quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Sermão do Amor que Deus é

David, Gerard, O Casamento em Caná, c.1500.
Paris: Museu do Louvre.



o mè agathôn ouk égnô tòn theón, 
hóti o theòs agápê estín.

Primeira Epístola de São João, 4, 8.



  Deus é Amor e aquele que ama, para amar verdadeiramente, terá de destruir o muro alto que torna o outro em morte. A destruição que a morte produz é sempre esse outro que avança, sem rosto, até nós. Porém, se, como um dilúvio, transbordares para além de ti o Amor que Deus é, a morte deixa de existir. O Amor que Deus é vive permanentemente. 

  Não te deixes enganar e julgues que transbordar o Amor que Deus é se afirma como coisa fácil, pois não o é. Transbordar de Amor implica ir para além de ti próprio e, despojado, avançar pela força do Amor que Deus é para o reino que a morte governa. A cada passo que deres, nessa alameda amorosa, perderás uma parte de ti, não o lugar Deus habita, mas sim a superfície de todas as vaidades, as camadas profundas de ignorância, erro e ilusão. 

  Por vezes, existem passos que são dolorosos, onde caminharás, descalço, sobre pedras aguçadas, pois não queres perder aquilo que julgas que é teu. Como tens tantas superfícies vãs sobre a pele da tua alma, não sabes que aquilo que é verdadeiramente teu é tão pouco, que é o que basta. 

  Aquele pequeno lume, aquela chama que, escondida, ocultas entre as tuas mãos, guardada no abismo da tua existência, é tudo aquilo que és. Esse pequeno lume, pela força do Amor que Deus é, pode conflagrar o universo e consumir tudo o que permanece apartado, fechado na confusão das coisas. 

  O Amor que Deus é está em ti como uma estrela no firmamento. Tu és a tua própria constelação. E, com a liberdade que emana da Providência, poderás escolher a ilusão daquilo que pensas que és ou diluíres-te na imensidão do Amor que Deus é. Na verdade, aquilo que julgas que é uma escolha não passa de uma afirmação da vontade, não daquela que move as paixões e a ignorância, mas sim aquela que é uma e a mesma.

  A Vontade de Deus é também a tua vontade, mas para compreenderes esse mistério terás de te despir de todas as vaidades, da ilusão que alimenta a tua identidade, e avançar como um recém-nascido na senda do Nada, da anulação da ignorância. Quando compreenderes que o mal é apenas a força confusa da ignorância, poderás imergir na vastidão da Vontade, da Sabedoria e do Amor. Essa Trindade surge à humanidade como Pai, Mãe e Filho.

  O Amor que Deus é revela-se como um dos três caminhos, aquele que surge da síntese da Vontade e da Sabedoria e que conduz ao Divino Indeterminado, o Deus que não pode ser nem palavra, nem pensamento. Somente no Nada conhecerás a totalidade de Deus. Essa é a verdade que tanto vezes negas. Sê portanto o Amor que Deus é.


RMdF
04/09/2018

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Ekpyrosis da Alma (Poesia)


Cossiers, Jan, Prometheus Carrying Fire, 1637. 
Madrid: Museo del Prado.

Ekpyrosis da Alma



Se brilha a alma
Não sejas lume
Brando e manso


Sê o incêndio
Que conflagra
Terra e gente
De ignorância
Contaminada


Sê o fogo cósmico
Que cria e consome
Que nasce e renasce


Sê o abismo
E a montanha
A paz e a guerra


Sê água e fogo
Dilúvio imenso
Incêndio universal


RMdF 04/09/2018

A Sabedoria não tem Idade (Poesia)

Watteau, Jean-Antoine, A Dança, 1716-18.
Berlim: Staatliche Museen.

A Sabedoria não tem Idade

Vetusta criança 
Que antes de ser
Já de si o era
Que nos lábios
Colheu o passado
A secura do Letes

Doce pueril anciã 
Que do fio tecido
A memória guardou
E sem aquela sombra 
Da morte escura
Ou da vida olvidada
Todo o tempo velou

Venerável petiz
Por não ter anos
Mas sim idades
De ceifar a hora
Eleita e certa
Tornou-se a alma
Prudente e sábia
Negada e simples

Prístina menina
Que ao dançar
Muito recordas
De outras eras
Outras danças
Quando foste
Menina mãe
Viúva Trindade
Como o tempo


RMdF 03/09/2018

sábado, 22 de setembro de 2018

A Luz que o Eremita guarda

O Eremita
Tarot Rider-Waite


O Eremita é aquele que resume em si a gestação do espírito e que multiplica, na consciência, o mistério da Trindade.

