quinta-feira, 20 de abril de 2017

Do Baú IX: Nemrod: Um Fragmento

Nemrod: Um Fragmento
2013/XI/06

Gustave Doré, "Nimrod and his horn", Dante Alighieri's Inferno
(New York: Cassell Publishing Company, 1890).
Citação:

Poi disse a me: «Elli stessi s'acussa;

questi è Nembrotto per lo cui mal coto

pur un linguaggio nel mondo non s'ua.

Lasciànlo stare e non parliamo à vòto;

ché cosí è a lui ciascun linguaggio

come 'l suo ad altrui, ch'a nullo è noto.»

Dante, Divina Comédia, Inferno, XXXI, 76-81

Fragmento

Em cada língua que o seu espaço ocupa,
 o vazio é a argamassa de uma torre que se ergue. 
Babel sobe e a Palavra afunda-se.

Do Baú VIII: A Máxima de Bartleby: “Prefiro não o fazer”

A Máxima de Bartleby: “Prefiro não o fazer”
2013/III/15
Danhauser, Josef Franz, Siesta (The Sleepers), 1831.
 Budapeste: Szépmûvészeti Múzeum,
Melville, em Bartleby, o Escrivão, expressou uma categoria filosófica que pode também ser entendida como um modo último de vida. A impotência, a não-potência, o acto de contrariar a acção impõe-se como possibilidade, como uma permanência na possibilidade. O dizer "Prefiro não o fazer" é o baluarte supremo da resistência, revela que pode, mas prefere não o fazer. Existe aqui uma deliberação, uma escolha que, embora impeça o acto, a realização, não deixa de ser activa.  
Agamben, no ensaio "Sobre o Que Podemos Não Fazer" (57-9), diz que "o homem é, por conseguinte, o ser vivo que, existindo sob o modo da potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, trate-se de fazer ou de não fazer" (58). A potência, a dinâmica que exige o acto, que força a realização vê na impotência uma forma de resistência, de contrário. Melville escreve: "de início, Bartleby produziu uma enorme quantidade de escrita. Como se estivesse faminto de copiar, parecia empanturrar-se com os meus documentos. Não havia pausas para a digestão. Trabalhava dia e noite, sem parar, copiando à luz do Sol ou de uma vela. Eu ter-me-ia deliciado com a sua aplicação caso a sua diligência fosse animada. Mas ele escrevia em silêncio, sem brilho, mecanicamente" (31). Nesta passagem, podemos destacar alguns aspectos: em primeiro lugar, o verbo copiar, Bartleby não cria, não gera, copia, transporta, de um lado para o outro, o texto já existente; em segundo lugar, o trabalho contínuo, a acção sem suspensão, sem alternância; e, em terceiro lugar, a mecanicidade do acto de copiar, o silêncio que é a repetição do mesmo, o brilho que falta, a alegria que está ao ausente. É face a este trabalho que Bartleby opta por não o fazer, por se recusar, constantemente, a desempenhar as acções solicitadas pelo patrão, que diz "tivesse eu notado o mais pequeno desassossego, zanga, enfado ou impertinência na sua atitude, por outras palavras, tivesse existido o mínimo vestígio de humanidade nele, sem dúvida que o teria expulsado com violência das minhas instalações" (33). Bartleby, no seu acto de não fazer, anula-se como humano, priva-se de sentir. O escrivão repete a não-dinâmica, a impossibilidade que a sua escolha gerou. Em última análise, Bartleby cria pela primeira vez, do seu acto criativo produz a não-acção.
Esta máxima é extremamente perigosa para a ordem social, pois, por um lado, implica um acto axiológico, uma atribuição de valor, e, por outro, rejeita o valor que confere à realidade, afasta-se dela, distancia-se, escolhe não intervir. Esta impotência é o estágio último de uma greve de zelo. O trabalhador cumpre o dever de estar no local de trabalho, mas não executa os procedimentos solicitados. No entanto, a sua postura não é de provocação, é sim de negação. Pensamos, com frequência, que a resistência está na acção, no movimento, todavia, esta forma de resistência é desconcertante, priva a realidade do seu sentido, pois não é reacção, luta de contrários, é um revogar deliberado da possibilidade de fazer, o que põe em causa a interacção social. 

