sábado, 1 de abril de 2017

Do Baú V: Não queiras ser um Deus, sê antes Humano

Não queiras ser um Deus, sê antes Humano
2016/V/06

Baburen, Dirck van, Prometeu a ser Agrilhoado por Vulcano, 1623.
Amesterdão: Rijksmuseum.

   Num mundo sem Deus, é mais fácil construir um deus do que um ser humano. A sociedade avançou - ou regrediu - num processo de individualização extrema que egotiza a realidade e desumaniza a consciência que temos de nós próprios, dos outros e do mundo. Perdemos o humano, porque nos engrandecemos como deuses.

   Abastecemos com egocentrismo a nossa imagem e consideramos a aparência a nossa verdadeira essência. A obsessão pelo corpo e a necessidade de anular o envelhecimento são prova da incapacidade de nos aceitarmos como humanos. Os gregos tinha o conceito de kalokagathía que significava a união do belo, kalós, com o bom, agathós. Esta noção daria, mais tarde, a máxima mens sana in corpore sano que, curiosamente, deriva de um verso, usado com ironia, nas Sátiras (X, 356) de Juvenal. Orientamos a nossa atenção para o corpo e para o belo e deixamos a mente e o bom tolhidos de cuidado. Basta vermos o número de pessoas que recorre a qualquer forma de terapia ou aconselhamento para a mente. A alma humana está profundamente doente, pois consolidou a sua existência, mais do que nunca, na aparência que é, por natureza, é efémera.

   A condição humana é absurdamente frágil. A doença, o envelhecimento e a morte não são possibilidades, são categorias que nos definem como humanos. Lá por comermos muita quinoa, bulgur, seitan ou bagas goji não anulamos a possibilidade de virmos ter cancro, caso exista uma predisposição genética. Podemos, de facto, com uma alimentação saudável prevenir muitas doenças, mas não destruímos, por completo, a possibilidade de termos uma doença grave ou terminal. O exercício, bem como a alimentação, também não afasta da nossa existência o natural envelhecimento do corpo. Pode melhorar a nossa condição física, mas não deixámos de envelhecer.

   A escolha radical pelo culto da aparência revela-se até na linguagem. Para preservar um enorme espectro de ilusões, desenvolvemos eufemismos para dar um outro sentido à realidade. Já não dizemos que é mentira ou falsidade, dizemos que falta à verdade ou que é uma inverdade. Como temos um medo atroz de envelhecer, porque, no fundo, tememos a decadência e a morte, deixámos de ser velhos para sermos idosos, seniores ou anciãos. Ora idoso é quem tem idade e é um mero elemento quantitativo, mais ou menos anos, mais ou menos idoso; sénior vem do latim senior que indica quem tem mais anos, é um denominador superlativo, oposto a minor, que indica quem tem menos de trinta anos, o jovem e a criança; e, por fim, ancião indica alguém que pela experiência ou conhecimento tornou-se um exemplo, logo é um elemento qualitativo que não é comum a todos. No fundo, quer queiramos ou quer não, quando envelhecemos somos velhos, mas podemos ser orgulhosamente velhos.

   A ambição de ser um deus exige palavras e ruído. Perdemos o dom maravilhoso do silêncio e do seu potencial criador. Zenão de Cítio diz que "a natureza deu-nos somente uma boca, mas duas orelhas, de modo que devemos falar menos e escutar mais" (Diógenes Laércio, VII, 23). Falamos por falar, falamos sem sentido, mas sobretudo falamos de nós. Eu sou, eu faço, eu fiz, eu penso, eu sinto enchem os discursos, tudo porque temos a necessidade de divinizar a nossa existência. Temos de ser os melhores, os mais esbeltos, os mais assertivos e com opinião formada sobre tudo. Face a nossa magnitude, os outros só podem ser alvos de crítica. Tudo porque não sabemos ser humanos, porque se soubéssemos, compreenderíamos a nossa condição imperfeita e efémera.

   Os dois textos homéricos, a Iliada e a Odisseia, apontam, logos nos primeiros versos, para a diferença radical entre homem-deus e o homem-humano (perdoe-se o pleonasmo). A Ilíada (I, 1-7) começa da seguinte forma:

Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles. 