O Eremita é a candeia da sabedoria, ignorada e rejeitada, e a voz do exílio que, na solidão, contempla a hora de ressurgir. 

O Eremita é aquele que guarda a chama sob o manto como se fosse a síntese da realidade, a inteligência que impera sobre as coisas.

O Eremita é o mestre dos sonhos e peregrino da imaginação que,  despojado, só com a força interior, oferece uma estrela à escuridão. 

O Eremita é aquele que transforma o som das gentes e o desespero da multidão no silêncio da alma e na paz do espírito.

O Eremita é um louco renascido, um caminhante que seguirá a via da noite, guiado pela luz Lua.

O Eremita é aquele que é um pastor da verdade sem rebanho e um senhor da vontade que é poder, pois ao amar domina a Sabedoria.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O Fado do Velho Príamo (Poesia)

Ivanov, Alexander, Príamo a pedir a devolução do Corpo de Heitor, 1824.
Moscovo: Galeria Tretyakov.

O Fado do Velho Príamo

Despojado de si
Crente em Apolo
Indiferente e ledo
Segue suplicante
De Tróia o rei Príamo

Roga ao meio deus
O corpo do filho morto
Ao belicoso carrasco
Implora o recto juízo 
Clama só a justa morte

Na noite da negra Nyx
Espera sem sorte ou arte
Uma prudente luz
Da luminar razão 
E sem nada almejar
Além da morte certa
Suplica a benevolência
De um cruel algoz

Áquiles surpreso decide
Sem puder recusar
Dar o corpo morto
Aos lúgubres lumes
Nem sempre a espada
Move a ilustre coragem
E pode a superna alma
Ter força de falange

Príamo o suplicante
Fez de glória vã
A vitória de Aquiles
E deu ao morto Heitor
A sombra da dignidade

E na noite avançou
Como vazio vulto 
Para a morte próxima
Pras perdidas ruínas 
Da sua nobre cidade

Assim seguiu despojado
De Tróia o rei Príamo

Assim pela morte vai
E à morte regressa

18/08/2018 RMdF

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Desenhar o Corpo Humano (Poesia)

Da Vinci, Leonardo, Estudo das Mãos, c. 1474.
Windsor: Royal Library.
Desenhar o Corpo Humano

Não nem lápis ou carvão
Nem pincel ou pigmento
Nem martelo ou cinzel
Virgem a tela despida
Frio o mármore casto
E apenas com o aparo
E aquele fluído índigo
Se cria a forma informe
Sugerida por símbolos
E conformados sinais
Com traços de alfabeto
E sombras de metáfora
Seguindo sós e textuantes
Esses sulcos de tinta
Na folha alba plantados
Sem rosto ou corpo
Da mão poética gerado
O desenho do corpo humano

08/07/2018 RMdF

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Biblioteca I: Dorian Gieseler Greenbaum, The Daimon in Hellenistic Astrology

Apresento aqui algumas sugestões para uma biblioteca astrológica. Contudo, como critério de coerência, não irei apresentar nenhum livro que não tenha lido. O objectivo é sobretudo apresentar títulos que permitam aprofundar os conhecimentos astrológicos e que, por norma, não sejam os mais comuns. Um dos piores erros em que pode cair um astrólogo é cingir-se ao superficial e cair no lugar-comum e na frase-feita. Deve-se portanto procurar como se nunca nada se encontrasse. Um livro lido deve assim servir de ponte para o seguinte.


Greenbaum, Dorian Gieseler, The Daimon in Hellenistic Astrology: Origins and Influence.
Leiden e Boston: Brill, 2015.
ISBN: 978-90-04-30621-9
Páginas: 574
Preço: 190.00 €


Comentário

Este livro reproduz a tese de doutoramento da autora, apresentada ao Instituto Warburg da Universidade de Londres. O conceito de daimon (daímōn) serve de base para toda a investigação. Ora este termo, bem como o de týchē, fortuna, como demonstra Greenbaum, estão na origem de alguns dos mais relevantes conceitos astrológicos, como por exemplo as casas V, VI, XI e XII e as partes da fortuna e do espírito. Greenbaum usa em epígrafe inicial o fragmento de Heraclito que serve de mote para toda a conceptualização em torno da palavra daimon: ēthosἦanthrópōi daímōn (O carácter é para o ser humano o seu destino). O termo daímōn surge aqui como indicador do destino, o que está em sintonia com seu significado primordial de demiurgo, de ser intermediário. 