         Bartleby, o Escrivão de Melville e "Sobre o que Podemos Não Fazer" de Agamben são duas leituras interessantes que nos abrem a mente para um outra possibilidade.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

O Número de Casamentos segundo Doroteu de Sidon

Doroteu de Sidon
(Século I da E.C.)
Pentateuco 
Ou
Carmen Astrologicum
Livro II, 5
Acerca do Número de Casamentos

Pingree, David (Ed.),
Dorothei Sidonii Carmen Astrologicum, p. 50.

Se se desejar saber com quantas mulheres vai um homem casar, então deve-se marcar do Meio do Céu até Vénus, o número de planetas que estiver entre os dois indica o número de mulheres com quem irá casar, porém, sempre que se encontrar Saturno, deve-se esperar frieza e tensão, e se se encontrar Marte, deve-se esperar a morte, a menos que sobre ele existam aspectos benéficos. Nas natividades das mulheres, se se desejar saber com quantos homens vai casar, então deve-se contar do Meio do Céu até Marte, mas se Marte estiver no Meio do Céu, deve-se contar do Meio do Céu até Júpiter, o número de planetas que estiver entre os dois indica o número de homens com quem vai casar. Se, a partir do Meio do Céu, Vénus estiver cadente, pode-se dizer que existirá pouca constância do homem para com as mulheres, o mesmo se pode afirmar em relação às mulheres se Marte estiver na sétima.

(...)

Doroteu de Sidon, Carmen Astrologicum, II, 5.  Tradução RMdF.


Versão Utilizada:
Pingree, David (Ed.), Dorothei Sidonii Carmen Astrologicum. Leipzig: Teubner, 1976, p. 50 e 204.


 Comentário

   Em teoria, o método apresentado por Doroteu de Sidon sustenta-se num modelo formal e material válido e plausível, todavia a verificação dos seus pressupostos permite que se estabeleçam algumas inconsistências. Em primeiro lugar, deve-se ter em consideração que o modelo é  constituído apenas por sete astros (Sol, Lua, Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno, isso se o Sol e a Lua forem incluídos na designação de planeta), pois Úrano, Neptuno e Plutão ainda não haviam sido descobertos e, uma vez que a astrologia tradicional se fundamenta no que é observável pelo olhar humano, também não devem  ser considerados. Dos sete astros, ainda temos de reduzir um, Vénus para os homens e Marte ou Júpiter para as mulheres. Desta forma, só existem seis astros disponíveis e, como a probabilidade de estarem todos ou quase todos entre o Meio do Céu e o respectivo planeta é limitada, então o número de casamentos possíveis está restringido a um valor pequeno. 

   Este aspecto levanta alguns problemas, sobretudo em casos como, por exemplo, o de Elizabeth Taylor, que casou oito vezes, embora duas delas com Richard Burton. Ora Elizabeth Taylor  tem o Meio do Céu a 14° de Balança e Marte a 1° de Peixes e entre eles estão apenas a Lua e Saturno. Apesar do elemento quantitativo, descrito por Doroteu de Sidon, não se verificar neste caso, o valor do sentido não deixa de ser relevante, pois, por um lado, a presença da Lua e de Saturno aponta para instabilidade emocional e relacional na vida de Elizabeth Taylor como, por outro lado, permite que se estabeleçam interpretações que vinculam, por exemplo, a Lua em Escorpião com a morte de Michael Todd, seu terceiro marido, e a dor dessa perda, bem o peso das dívidas herdadas, e, noutro exemplo, o Saturno em Aquário com a relação tempestuosa com Richard Burton, onde a liberdade emocional de Taylor foi restringida, de tal modo que iniciou uma relacionamento extraconjugal com o Embaixador Iraniano Ardeshir Zahedi. Desta forma, embora o elemento quantitativo produza inconsistências, o valor material e significativo permite que o contributo de Doroteu de Sidon continue actual.

