segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O Fado do Velho Príamo (Poesia)

Ivanov, Alexander, Príamo a pedir a devolução do Corpo de Heitor, 1824.
Moscovo: Galeria Tretyakov.

O Fado do Velho Príamo

Despojado de si
Crente em Apolo
Indiferente e ledo
Segue suplicante
De Tróia o rei Príamo

Roga ao meio deus
O corpo do filho morto
Ao belicoso carrasco
Implora o recto juízo 
Clama só a justa morte

Na noite da negra Nyx
Espera sem sorte ou arte
Uma prudente luz
Da luminar razão 
E sem nada almejar
Além da morte certa
Suplica a benevolência
De um cruel algoz

Áquiles surpreso decide
Sem puder recusar
Dar o corpo morto
Aos lúgubres lumes
Nem sempre a espada
Move a ilustre coragem
E pode a superna alma
Ter força de falange

Príamo o suplicante
Fez de glória vã
A vitória de Aquiles
E deu ao morto Heitor
A sombra da dignidade

E na noite avançou
Como vazio vulto 
Para a morte próxima
Pras perdidas ruínas 
Da sua nobre cidade

Assim seguiu despojado
De Tróia o rei Príamo

Assim pela morte vai
E à morte regressa

18/08/2018 RMdF

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Desenhar o Corpo Humano (Poesia)

Da Vinci, Leonardo, Estudo das Mãos, c. 1474.
Windsor: Royal Library.
Desenhar o Corpo Humano

Não nem lápis ou carvão
Nem pincel ou pigmento
Nem martelo ou cinzel
Virgem a tela despida
Frio o mármore casto
E apenas com o aparo
E aquele fluído índigo
Se cria a forma informe
Sugerida por símbolos
E conformados sinais
Com traços de alfabeto
E sombras de metáfora
Seguindo sós e textuantes
Esses sulcos de tinta
Na folha alba plantados
Sem rosto ou corpo
Da mão poética gerado
O desenho do corpo humano

08/07/2018 RMdF

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Biblioteca I: Dorian Gieseler Greenbaum, The Daimon in Hellenistic Astrology

Apresento aqui algumas sugestões para uma biblioteca astrológica. Contudo, como critério de coerência, não irei apresentar nenhum livro que não tenha lido. O objectivo é sobretudo apresentar títulos que permitam aprofundar os conhecimentos astrológicos e que, por norma, não sejam os mais comuns. Um dos piores erros em que pode cair um astrólogo é cingir-se ao superficial e cair no lugar-comum e na frase-feita. Deve-se portanto procurar como se nunca nada se encontrasse. Um livro lido deve assim servir de ponte para o seguinte.


Greenbaum, Dorian Gieseler, The Daimon in Hellenistic Astrology: Origins and Influence.
Leiden e Boston: Brill, 2015.
ISBN: 978-90-04-30621-9
Páginas: 574
Preço: 190.00 €


Comentário

Este livro reproduz a tese de doutoramento da autora, apresentada ao Instituto Warburg da Universidade de Londres. O conceito de daimon (daímōn) serve de base para toda a investigação. Ora este termo, bem como o de týchē, fortuna, como demonstra Greenbaum, estão na origem de alguns dos mais relevantes conceitos astrológicos, como por exemplo as casas V, VI, XI e XII e as partes da fortuna e do espírito. Greenbaum usa em epígrafe inicial o fragmento de Heraclito que serve de mote para toda a conceptualização em torno da palavra daimon: ēthosἦanthrópōi daímōn (O carácter é para o ser humano o seu destino). O termo daímōn surge aqui como indicador do destino, o que está em sintonia com seu significado primordial de demiurgo, de ser intermediário. 