   O verso sétimo indica a dicotomia que anteriormente se descrevia. De um lado está o Atrida, Agamémnon, soberano dos homens, e do outro o divino Aquiles. O filho da deusa Tétis e de Peleu, o rei dos mirmidões, têm o seu olhar no céu, na glória da eternidade. É um meio-humano que, no fundo, deseja ser apenas deus, imortalizado no tempo e na história. Contrariamente, a Odisseia (I, 1-10) começa assim:

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion,
o Sol - e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.

Odisseu, ou Ulisses, é humano, sofre, enfrenta a possibilidade da loucura, teme pela sua vida e tenta salvar-se. É um homem que recorre à inteligência e à astúcia para sobreviver. Os dois heróis são, por isso, exemplo dos dois vectores apresentados: o querer ser deus e gozar da imortalidade e o ser humano e aceitar essa condição. Aquiles deve o direito de escolha porque era um semideus. Preferiu a glória imortal e a vida breve, em vez de uma vida longa com mulher, filhos e netos, mas foi o sangue divino de Tétis que lhe deu essa hipótese. Ora Ulisses, à semelhança de todos os humanos, não pode escolher. Teve sempre a vida presa por um fio, como todos nós, com a ameaça constante da tesoura de Átropos.

   O egocentrismo da sociedade contemporânea deixou-nos num estado de desumanização sem par. As pessoas sensibilizam-se mais com um cão maltratado do que com os bombardeamentos a um hospital, cheio de crianças e mulheres grávidas, em Aleppo. Movem-se por causas idealizadas, mas têm pouca compaixão pelo próximo. Estamos tão focados em nós, nos deuses que queremos ser, que nos esquecemos do outro e da nossa humanidade. 



Bibliografia:
  • Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.
  • Juvenal, Juvenal and Persius. Tradução Susanna Morton Braund. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 2004.
  • Homero, Ilíada. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
  • Homero, Odisseia. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Do Baú IV: O Ridículo que pertence à Terra

O Ridículo que pertence à Terra

2016/IV/15

Poussin, Nicolas, The Nurture of Bacchus, 1630-35. Paris: Museu do Louvre.
   

   Hermann Broch deixou-nos a noção transformadora do "absoluto que pertence à terra", indicando o modelo de passagem que permite ver na terra o absoluto que pertenceria somente ao céu. Segundo Filomena Molder, este absoluto terrestre "não é nem abismo, nem transformação em infinito, mas a intensificação da relação entre os dois, o seu sustentáculo". Ora é nesta ponte entre abismo e infinito que se pode introduzir o riso, o cómico como categoria crítica da realidade. O conhecimento da morte e valor efémero da vida conferem à existência humana uma certa dimensão de ridículo.

   A tese que vigorou na Idade Média era de que o riso era próprio dos animais e era uma coisa do Diabo. Essa visão está bem presente na personagem de Umberto Eco Venerável Jorge, a qual argumenta com o Irmão Guilherme a existência de um segundo livro da Poética de Aristóteles, dedicado à Comédia. Em O Nome da Rosa, o texto existe, já nós temos claros indícios da existência dessa obra, hoje perdida.

   O suposto gargalhar de macacos e hienas não passa de uma mera vocalização, pois não é um riso que interpreta a realidade e lhe confere uma natureza crítica. Bergson, no seu ensaio sobre o riso, diz que "não há comicidade fora do é propriamente humano". E é a partir do Renascimento que se reintroduzem as categorias da comédia e do riso como expressões críticas da realidade. É desse momento em diante, e na continuidade de Aristófanes, que foram produzidas as melhores obras de comédia e de sátira.

   Mais tarde, Rabelais, no Pantagruel, vem dizer: "Mieux est de ris que de larmes escripre/ Pour ce que rire est le propre de l'homme". Mais uma vez, a noção de que o riso é próprio do humano apela para a reinterpretação do real. O grotesco é utilizado na crítica à sociedade. O gigante Pantagruel, quando provocado pela multidão de Paris, verte águas sobre ela afogando uma parte, os sobreviventes riem até perderem o fôlego. A origem do nome da cidade surge, nesta sátira, de "Par Ris". A tragédia, pela mão do grotesco, torna-se risível.