   Um outro aspecto que também deve ser considerado é a natureza do conceito de casamento, que evoluiu ao longo dos tempos. Neste quadro interpretativo de Doroteu de Sidon, deve-se estabelecer como premissa a natureza dos relacionamentos a considerar, onde um mero pressuposto legal pode não ser suficiente. Por exemplo, até ao Sinodo de Whitbey, em 664 E.C., os povos da antiga Bretanha praticavam um casamento, Handfasting, que era celebrado por um ano e um dia, após esse período os esposos decidiam se este continuava ou não. A consumação também pode ser um requisito prévio para constar no número estabelecido por Doroteu de Sidon, bem como qualquer forma de relacionamento íntimo que implique a vida em comum. Ou, por outro lado, deve-se enumerar apenas aqueles que se estabeleceram numa base afectiva genuína?  Esta questão é de suma importância, pois é a sua resposta que permite atestar a veracidade do método proposto.

   Por fim, a questão textual e acerca das fontes também merece alguma atenção. Doroteu de Sidon terá escrito a sua obra entre os anos 25 e 75 da nossa era e, embora fosse originário de Sidon, uma parte significativa da sua vida terá sido passada em Alexandria. O Carmen Astrologicum ou Pentateuco é um texto sobre astrologia, escrito em verso, e que se destaca por ter sido o primeiro texto de que se conhece a incluir as katarchai, as Interrogações ou Eleições, as quais se tornaram em importantes indicadores da actividade dos astrólogos e dos motivos que levavam as pessoas a procurá-los. Doroteu distinguiu-se também de Ptolomeu por incluir as Partes na sua obra. O Carmen Astrologicum tornou-se num texto importante que serviu de fonte para, por exemplo, Heféstion de Tebas e Firmicus Maternus. No Catalogus Codicum Astrologorum Graecgrum (CCAG), podemos encontrar cerca de trezentos fragmentos da obra de Doroteu de Sidon, que serviram de fonte directa para os seus textos, mas foi a partir da edição de David Pingree que pudemos aceder à maioria do Carmen Astrologicum. Essa edição sustenta-se em primeiro lugar nas versões de Abû Hafs 'Umar ibn Farrukhân Tabarî, conhecido no ocidente como Omar Tiberiades, que datam de 800 E.C. e baseiam-se numa tradução pahlavi, ou seja, persa, do século III. Existe também uma outra versão árabe, de cerca de 770 E.C., com um carácter  fragmentário e atribuída a Māshā'allāh, onde encontramos textos que não estão na versão de al Tabarî, mas que estão, em parte nos fragmentos do CCAG. Foi esta concórdia de fontes que permitiu que hoje seja possível aceder à maior parte do Carmen Astrologicum.

   Em suma, a obra de Doroteu de Sidon merece ser lida e pode contribuir para uma fundamentação da linguagem astrológica, que hoje tem uma natureza líquida, dispersa e sem um sistema de sentido que lhe dê forma. A astrologia clássica permite um rigor que na astrologia contemporânea nem sempre existe e a análise ao número de casamentos de Doroteu de Sidon fornece-nos um indicador de estudo que não deve ser desprezado. A sabedoria está em quem procura. 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

As Casas de Exaltação segundo Ibn Ezra (Tradução)

Abraão ibn Ezra 
(1089-1167)
 O Livro das Razões
(Reshit Hokhmah)
Capitulo 2, 16 
Casas de Exaltação


16
(1) Vou agora abordar as casas de exaltação.

(2) Dizem que a exaltação da Lua ocorre no terceiro grau de Touro, esta é a opinião dos cientistas indianos.

(3) Ptolomeu defende que todo o signo é a sua casa de exaltação [lit. casa de honra], pois quando a Lua está em conjunção ao Sol em Carneiro, o que significa a génese do mundo, e ela pode ser observada a oeste da Terra no signo de Touro.

(4) Os cientistas indianos afirmaram que isso ocorre desse modo porque a distância da exaltação da Lua ao lugar da exaltação do Sol é igual à distância da Lua ao Sol quando a Lua abandona a luz solar. Portanto, eles disseram que o grau de sua exaltação é o terceiro grau de Touro.

