I
Maria Clara, inquieta e angustiada, dava voltas na cama. Como uma tempestade revirava os lençóis. Tornava a areia lisa do tecido em dunas íngremes de cobertores e mantas. O seu sono era o de quem leva a bordo a dor no inconsciente e a veleja no mar agitado do sonho e da fantasia. As gotas de suor e lágrimas eram o rio que corria até ao seu corpo, desaguando em tormenta e memória. Com os olhos fechados e a respiração ofegante, a jovem mulher rodava de um lado para o outro. A realidade de quem apenas vê permanecia de pálpebras deitadas e tudo quanto existia era sonho e imaginação, dádiva e desgraça. Maria Clara sonhava com Dante.
O segundo círculo do Inferno, mais pequeno que o primeiro, mas maior em sofrimento, era um abismo de dor e um vórtice de expiação. Porém, naquele lugar não existia perdão, nem absolvição. A pena do pecador estendia-se na eternidade. Maria Clara estava encolhida sobre si mesma, de braços cruzados, envolvendo o peito, e levemente curvada, devido à gravidade do espaço. Olhou em frente e viu, não muito longe, o horrível soberano de cauda rodante, o juiz e o carrasco, o senhor que pune, sem compaixão, aqueles que foram entregues ao círculo dos luxuriosos. Os condenados por amor faltoso, por erro do coração, colocados diante da justiça de Minos, desconheciam o seu fado. A sua sentença era volverem-se, girarem sobre si mesmos, num tornado de agonia, juntos, mas sem união, até desesperarem na roda do tempo que não pára.
Maria Clara seguiu, a passo tardio, o caminho que temia encontrar. Olhava à sua volta, detinha-se nos casais em pranto, procurando chegar a quem há muito perdera. Aproximou-se mais um pouco, até que, junto dela, estavam duas sombras, as quais observavam e nomeavam o mesmo que a jovem queria ver. Ouviu, da boca do guia, os nomes dos danados. Primeiro as mulheres, a quem o pecado da luxúria é gravemente sancionado e a quem, por norma, se atribui uma pena superior e mais didáctica. Com as palavras do mestre e do seu discípulo, pode identificar Semíramis da Assíria, Dido de Cartago e Helena de Tróia. As três mulheres que em diferentes formas de amar se perderam eram penitentes sem perdão. Os amorosos companheiros também não escaparam da punição que no tempo se arrastava. Aquiles, Páris e Tristão a outros mil se juntaram, seguindo o séquito de luxuriosos a quem o amor fendeu o fio da vida severa. Maria Clara, assistindo à procissão da turba dolorosa, procurava, sem cessar, um casal de amantes que só ali podiam estar, mas as lágrimas que o choro estendia impediam-na de olhar com vagar e pormenor. Diante de si e dos outros viajantes, dois amantes se colocaram, rodando em sofrimento e pesar. Francesca da Polenta e Paolo Malatesta morreram por amar, foram assassinados pelo marido e irmão. Maria Clara perguntava-se que amor era aquele que não permitia amar quem fora amado, mas, sem resposta, sentiu o fraquejar das pernas, o peso sobre os ombros, a queda que ameaçava. A tragédia dos amantes era idêntica à dos seus pais que também foram mortos por amar e, sem perdão, somente no Inferno podiam estar.
Maria Clara fixou os olhos daquele que seguia o mestre latino e viu as lágrimas que o tomavam. A dor de Francesca era a sua própria dor, dor essa que era idêntica ao quebranto que a jovem sentia. O sofrimento tomou o corpo e nele se fez raiz. O poeta descrevia o texto como vida, como mestre no caminho, pois indicava e sugeria, por sibilinos oráculos e por sinais de símbolo, analogia e metáfora, o destino que não se podia evitar. A página que ditou o fim de Francesca e Paolo foi a mesma, ou pelo menos um cópia ou adaptação, da que marcou a morte dos seus pais. Maria Clara procurou a memória, o sentido e o valor, mas tudo o que levava consigo era a proximidade da queda, do abismo que inauguralmente se apresentava. A dor dominou a fraqueza de quem via os amorosos em tamanha agonia e pranto e, na impossibilidade de libertar o amor dos seus algozes, a morte tolhia-lhes os membros. O fiorentino escrevente quebrou-se em queda certa e chorou o amor alheio como se o seu próprio coração tivesse sido apartado, arrancado do peito sem bebida forte ou pancada rude. Maria Clara, tal como Dante, caiu no sonho e na vida como um corpo morto cai. A jovem mulher tinha a consciência cristalina que um amor que não nos ergue ao sol e às estrelas só ao Inferno nos pode conduzir e, embora não tivesse visto os seus pais, sabia que seguiriam no séquito dos defuntos do amor.
Maria Clara acordou do seu sonho como se se estivesse a afogar no mar profundo e fosse resgatada, puxada para cima, por um velho marinheiro que a furtou à morte escrita. Os pulmões negavam o sopro que era dádiva e feriam o peito quando inspirava. A jovem sentou-se na cama, desapertando os botões da camisa de dormir, soltando o pescoço que sufocava. Deixou os seios expostos à noite que fora uma cruel conselheira. O suor corria da testa à foz, humedecendo a roupa e pingando do cabelo. Não fora apenas o que vira que a deixara em sofrimento, foi também o que não vira, o que não disse, o que não pode expressar. A memória implorava por transformação, por justiça ou entendimento. A jovem levantou-se, caminhou para a bacia de água e despejou as conchas das mãos no rosto quente. Molhou o pano bordado e banhou-se de lua e esquecimento.
..... continua
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