Na primeira parte do livro, Greenbaum explora os conceitos de daímōn e de týchē enquanto representações culturais, religiosas e filosóficas e, recorrendo a um vasto número de fontes antigas, com especial destaque para Plutarco e Vétio Valente, analisa a relação entre os dois termos. Ora dessa relação nascem dois princípios duais: Agathós Daímōn e Agathē Týchē, de um lado, e Kakós Daímōn e Kakē Týchē, do outro. Estes princípios estão na génese das casas V e XI e VI e XII e da sua atribuição quer aos benéficos, Vénus e Júpiter, quer aos maléficos, Marte e Saturno. Estes dois conceitos, de extrema importância sobretudo no período helenista, foram como alicerces para a criação do sistema astrológico tal como o conhecemos. A astrologia foi sobretudo uma criação egípcia de matriz grega, tendo como suporte astronómico a evolução científica em torno da herança babilónica. A divisão da eclíptica, enquanto modelo conceptual, em casas, decanatos, termos, dodecatemoria ou monomoiria e as relações geométricas e simbólicas que resultam da presença dos planetas nesse modelo são um produto do helenismo alexandrino. As concepções filosóficas e religiosas em torno das ideias de daímōn e de týchē foram acolhidas pela astrologia que, por sua vez, renovou as suas significações.

Na segundo parte, é abordada a natureza do conceito de daimon enquanto mediador. A relação com a esfera divina traduz-se numa análise do neoplatonismo, do gnosticismo e mitraísmo, passado naturalmente pela noção do daimon pessoal. Nesta parte, aborda-se também a presença da ideia de daimon nos papiros mágicos e no corpus hermeticum ou hermetica. Aquando desta última fonte, Greenbaum firma nas estrelas  o nascimento dos daimones, o que está em estreita ligação com os últimos capítulos desta parte. O estudo em torno dos decanatos mostra o sentido profundo deste conceito astrológico que deve mais aos decanos egípcios que à ideia limitada de faces. Greenbaum analisa a forma como os vários autores antigos abordam este tema. A tradição que vai Teucro de Babilónia até Heféstion de Tebas, chegando até Cosme de Jerusalém, é fundamental para que a astrologia contemporânea construa uma teoria dos decanatos que se funde para além dos períodos de dez graus e das regências planetárias. Este parte termina com a análise da obra de Porfírio, em especial, no que à noção de oikeîos daímōn (daimon pessoal) concerne. Esta ideia permite o sentido astrológico que une a individualidade ao destino.

Na terceira parte, Greenbaum estuda a relação de daimon com as partes astrológicas, klēroi. Estas são, segundas as palavras da própria autora, uma das principais técnicas da astrologia helenista. Ao ler-se esta terceira parte, ninguém voltaria a designar as partes por partes arábicas. A parte da fortuna ou roda da fortuna,  como hoje a designamos, é em grego týchē e a parte do espírito é o daímōn. Estas duas partes, como representantes do Lua e do Sol, estão na origem do cálculo das outras partes, quer seja elas a pouco conhecida parte da base ou fundação (básis), as partes herméticas ou planetárias de Paulo de Alexandria ou as partes de Eros e da Necessidade de Vétio Valente. Segundo a tradição, as partes teriam sido criados por Hermes e passadas a Nechepso e Petosíris. A razão que origina as partes é mesma que se inscreve no procura da duração da vida. Greenbaum analisa, com erudição, os vários testemunhos e teorias sobre esta profunda relação entre as partes e a vida. O leitor pode, sem esforço, perceber que as partes são um importante legado da astrologia helenista e que têm uma aplicação mais integrada na linguagem astrológica que o uso que posteriormente lhe foi concedido. 

Nos apêndices, encontramos, numa primeira parte, uma síntese dos elementos da astrologia helenista e, numa segunda, a apresentação das principais fontes e das respectivas traduções. O livro de Greenbaum é um importante contributo para a dignidade da astrologia enquanto forma de conhecimento e é também a prova de que astrologia pode e deve ser estudada em meios académicos. Para o leitor menos familiarizado com a cultura clássica, a leitura pode ser um pouco densa, mas o que se ganha compensa o esforço. Este livro será sempre uma valiosa aquisição para uma biblioteca astrológica, seja ela física ou digital.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

A Justiça que permeia o Mundo

A Justiça
Tarot Rider-Waite

A Justiça é a eterna lei do equilíbrio e da harmonia que está guardada no centro da criação, no lugar onde o intelecto tudo vigia. 

A Justiça é o princípio que une a alma do mundo, o macrocosmo, ao humano, o microcosmo, que é a sua imagem e representação.

A Justiça é aquela força primordial que tudo domina e que tanto pode ser chamada de destino como de providência.

