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segunda-feira, 8 de março de 2021

8 de Março: o Assassinato de Hipátia (Dia Internacional da Mulher)

Pormenor da Escola de Atenas de Rafael


Hipátia de Alexandria



"Hipátia de Alexandria tornou-se mártir de uma era que se eclipsava. A filha de Téon, editor dos Elementos de Euclides e comentador do Almagesto de Ptolomeu, era de tal forma reverenciada pela sua sabedoria que era conhecida como a Filósofa. Hipátia terá nascido entre o ano 360 e 370 da nossa era. Estudou com Plutarco de Atenas, fundador de uma academia platónica e, com pouco mais de vinte anos, já leccionava, em Alexandria, na Academia do Museum. As suas áreas dilectas do saber eram a Filosofia, sobretudo os sistemas de Platão e Plotino, e a Astronomia e a Matemática, focando o seu olhar, em especial, no Cânone Astronómico de Ptolomeu, nas Cónicas de Apolónio de Pérgamo e na Aritmética de Diofanto. A correspondência do Bispo Sinésio de Cirene, discípulo de Hipátia, revela a admiração que tinha pela sua mestra. Sinésio envia-lhe sete cartas, numa delas, expressou o seu afecto chamando-lhe mãe, irmã e mestra e diz, mais do que uma vez, que deseja que ela estivesse bem, o que é relevante porque a carta é de 413, quando a situação já era tensa. Hipátia será brutalmente assassinada no dia 8 de Março de 415."

"Os principais testemunhos sobre a sua morte são a História Eclesiástica de Sócrates Escolástico, ou Sócrates de Constantinopla, e a Vida de Isidoro de Damáscio. Segundo Sócrates, Hipátia tinha audiências frequentes com Orestes, um antigo discípulo seu que se tornara perfeito de Alexandria e do Egipto, e, face ao litígio entre este e Cirilo, Patriarca de Alexandria, tornou-se o alvo de todas as críticas. Os cristãos afectos a Cirilo viam nela um problema. Sócrates diz que alguns, mais destemidos e com excesso de zelo e chefiados por um homem chamado Pedro, esperaram que ela voltasse a casa, puxaram-na para fora da sua carruagem e levaram-na para uma igreja chamada Caesareum. Na igreja, despiram-na e assassinaram-na com pedaços de cerâmica. Desmembraram-na, esfolaram-na e, de seguida, levaram os restos mortais para um lugar denominado Cínaron e queimaram-nos. Para o Escolástico, este acto não trouxe nenhuma desonra, opprobium, à pessoa de Cirilo, nem à comunidade cristã de Alexandria, pois os massacres estão muito distantes do espírito do cristianismo. O sucessor historiográfico de Eusébio de Cesareia sentiu necessidade de ilibar Cirilo. Damáscio, o último dos neoplatónicos, que foi perseguido pelo Imperador Justiniano, também escreveu sobre Hipátia e, embora tenha nascido alguns anos após a morte da Filósofa, o seu testemunho é tão válido como Sócrates Escolástico, pois este, apesar de contemporâneo de Hipátia, não estava em Alexandria à data dos acontecimentos. Damáscio diz que Cirilo era um bispo da facção contrária, depreende-se portanto contrária à de Hipátia. Ora esta afirmação pode levar-nos a admitir que Hipátia ou se teria tornado cristã, mas não seguidora do credo de Niceia, ou teria simpatia por outra facção, leia-se, muito provavelmente, uma próxima da visão de Orígenes ou de Nestório. Segundo Damáscio, Cirilo estaria a passar junto da casa de Hipátia, onde viu homens a entrar e a sair, cavalos a chegar ao local e a deixá-lo, um grande tumulto de gente. Cirilo perguntou o que se passava e recebeu como resposta que tinham vindo todos ouvir as palavras de Hipátia. Cirilo ficou com a sua alma amarga, devido à inveja que sentiu, e decidiu engendrar um plano para matar a Filósofa. Desta forma, um grupo de homens raivosos, desprezíveis em todos os sentidos, sem temerem o olhar dos deuses, nem a vingança dos homens, assassinaram a sábia. Damáscio acrescentou ainda que o imperador procurou justiça, mas foi apaziguado por um suborno de um amigo. "


Excertos de um livro inédito da minha autoria.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos (Um Pequeno Conto)

Raffaello, Sanzio, The Voyage of Galatea, 1511.
Roma: Villa Farnesina.

O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos

(Um Pequeno Conto)


  Um velho quase cego, sentado em frente ao mundo, tentava resgatar o sonho da memória. Simplício não procurava rememorar uma outra vida. Queria sim recuperar o riso perdido. Queria deslumbrar-se com aquela inocência singular, com aquele doce despertar. Queria fitar e esconder para si a paleta da realidade, as matizes que se estendiam sem esforço sobre o seu olhar, mas a doença que a fere a vida deixou-lhe apenas vultos e sombras, formas ocultas e memórias disformes. Simplício perdera o horizonte.