(5) Ora o grau de depressão [leia-se queda] do Sol é 19 de Balança e o grau de depressão da Lua é 3 de Escorpião, daí eles designarem os graus de 19 de Balança a 3 de Escorpião como "lugar de combustão" e defendem que o poder de qualquer planeta extingue-se nesse lugar. É chamado de "lugar de combustão", pois é como se o planeta em causa ardesse com a luz solar.

(6) Afirmaram também que Balança é a casa de exaltação de Saturno, visto que a sua natureza é oposta à do Sol, logo a sua casa de exaltação é a casa de depressão [lit. casa de desonra] do Sol e a casa de depressão de Saturno é a de exaltação do Sol.

(7) Os cientistas indianos disseram que a exaltação de Saturno ocorre a 21° de Balança, tal como verificaram pela experiência.

(8) Enoque afirma que a exaltação de Saturno ocorre quando este está a dois graus da oposição ao Sol exaltado, de modo a que não recaia sobre o Sol um grande prejuízo.

(9) Os cientistas indianos disseram que a exaltação da Cabeça de Dragão ocorre a 3° de Gémeos, onde é também a depressão da Cauda de Dragão, mas Ptolomeu riu-se deles, pois a Cabeça de Dragão não é uma estrela, e está correcto. 

(10) Eles afirmaram que a casa de exaltação de Júpiter é Caranguejo, pois Júpiter indica os ventos do Norte e quando está nessa casa os ventos aumentam, e os cientistas indianos disseram que o grau da sua exaltação situa-se no meio do signo. 

(11) Uma vez que Marte gera os ventos do Sul e eles intensificam-se quando está em Capricórnio, disseram que esta é a casa de exaltação de Marte. Assim sendo, está em oposição a Júpiter tal como o Sol está em oposição a Saturno, pois a natureza de Marte é oposta à natureza de Júpiter.

(12) Os cientistas indianos defendem que o grau da sua exaltação o era o 28° de Capricórnio, pois nesse lugar existe uma estrela distante com a sua natureza.

(13) Eles afirmaram que a casa de exaltação de Vénus é Peixes, pois verificaram por experiência que a sua casa de depressão é Virgem, uma vez que esta indica uma relação sexual negativa e indecente.

(14) Isto porque Vénus indica os prazeres terrenos e Mercúrio tudo o que se relacione com a sabedoria. Eles disseram que a casa de exaltação de Mercúrio está em oposição à casa de exaltação de Vénus e que a casa de depressão de um é a de exaltação do outro.

(15) Quanto ao que eles disseram, ou seja, que os signos de água não têm voz, isso aplica-se também aqueles que nasceram na água.

Tradução: RMdF

Versão utilizada: 
Ibn Ezra, Abraham, The Book of Reasons - A Parallel Hebrew-English Critical Edition of the Two Versions of the Text. Edited, translated and annotated by Shlomo Sela. Leiden and Boston: Brill, 2007, pp. 54-57.

sábado, 1 de abril de 2017

Do Baú VI: 9 Fragmentos (ou O Fragmento é Semente)

Botticelli, Sandro, Madonna com a Romã (Pormenor), c.1487.
Florença: Galleria degli Uffizi.

O Fragmento é Semente – I
2013/VI/20

A História é uma faca que talha os factos numa forma que é intencional e imaginativa.


O Fragmento é Semente – II
2013/VI/21

Que Deus nos livre do momento em que a noção de interesse nacional seja uma e a mesma, pois quando isso acontecer já não estaremos em Democracia.


O Fragmento é Semente – III
2013/VIII/06

A memória e a imaginação exaltam a natureza mítica da realidade, atribuindo-lhe um carácter de ideal ou de arquétipo.


O Fragmento é Semente – IV
2013/VIII/07

Os sonhos guardam-nos do horror do mundo. No inconsciente, repousa a origem da nossa vocação.


O Fragmento é Semente – V
2013/X/03

Rejeitar o acto de votar é uma negação da democracia. A abstenção mina a legitimidade dos eleitos e destrói a sustentação do regime. Sem voto, a democracia é uma ilusão.


O Fragmento é Semente – VI
2013/X/11

O som do mundo nasce da sensação e o pensamento do seu silêncio.