Na esteira de Rabelais, Eça de Queiroz afirma, nas Notas Contemporâneas, que "o Riso é a mais antiga, ainda a mais terrível forma de crítica". Quando lemos as comédias de Aristófanes compreendemos a importância do riso como crítica, sobretudo social, como por exemplo nas peças Lisístrata ou As Mulheres na Assembleia. O ser humano quando ri tem sempre um referente para o seu riso, seja de si, do outro ou da comunidade.

   No entanto, tal como diz Eça, "penso que o riso acabou - porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização". As aparências e a complexidade dos artifícios sociais enfraqueceram o riso como crítica. A crítica social através do riso repousa apenas naqueles que vivem do humor e, todavia, os remetentes da sua mensagem não a interiorizam, preferem sorrir como se fosse uma necessidade protocolar, determinada pelo o que é comummente aceite. O rir dos outros mantém-se quase inalterado, pois apela a uma certa maldade intrínseca de diminuir o próximo. Porém, se este fosse equilibrado com a nobre acção de rirmos de nós mesmos, seria atenuada a perfídia do julgamento fácil, mas é aqui que reside o problema. Tornámo-nos tão cinzentos e tristes que temos dificuldade em rir de nós mesmos. 

   Montaigne, no ensaio Da Vaidade, diz que "a corrupção da nossa época grassa devido ao contributo pessoal de cada um de nós: uns concorrem para ela com a traição, outros, com a injustiça, com a irreligião, a tirania, a ganância ou a crueldade, à proporção do poder que têm; os mais fracos, entre os quais me conto, contribuem com a tolice, a vaidade ou a ociosidade". O ser humano insuflou-se tanto de ego e vaidade que é incapaz de ver que o produz é mais corrupção do que esplendor. A capacidade de rirmos de nós mesmos é um ensimesmamento terapêutico. E só quem se tem em grande conta é que é incapaz de rir de si. Somos uma migalha ínfima no universo, logo não adianta as grandezas do eu.

   O gordo, o pobre, o mal vestido, o que tem um carro velho ou uma casa modesta são motivo de riso, mais comum do que a nossa insignificância ou a nossa ignorância. Pensamos que o que somos e fazemos é magnânimo e magnífico, mas a ironia está no ridículo que somos quando assim nos apresentamos. Existe sempre um outro lado: o magro extremo que da boa comida abdica também é ridículo; o rico que na opulência se espelha é ridículo; o que demasiado aprumado se veste é ridículo, pois é incapaz de descontrair; o carro faustoso é ridículo e a casa excessivamente rica é ridículo e pirosa.

   A didáctica do riso garante o nosso lugar no mundo e fixa a nossa dimensão humana. Temos de seguir a máxima de Rabelais: "Riez! Riez!". O sábio e o génio riem de si, porque conhecem os seus limites, já o ignorante adorna a sua vaidade com lustrosas patentes e medalha o ego com a riqueza dos seus feitos ilusórios. Somos cinzas e pó que temem o abismo e fitam o infinito. A nossa existência é este ridículo que pertence à terra.


Bibliografia:
Bergson, Henri, O Riso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
Eco, Humberto, O Nome da Rosa. Lisboa: Difel, s/d.
Montaigne, Ensaios - Antologia. Lisboa: Relógio D'Água, 1998.
Molder, Maria Filomena, O Absoluto que pertence à Terra. S/l: Vendaval, 2005.
Queiroz, Eça de, Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.
Rabelais, François, Gargantua et Pantagruel. Paris: Arlea, 2010.

Do Baú III: Tu que és Sombra e Sombra vês

Tu que és Sombra e Sombra vês
2016/III/30
  
Caravaggio, David com a Cabeça de Golias, 1609-10.
Roma: Galleria Borghese.


            Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, expandiu o alcance do conceito de mal, fez com que descesse da sua dimensão extrema e contaminasse o ser humano comum. Um ser quase sem sentido como Eichmann não se revela imbuído de uma perfídia psicopatológica, mas sim de um espírito meramente executante que não pensa, nem questiona, e que, no entanto, estende o mal a uma banalidade quase universal. A prática inconsciente do mal pode parecer uma mera expressão de ignorância, porém atinge uma dimensão mais profunda, a da aceitação do mal como estado natural das coisas. O extermínio e a anulação do ser humano nos campos de concentração parecem uma forma normalizada e rectificada das coisas, tudo porque foram determinados pelo líder.  A confiança cega de que o foi decidido é o melhor é o veículo adequado para a banalização do mal.
Pensamos no mal como se descendo uma pirâmide. No topo, encontramos a génese do mal que se alastra para a parte mais larga da pirâmide, ou seja, partimos da personificação do mal, centrada numa pessoa ou aspecto, e descemos para o vulgo que se deixa corromper. Todavia, o movimento não é apenas descendente, nem centralizado. É a base da pirâmide que constrói e legitima o mal. Não existe senhor, sem súbditos. Os cultos de personalidade nascem de uma predisposição para o mal, têm a sua génese numa incompletude massificada que verte essa falta numa corrupção do mito do herói. Na ausência de uma fé profunda, que anularia esse desejo de participar na acção de um homem comum, marcado pela Providência, constrói-se uma imagem de salvação e redenção. Todas as esperanças de um povo estão agora nas mãos de um ser banal tornado deidade. Esta é uma pura construção do mal.
Quando o sentido da humanidade enfraquece e quando Deus desvanece na aparência dominical, aparecem deuses do momento que alentam os povos e que os elevam numa grandeza que não é sua. Os países que viveram em ditadura revelam uma predisposição, quase natural, para os cultos de personalidade. Em Portugal, essa fraqueza de espírito é deveras evidente. A nossa pequenez aspira sempre a tornar os feitos individuais numa glória colectiva. Veja-se o exemplo de Cristiano Ronaldo. O melhor jogador do mundo é português, logo Portugal é espectacular. Agora, criou-se, sobretudo na comunicação social, a ideia de um presidente que vai salvar os portugueses da bruma da sua própria história. Um homem providencial que anula as fragilidades humanas, as vicissitudes de um povo e que o transporta, aos ombros, para uma vida melhor.
Criámos uma constelação de deuses que não passam de homens comuns. Do alto do pedestal, estes ídolos caiem na sua própria humanidade. São os estão em baixo que operam esta construção do mal. Procura-se consolo numa imagem idílica de um ser perfeito. Será possível ver apenas um génio num Leonardo Da Vinci com resto de sopa na barba, como descreve o biógrafo? Ou ver o arauto da educação num Rousseau que abonou os cinco filhos? Ou um Marx que não pagava o salário à empregada e desprezava os trabalhadores? Um Gandhi, imagem da paz, que batia na mulher e tentava a castidade, dormindo com jovens, em especial, com a sobrinha? Shelley era um mau pagador que pedia dinheiro emprestado e nunca pagava. Tolstoi era um egocêntrico que se aproveitava sexual e emocionalmente dos outros. Leia-se Intelectuais de Paul Johnson e compreende-se a falácia do culto da personalidade. Em Portugal, encontramos também, por exemplo, um D. Pedro, imagem do amor, amante de D. Inês, que nutria afecto obsessivo pelo seu escudeiro, ou um Salazar, homem rectíssimo para muitos, com um fetiche por mulheres casadas.
O problema de prestar culto a seres humanos é o de serem humanos, falíveis, com debilidades morais e vivências na sombra. A aura quebra-se perante a sua própria humanidade, mas, mais uma vez, o erro está nos seus fiéis e é neste aspecto que o mal avança. Só vêem a luz quando o que existe é sombra. O valor deveria repousar na obra e não no indivíduo. Hannah Arendt, numa carta a Gershom Scholem, diz que o mal não tem uma dimensão demoníaca, mas espalha-se como um fungo. Os cultos de personalidade têm essa dimensão de fungo, pois espalham-se e fixam-se nos ideais, sem ideias, do comum dos mortais.
No Purgatório, Dante coloca Estácio diante de Virgílio e quando o primeiro tenta abraçá-lo, o segundo diz: "Frate, non far, ché tu se' ombra e ombra vedi". A noção de que somos sombra e sombras vemos é o que se pode reter. A luz do Bem tende esconder-se e a pessoa boa não pode ser objecto de culto. Veja-se a obra, ver-se-á o homem. O egocentrismo de uma sociedade é uma expressão do mal. A sabedoria pede a contenção e o silêncio, e essa é imagem do Bem.