  Naquele dia, depois de tentar tornar nítido o fumo espesso, Simplício percebeu, sem necessidade de recorrer aos sentidos, que existia, mesmo diante de si, uma novidade, uma expressão inaugural que colhia o bater de asas de um anjo. Um demiurgo estava de passagem. Porém, o som da origem foi suspenso por um acorde demoníaco. Na harmonia delicada das asas ondulantes, existia agora uma dissonante tensão, um melodioso conflito que surgia porque algo estava para nascer. Simplício que perdera a cor acreditava que nada podia nascer, que não existia nada para criar. Era tudo sombra. Contudo, o homem caíra no seu próprio erro. O nevoeiro era mera ilusão.

  A nuvem tornava-se mar e os vultos ganhavam a forma de ondas. O velho pensou que o Sol brincava com ele, que a sua luz gerava uma desejada fantasia. Foi então que a maré lhe ofertou o perfume da maresia. O aroma tornava-se memória e Simplício regressava a si. O tempo já não se alongava em fio de tecedeira, era um aro num jogo de criança. Tudo regressava à origem. Simplício voltava à casa que nunca conhecera. Aquele areal, aquele mar, aquele vento eram o lugar da memória, pois o que permanece é o que se lembra e o que se imagina. O homem estava sentado, com as mãos apoiadas na bengala, ceifando aqueles raios de luz e, sem que desse conta, uma forma furtou-lhe a imagem. Diante de si, contornado pelo Sol, um menino quebrara-lhe a memória, o sonho e a ilusão.

  - Saí da frente, fedelho! Não vês que me tiras o Sol.
  - Como lhe posso tirar o Sol se o Sol é todos?
  - Criatura insolente! Já não há educação. Os pais não educam as crianças. No meu tempo, levava uma galheta que ficava logo em sentido.
  - Desculpe, não o queria ofender, só lhe tentei dizer que não lhe posso tirar o que não é seu, mas não se zangue que eu desvio-me. O senhor estava a ver o quê?
  - Nada que te diga respeito.
  - É que o senhor olhava em frente quando estão todos a olhar para a sua esquerda. Toda a gente quer ver os golfinhos.
  - Miúdo, tu não vês que eu sou cego.
  - Não tem de ver, basta ouvir o riso dos golfinhos.
  - Eu não oiço nada.
  - Esteja atento. Parecem gargalhadas.
  - Não oiço nada. Ora esta, não é que o raio do miúdo não me deixa em paz. Vai para ao pé dos teus pais. O teu lugar não é aqui.
  - Eu gosto deste lugar. É tão bom ouvir o riso dos golfinhos. Eles falam a rir.

  Simplício estava incomodado com a presença da criança. O velho sabia que só via sombras, mas sempre ouvira bem. Diziam-lhe até que tinha ouvidos de tísico. Como podia não ouvir o riso golfinhos? A questão inquietava o homem.

  - Ó miúdo, diz-me para onde me devo virar. Onde estão os tais golfinhos?
  - Para este lado, eu ajudo-o – menino, levando o velho pela mão, sentou-o em frente aos golfinhos.
  - Aqui estou bem?
  - Sim, está. Oiça agora. Os golfinhos estão a gargalhar. Riem como se ouvissem uma piada. Sabe como aquelas que nos fazem chorar de tanto rir.
  - Não oiço nada. Estás a enganar-me. Estás a gozar comigo. Sai, sai já daqui ou dou-te umas bengaladas!

  A criança desapareceu, deixando o velho na sua própria angústia. Simplício não conseguia escutar o riso dos golfinhos. A ausência condenara-lhe a possibilidade. A audição sempre lhe compensara o limiar da cegueira, todavia a dúvida cercara-lhe a certeza. Se não podia confiar no que ouvia, tinha de se firmar nos vultos e deixar-se assombrar pela confusão das coisas. No entanto, não se dera por derrotado. Simplício, já que não conseguia ouvir o riso dos golfinhos, queria afastar a poeira do olhar e deter-se nas suas próprias sombras. Focava-se no horizonte perdido e procurava aqueles seres de passagem, todavia, nenhuma forma esfumada cavalgava as ondas da sua imaginação. O seu mar era apenas o tempo que avança e recua, o perfume de sal espesso que lhe tocava o sopro e o desalento. Nada existia naquele oceano revolto. O Sol sulcava-lhe as rugas e a penumbra de luz ferida vertia-se numa única lágrima. Nos vultos serpentinos, os golfinhos permaneciam indeterminados. Simplício desistiu. Deixou que o rosto cobrisse a escuridão. Colocou as mãos na bengala e baixou a cabeça.

  Passados alguns minutos, que se assemelhavam a horas de mergulho profundo, o homem ergueu a face tombada. Não havia nem mar, nem ondas. Simplício estava num banco de jardim, observando as sombras de passagem, gente que corria, gente que, sem mar, se afogava. Aquele era o seu lugar. Numa quietude sem espanto, o velho observava a vida dos outros. Porém, aquela outra viagem esvaziara-lhe o interesse. Simplício levantou-se e, apoiado na sua bengala, caminhou até casa. Subiu as escadas estreitas, baixou a cabeça para entrar e suspirou. Sem qualquer alento, deu desprezo ao Sol do crepúsculo e correu as cortinas. Puxou as orelhas da cama, para lá do seu próprio rosto, e dormiu. Nessa noite, Simplício sonhou com golfinhos. 


RMdF