O Fragmento é Semente – VII
2013/X/16

Neste mundo confuso, não existem caminhos rectos, apenas passos longos e quedas iminentes. 


O Fragmento é Semente – VIII
2013/X/18

A Esperança é como o Colosso de Rodes. Firma-se, de um lado, no Momento e, do outro, na Oportunidade. E o Tempo é o mar que por ela passa.


O Fragmento é Semente - IX
2013/XI/01

Primeiro tínhamos Deus, depois a Humanidade, e agora temos os estilhaços dessas duas crenças.

Do Baú V: Não queiras ser um Deus, sê antes Humano

Não queiras ser um Deus, sê antes Humano
2016/V/06

Baburen, Dirck van, Prometeu a ser Agrilhoado por Vulcano, 1623.
Amesterdão: Rijksmuseum.

   Num mundo sem Deus, é mais fácil construir um deus do que um ser humano. A sociedade avançou - ou regrediu - num processo de individualização extrema que egotiza a realidade e desumaniza a consciência que temos de nós próprios, dos outros e do mundo. Perdemos o humano, porque nos engrandecemos como deuses.

   Abastecemos com egocentrismo a nossa imagem e consideramos a aparência a nossa verdadeira essência. A obsessão pelo corpo e a necessidade de anular o envelhecimento são prova da incapacidade de nos aceitarmos como humanos. Os gregos tinha o conceito de kalokagathía que significava a união do belo, kalós, com o bom, agathós. Esta noção daria, mais tarde, a máxima mens sana in corpore sano que, curiosamente, deriva de um verso, usado com ironia, nas Sátiras (X, 356) de Juvenal. Orientamos a nossa atenção para o corpo e para o belo e deixamos a mente e o bom tolhidos de cuidado. Basta vermos o número de pessoas que recorre a qualquer forma de terapia ou aconselhamento para a mente. A alma humana está profundamente doente, pois consolidou a sua existência, mais do que nunca, na aparência que é, por natureza, é efémera.

   A condição humana é absurdamente frágil. A doença, o envelhecimento e a morte não são possibilidades, são categorias que nos definem como humanos. Lá por comermos muita quinoa, bulgur, seitan ou bagas goji não anulamos a possibilidade de virmos ter cancro, caso exista uma predisposição genética. Podemos, de facto, com uma alimentação saudável prevenir muitas doenças, mas não destruímos, por completo, a possibilidade de termos uma doença grave ou terminal. O exercício, bem como a alimentação, também não afasta da nossa existência o natural envelhecimento do corpo. Pode melhorar a nossa condição física, mas não deixámos de envelhecer.

   A escolha radical pelo culto da aparência revela-se até na linguagem. Para preservar um enorme espectro de ilusões, desenvolvemos eufemismos para dar um outro sentido à realidade. Já não dizemos que é mentira ou falsidade, dizemos que falta à verdade ou que é uma inverdade. Como temos um medo atroz de envelhecer, porque, no fundo, tememos a decadência e a morte, deixámos de ser velhos para sermos idosos, seniores ou anciãos. Ora idoso é quem tem idade e é um mero elemento quantitativo, mais ou menos anos, mais ou menos idoso; sénior vem do latim senior que indica quem tem mais anos, é um denominador superlativo, oposto a minor, que indica quem tem menos de trinta anos, o jovem e a criança; e, por fim, ancião indica alguém que pela experiência ou conhecimento tornou-se um exemplo, logo é um elemento qualitativo que não é comum a todos. No fundo, quer queiramos ou quer não, quando envelhecemos somos velhos, mas podemos ser orgulhosamente velhos.

   A ambição de ser um deus exige palavras e ruído. Perdemos o dom maravilhoso do silêncio e do seu potencial criador. Zenão de Cítio diz que "a natureza deu-nos somente uma boca, mas duas orelhas, de modo que devemos falar menos e escutar mais" (Diógenes Laércio, VII, 23). Falamos por falar, falamos sem sentido, mas sobretudo falamos de nós. Eu sou, eu faço, eu fiz, eu penso, eu sinto enchem os discursos, tudo porque temos a necessidade de divinizar a nossa existência. Temos de ser os melhores, os mais esbeltos, os mais assertivos e com opinião formada sobre tudo. Face a nossa magnitude, os outros só podem ser alvos de crítica. Tudo porque não sabemos ser humanos, porque se soubéssemos, compreenderíamos a nossa condição imperfeita e efémera.