Na primeira parte do livro, Greenbaum explora os conceitos de daímōn e de týchē enquanto representações culturais, religiosas e filosóficas e, recorrendo a um vasto número de fontes antigas, com especial destaque para Plutarco e Vétio Valente, analisa a relação entre os dois termos. Ora dessa relação nascem dois princípios duais: Agathós Daímōn e Agathē Týchē, de um lado, e Kakós Daímōn e Kakē Týchē, do outro. Estes princípios estão na génese das casas V e XI e VI e XII e da sua atribuição quer aos benéficos, Vénus e Júpiter, quer aos maléficos, Marte e Saturno. Estes dois conceitos, de extrema importância sobretudo no período helenista, foram como alicerces para a criação do sistema astrológico tal como o conhecemos. A astrologia foi sobretudo uma criação egípcia de matriz grega, tendo como suporte astronómico a evolução científica em torno da herança babilónica. A divisão da eclíptica, enquanto modelo conceptual, em casas, decanatos, termos, dodecatemoria ou monomoiria e as relações geométricas e simbólicas que resultam da presença dos planetas nesse modelo são um produto do helenismo alexandrino. As concepções filosóficas e religiosas em torno das ideias de daímōn e de týchē foram acolhidas pela astrologia que, por sua vez, renovou as suas significações.

Na segundo parte, é abordada a natureza do conceito de daimon enquanto mediador. A relação com a esfera divina traduz-se numa análise do neoplatonismo, do gnosticismo e mitraísmo, passado naturalmente pela noção do daimon pessoal. Nesta parte, aborda-se também a presença da ideia de daimon nos papiros mágicos e no corpus hermeticum ou hermetica. Aquando desta última fonte, Greenbaum firma nas estrelas  o nascimento dos daimones, o que está em estreita ligação com os últimos capítulos desta parte. O estudo em torno dos decanatos mostra o sentido profundo deste conceito astrológico que deve mais aos decanos egípcios que à ideia limitada de faces. Greenbaum analisa a forma como os vários autores antigos abordam este tema. A tradição que vai Teucro de Babilónia até Heféstion de Tebas, chegando até Cosme de Jerusalém, é fundamental para que a astrologia contemporânea construa uma teoria dos decanatos que se funde para além dos períodos de dez graus e das regências planetárias. Este parte termina com a análise da obra de Porfírio, em especial, no que à noção de oikeîos daímōn (daimon pessoal) concerne. Esta ideia permite o sentido astrológico que une a individualidade ao destino.

Na terceira parte, Greenbaum estuda a relação de daimon com as partes astrológicas, klēroi. Estas são, segundas as palavras da própria autora, uma das principais técnicas da astrologia helenista. Ao ler-se esta terceira parte, ninguém voltaria a designar as partes por partes arábicas. A parte da fortuna ou roda da fortuna,  como hoje a designamos, é em grego týchē e a parte do espírito é o daímōn. Estas duas partes, como representantes do Lua e do Sol, estão na origem do cálculo das outras partes, quer seja elas a pouco conhecida parte da base ou fundação (básis), as partes herméticas ou planetárias de Paulo de Alexandria ou as partes de Eros e da Necessidade de Vétio Valente. Segundo a tradição, as partes teriam sido criados por Hermes e passadas a Nechepso e Petosíris. A razão que origina as partes é mesma que se inscreve no procura da duração da vida. Greenbaum analisa, com erudição, os vários testemunhos e teorias sobre esta profunda relação entre as partes e a vida. O leitor pode, sem esforço, perceber que as partes são um importante legado da astrologia helenista e que têm uma aplicação mais integrada na linguagem astrológica que o uso que posteriormente lhe foi concedido. 

Nos apêndices, encontramos, numa primeira parte, uma síntese dos elementos da astrologia helenista e, numa segunda, a apresentação das principais fontes e das respectivas traduções. O livro de Greenbaum é um importante contributo para a dignidade da astrologia enquanto forma de conhecimento e é também a prova de que astrologia pode e deve ser estudada em meios académicos. Para o leitor menos familiarizado com a cultura clássica, a leitura pode ser um pouco densa, mas o que se ganha compensa o esforço. Este livro será sempre uma valiosa aquisição para uma biblioteca astrológica, seja ela física ou digital.