A Justiça é a eterna lei que conjuga a Vontade com a Providência, concedendo ao humano o dilema de dar liberdade ao destino.

A Justiça é o princípio universal da justa medida que, no universo, na natureza e no humano, balanceia o potencial e a acção.

A Justiça é aquela verdade que quando não é uma abstracção, torna-se naturalmente a unidade espiritual do perdão.

A Justiça é, para o ser humano, o equilíbrio entre o dom e o esforço, o mistério que permite o casamento do céu com a terra. 

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Um Fragmento Astrológico de Óstraca (Poesia)

Óstracon Demótico
(O. Chicago M. H. 3377)

Um Fragmento Astrológico de Óstraca

Num estilhaço se gravam
As estrelas e o destino
Num acidente de oleiro
Se cinge um futuro
Escrito no barro quebrado
Não se perde o papiro
Na sorte do comum
E abreviando se guarda
Uma vida inteira


19/05/2018 RMdF


Fonte da Imagem: Neugebauer, O., Demotic Horoscopes in Jounal of the American Oriental Society, Vol. 63, Nº 2, 1943, pp. 115-127

terça-feira, 19 de junho de 2018

As Asas do Anjo da História (Poesia)

Klee, Paul, Angelus Novos, 1920.

As Asas do Anjo da História 

E como um tornado de luz
Ou redemoinho de sombra
Tanto o humano seduz
Como o povo assombra
Sem seu trilho ou paisagem
A história é cinza ou poeira
Ora vestígio ora miragem
Pra quem vence soalheira
Dos vencidos sombra extensa
Dos escribas mais que alegoria
Outros julga e de si não pensa
Mas de ninguém os pecados expia

E como memória ou vendaval
Assim segue o anjo a sua via
Como vivente não se torna actual
E no seu coro ou seguia ou caia
Sem sua vontade o vento avança
Ora com força ora com graça 
Das asas vem toda a esperança 
E do humano se afasta a barcaça 
Sobre os estilhaços não há morte
Com o progresso tudo é passagem
É a fé de quem nos dados tira a sorte
Dos outros não deixa de ser viagem

Assim vai o anjo da história 
Assim chega o vendaval
Para o humano sombra ou glória
Da humanidade um outro mal

13/05/2018 RMdF

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Os Fragmentos são Poeira

Fuseli, John Henry, The Artist Moved by
the Grandeur of Antique Fragments
, 1778-79.

A actualidade é estar no tempo sem ser tempo, é soprar para longe as fagulhas da história e inspirá-las quando o vendaval as devolve. Viver a actualidade é como caminhar numa ponte sem lugar sobre o abismo da memória, sem olhar para o sol que cega, para a luz divina.

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A hipótese do nada é sempre melhor que a pretensão do todo, pois a hipótese alberga o seu contrário e a pretensão tem por por hábito negar tudo o que está para além de si. Nessa arrogância da certeza, acaba sempre na ignorância.

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Não foram os grilhões que mataram o feminino, foi a vergonha. Aqueles que o calcaram, pisando a luz e a aura, destruíram a harmonia dos opostos.

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O livro que vive no tempo é aquele cujo desfolhar permanece na frequência do acaso. Sem sentido, encontra-se o único sentido e por livre vontade firmamos-nos no não-lido, no vislumbre de uma palavra solta.

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O mistério segreda a luz, o enigma solve e resolve.

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A guerra é essa força que ignorante avança e destrói e oprime, negando a palavra e o texto. A guerra nem sempre é armada, por vezes, serve-se apenas da intolerância.

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A actualidade é o presente a validar o passado, é um abeirar-se das suas ruínas, um acto que se estende no tempo, no limiar do abismo.

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Os mitos não morrem, adormecem, repousam entre o sonho e a imaginação, à espera de um novo despertar. O mito não teme a razão, mas sim um longo esquecimento, um sono profundo.


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Quanto maior a sabedoria, maior será a tormenta. E a tormenta é a via única para a felicidade. Já a ignorância conduz à dormência e a dormência é o caminho para o prazer, pois este luta contra outra, embora sem nunca a vencer.

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A arrogância e a vaidade intelectual desejam a sabedoria, mas deitam-se sempre com a ignorância.


Fragmentos Escrito entre 2017 e 2018 RMdF