   Os dois textos homéricos, a Iliada e a Odisseia, apontam, logos nos primeiros versos, para a diferença radical entre homem-deus e o homem-humano (perdoe-se o pleonasmo). A Ilíada (I, 1-7) começa da seguinte forma:

Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles. 

   O verso sétimo indica a dicotomia que anteriormente se descrevia. De um lado está o Atrida, Agamémnon, soberano dos homens, e do outro o divino Aquiles. O filho da deusa Tétis e de Peleu, o rei dos mirmidões, têm o seu olhar no céu, na glória da eternidade. É um meio-humano que, no fundo, deseja ser apenas deus, imortalizado no tempo e na história. Contrariamente, a Odisseia (I, 1-10) começa assim:

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion,
o Sol - e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.

Odisseu, ou Ulisses, é humano, sofre, enfrenta a possibilidade da loucura, teme pela sua vida e tenta salvar-se. É um homem que recorre à inteligência e à astúcia para sobreviver. Os dois heróis são, por isso, exemplo dos dois vectores apresentados: o querer ser deus e gozar da imortalidade e o ser humano e aceitar essa condição. Aquiles deve o direito de escolha porque era um semideus. Preferiu a glória imortal e a vida breve, em vez de uma vida longa com mulher, filhos e netos, mas foi o sangue divino de Tétis que lhe deu essa hipótese. Ora Ulisses, à semelhança de todos os humanos, não pode escolher. Teve sempre a vida presa por um fio, como todos nós, com a ameaça constante da tesoura de Átropos.

   O egocentrismo da sociedade contemporânea deixou-nos num estado de desumanização sem par. As pessoas sensibilizam-se mais com um cão maltratado do que com os bombardeamentos a um hospital, cheio de crianças e mulheres grávidas, em Aleppo. Movem-se por causas idealizadas, mas têm pouca compaixão pelo próximo. Estamos tão focados em nós, nos deuses que queremos ser, que nos esquecemos do outro e da nossa humanidade. 



Bibliografia:
  • Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.
  • Juvenal, Juvenal and Persius. Tradução Susanna Morton Braund. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 2004.
  • Homero, Ilíada. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
  • Homero, Odisseia. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Do Baú IV: O Ridículo que pertence à Terra

O Ridículo que pertence à Terra

2016/IV/15

Poussin, Nicolas, The Nurture of Bacchus, 1630-35. Paris: Museu do Louvre.
   

   Hermann Broch deixou-nos a noção transformadora do "absoluto que pertence à terra", indicando o modelo de passagem que permite ver na terra o absoluto que pertenceria somente ao céu. Segundo Filomena Molder, este absoluto terrestre "não é nem abismo, nem transformação em infinito, mas a intensificação da relação entre os dois, o seu sustentáculo". Ora é nesta ponte entre abismo e infinito que se pode introduzir o riso, o cómico como categoria crítica da realidade. O conhecimento da morte e valor efémero da vida conferem à existência humana uma certa dimensão de ridículo.

   A tese que vigorou na Idade Média era de que o riso era próprio dos animais e era uma coisa do Diabo. Essa visão está bem presente na personagem de Umberto Eco Venerável Jorge, a qual argumenta com o Irmão Guilherme a existência de um segundo livro da Poética de Aristóteles, dedicado à Comédia. Em O Nome da Rosa, o texto existe, já nós temos claros indícios da existência dessa obra, hoje perdida.

   O suposto gargalhar de macacos e hienas não passa de uma mera vocalização, pois não é um riso que interpreta a realidade e lhe confere uma natureza crítica. Bergson, no seu ensaio sobre o riso, diz que "não há comicidade fora do é propriamente humano". E é a partir do Renascimento que se reintroduzem as categorias da comédia e do riso como expressões críticas da realidade. É desse momento em diante, e na continuidade de Aristófanes, que foram produzidas as melhores obras de comédia e de sátira.