Bibliografia:
Arendt, Hannah, Eichmann em Jerusalém. Coimbra: Tenacitas, 2003.
Dante Alighieri, A Divina Comédia. Venda Nova: Bertrand Editora, 2000.
Johnson, Paul, Intelectuais. Lisboa: Guerra e Paz, 2008.
Neiman, Susan, O Mal no Pensamento Moderno. Lisboa: Gradiva, 2005

quinta-feira, 30 de março de 2017

Do Baú I: A Actualidade de O Jantar do Bispo

A Actualidade de O Jantar do Bispo: Reler Sophia
2013/IV/04

O conto de Sophia de Mello Breyner Andersen, presente nos Contos Exemplares, "O Jantar do Bispo" é de uma enorme actualidade. A realidade que Sophia passou para as suas palavras servia para o país de ontem como serve para o de hoje. O imperativo moral é o mesmo.
"O Jantar do Bispo" começa com uma descrição da casa e das terras que a rodeiam. A frase "quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho" (45) é a síntese inaugural deste texto. A dicotomia entre a riqueza e a pobreza é desenvolvida ao longo do conto. O Dono da Casa precisa da intervenção do Bispo, necessita de um favor, "uma semente de guerra" (46) minou a sua autoridade.O jovem padre, o novo pároco de Varzim contraria a pobreza que se instalara no seu rebanho e, para o Dono da Casa, "a sua presença ia crescendo como uma acusação que o acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o tocava" (46). O Dono da Casa pensava que o padre se imiscuiu nos seus assuntos e ia para além da sua competência e, ao confrontá-lo com sua posição, o pároco respondeu que "da nossa própria fome  (...)  podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral" (47). Esta máxima é de tal forma importante que devia ser cravada na cartilha da vida de qualquer pessoa, sobretudo daqueles que tem uma responsabilidade política ou social. "A fome dos outros é um problema moral" fixe-se e use-se como arma da Justiça.  
Para o Dono da Casa, "as suas conveniências, as suas comodidades, as usas vantagens e os seus interesses pareciam-lhe direitos éticos absolutos, princípios sagrados da paz e da ordem" (47), daí que a postura do padre fosse considerada uma afronta, no entanto, o padre era pobre, o que dificultava qualquer acusação que lhe pretendesse fazer. O pároco era um homem insignificante, não era um homem à altura daquele grande homem, habituado a mandar, consagrado pelos ramos de uma família antiga a exercer o seu poder. Porém, ao averiguar a linhagem do seu inimigo, concluiu que "o padre era parente afastado duns seus parentes afastados e que a fome escrita na sua cara não era hereditária, mas sim voluntária" (48). A sua pobreza era um mandamento da sua identidade. O Dono da Casa via nesta opção do padre uma forma de traição, um desafio chocante à ordem estabelecida, ao normal progresso de uma vida abençoada por uma boa família.  
O padre dava tudo o que tinha. Os seus bens, os frutos da sua lavra eram uma dádiva aos outros. O Dono da Casa pensava que isso "era desordem, anormalidade, bolchevismo" (49). Como poderia alguém sair do seu conforto, abandonar o que era seu para dar, para dar aos pobres? Os sermões do padre provocavam-lhe enfado, desprezo, não se revia naquela "esperança num mundo melhor" (49). A sua caridade era da esmola regular. Não era uma palavra viva.  
Os retratos de família, ostentados na casa antiga, consagravam o poder aquela gente, dignificavam o seu rosto no tempo. Era uma tradição que promovia a autoridade. Porém, um certo familiar separava-se daquela aura familiar. "O primo Pedro tinha a sensibilidade certa como a sensibilidade dum artista, tinha a inteligência dum inventor e o espírito de justiça dum revolucionário. Mas em toda a sua vida nada fizera" (53), o que o tornara num pária, num falhado, logo não podia estar naquele jantar, naquela cerimónia que tinha tão alto propósito. "Só tinha convidado gente discreta e segura, com cujo apoio, concordância e silêncio podia contar inteiramente" (54). Quase podíamos pensar que estava a constituir um governo, a elaborar a formação do seu conselho de ministros. O seu objectivo era "explicar claramente que o padre novo era um perigo para a ordem social" (55) e o melhor seria mudá-lo de paróquia. Acreditava que, com as palavras certas - ou o cheque adequado -, o Bispo aceitaria a sua pretensão. 
