Eurípides procura a verdade religiosa, aquela que está para além dos limites da
razão, e se esse tema apresenta alguns traços leves em Hipólito, é em As Bacantes
que estes aspectos são mais fortes e intensos, daí que Jaeger continue e diga que
"Mas em As Bacantes aparecem já
profeticamente todos os sintomas: o triunfo do maravilhoso e da conversão
interior sobre o intelecto, a aliança do individualismo e da religião contra o
Estado, que para a Grécia tinha coincidido com a religião, a experiência
imediata e libertadora da divindade na alma individual, livre das limitações de
toda a ética da lei". Em suma, "Eurípedes é o criador de um tipo de
arte que já não se fundamenta na cidadania, mas na própria vida"(Jaeger: 411) e , assim, a alma é
liberta pela divindade e reconhece-se na própria vida.
Bibliografia:
Poética - Aristóteles, Poética. Lisboa: INCM, 2000.
Bacantes - Eurípides, Bacantes. Lisboa: Edições 70, 2011.
Hipólito - Eurípides, Hipólito. Lisboa: Edições Colibri, 1993.
Kitto - Kitto, H.D.F., A Tragédia Grega - Estudo Literário, 2 Volumes, 2ª Edição. Coimbra: Arménio Amado Editora, 1990 (1970).
Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995 (1986).
Édipo - Sófocles, Édipo Rei, 2ª Edição. Lisboa: Edições 70, 1989.