   Mais tarde, Rabelais, no Pantagruel, vem dizer: "Mieux est de ris que de larmes escripre/ Pour ce que rire est le propre de l'homme". Mais uma vez, a noção de que o riso é próprio do humano apela para a reinterpretação do real. O grotesco é utilizado na crítica à sociedade. O gigante Pantagruel, quando provocado pela multidão de Paris, verte águas sobre ela afogando uma parte, os sobreviventes riem até perderem o fôlego. A origem do nome da cidade surge, nesta sátira, de "Par Ris". A tragédia, pela mão do grotesco, torna-se risível.

Na esteira de Rabelais, Eça de Queiroz afirma, nas Notas Contemporâneas, que "o Riso é a mais antiga, ainda a mais terrível forma de crítica". Quando lemos as comédias de Aristófanes compreendemos a importância do riso como crítica, sobretudo social, como por exemplo nas peças Lisístrata ou As Mulheres na Assembleia. O ser humano quando ri tem sempre um referente para o seu riso, seja de si, do outro ou da comunidade.

   No entanto, tal como diz Eça, "penso que o riso acabou - porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização". As aparências e a complexidade dos artifícios sociais enfraqueceram o riso como crítica. A crítica social através do riso repousa apenas naqueles que vivem do humor e, todavia, os remetentes da sua mensagem não a interiorizam, preferem sorrir como se fosse uma necessidade protocolar, determinada pelo o que é comummente aceite. O rir dos outros mantém-se quase inalterado, pois apela a uma certa maldade intrínseca de diminuir o próximo. Porém, se este fosse equilibrado com a nobre acção de rirmos de nós mesmos, seria atenuada a perfídia do julgamento fácil, mas é aqui que reside o problema. Tornámo-nos tão cinzentos e tristes que temos dificuldade em rir de nós mesmos. 

   Montaigne, no ensaio Da Vaidade, diz que "a corrupção da nossa época grassa devido ao contributo pessoal de cada um de nós: uns concorrem para ela com a traição, outros, com a injustiça, com a irreligião, a tirania, a ganância ou a crueldade, à proporção do poder que têm; os mais fracos, entre os quais me conto, contribuem com a tolice, a vaidade ou a ociosidade". O ser humano insuflou-se tanto de ego e vaidade que é incapaz de ver que o produz é mais corrupção do que esplendor. A capacidade de rirmos de nós mesmos é um ensimesmamento terapêutico. E só quem se tem em grande conta é que é incapaz de rir de si. Somos uma migalha ínfima no universo, logo não adianta as grandezas do eu.

   O gordo, o pobre, o mal vestido, o que tem um carro velho ou uma casa modesta são motivo de riso, mais comum do que a nossa insignificância ou a nossa ignorância. Pensamos que o que somos e fazemos é magnânimo e magnífico, mas a ironia está no ridículo que somos quando assim nos apresentamos. Existe sempre um outro lado: o magro extremo que da boa comida abdica também é ridículo; o rico que na opulência se espelha é ridículo; o que demasiado aprumado se veste é ridículo, pois é incapaz de descontrair; o carro faustoso é ridículo e a casa excessivamente rica é ridículo e pirosa.

   A didáctica do riso garante o nosso lugar no mundo e fixa a nossa dimensão humana. Temos de seguir a máxima de Rabelais: "Riez! Riez!". O sábio e o génio riem de si, porque conhecem os seus limites, já o ignorante adorna a sua vaidade com lustrosas patentes e medalha o ego com a riqueza dos seus feitos ilusórios. Somos cinzas e pó que temem o abismo e fitam o infinito. A nossa existência é este ridículo que pertence à terra.


Bibliografia:
Bergson, Henri, O Riso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
Eco, Humberto, O Nome da Rosa. Lisboa: Difel, s/d.
Montaigne, Ensaios - Antologia. Lisboa: Relógio D'Água, 1998.
Molder, Maria Filomena, O Absoluto que pertence à Terra. S/l: Vendaval, 2005.
Queiroz, Eça de, Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.
Rabelais, François, Gargantua et Pantagruel. Paris: Arlea, 2010.