O Bispo também tinha um pedido a fazer ao Dono da Casa. "Pedir é uma coisa difícil. E tanto mais difícil quanto mais aquele a quem se pede é rico e poderoso. Mas a quem havia de pedir senão aos ricos e poderosos?" (55) O tecto da igreja mais bela da sua diocese estava cair. Noutros tempos, os homens poderosos mandavam erguer igrejas para salvar as suas almas e curar as maleitas dos seus corpos, porém os tempos mudaram. Os remédios de hoje deixavam em ruínas as igrejas de ontem. Sophia escreve, neste contexto, uma frase que é de uma actualidade imensa: "a doença já não igual para pobres e ricos" (56). O dinheiro compra a saúde.
O Bispo acreditava que o Dono da Casa lhe daria o dinheiro necessário para restaurar a igreja, a sua vaidade, a sua fome de fama ia enobrecer a sua virtude. Assim, o Bispo, embora contrariado, seguiu o rumo do repasto. O acaso de uma derrapagem trouxe um outro convidado à mesa. O Homem Importantíssimo juntou-se aos tribunos. É curioso, mas de facto é assim que surgem estes homens. Os homens importantíssimos aparecem sempre devido a uma derrapagem. Este homem ilustre tornou-se o centro das atenções. Bem-falante e afável, criou logo empatia, como aliás o fazem os homens importantes. É então que começa uma amena discussão. O Homem Importante começa por dizer que "este tempo (...) é um tempo de crise: estamos dominados pelo materialismo. Até nos campos, onde só devia reinar a espiritualidade ouvimos constantemente falar de problemas materiais", e continua, afirmando que "o nosso tempo só vê problemas materiais. É um tempo de revolta. Os homens não querem aceitar. Paciência e resignação são palavras que perderam o sentido" (60). Depois, passa para os padres que se vêem imbuídos desse revolta materialista, e a caridade não serve de justificação, pois em nome desse mandamento,  que, segundo o Homem Importante, pode ser interpretado de diversas formas, é possível que se caia no comunismo, veja-se os padres operários.
"O Dono da Casa gostava de estar à mesa com visitas. Nada lhe agradava mais do que dar de comer a quem não tem fome" (63) Parecia aqueles que, nas sombras do poder, se alimentam e, por excesso de fartura, já correm o risco de indigestão. O jantar termina e o Dono da Casa conduz o Homem Importante e Bispo para outra sala. Tinham negócios para fechar. O Dono da Casa dá cinquenta contos e o Homem Importante outros cinquenta. A igreja em ruínas podia agora ter um telhado. E o Padre de Varzim seria forçado a um outro caminho, afastado para uma outra aldeia. Claro está que "ninguém falou em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes" (64). É assim que os altos dignitários fazem negócios.
A segunda parte deste conto começa com a cozinheira Gertrudes a abrir a porta da cozinha a um homem. "Não o conhecia, mas nem era preciso perguntar-lhe quem era: era mais um pobre." (67) As criadas tinham ordem para lhe dar de comer, para o levar à mesa dos pobres. O homem queria falar com o Dono da Casa, todavia a cozinheira quis demovê-lo com duas afirmações lapidares: primeiro, "a esmola é ao sábado" (68) e naquele dia não era sábado; e segundo, "as coisas importantes são para as pessoas importantes" (69), logo como poderia o pobre dizer que era importante. O homem insistia, ao que o criado respondeu que um senhor não podia deixar as suas visitas para vir falar com um mendigo, disse "tenha paciência, não pode ser. O mundo é como é. Temos que ter paciência" (70). É como aqueles senhores, titulares de cargos públicos, que nunca podem falar, nem ouvir as pessoas comuns, as suas conversas são reservadas a pessoas importantes.
A casa estava envolta numa tempestade, chuva, relâmpagos e trovões atemorizavam as criadas. O céu falava. A escuridão fechou o espaço e uma criança assustada, filho do Dono da Casa, acabou por ficar em frente do homem que lhe disse vinha da parte do Padre de Varzim. A criança foi contar ao pai, que não quis descer do alto da sala até aos confins da cozinha. João contou ao homem a decisão do Dono da Casa. Os dois despediram-se e o homem saiu. O mendigo não tocara na comida tão caridosamente disposta na mesa dos pobres, e, à semelhança de Deus, rejeitou as ofertas de Caim.
A terceira e última parte do conto traz o maravilhoso a esta narrativa. O Bispo deixa a casa do Dono da Casa e entra no seu automóvel. No meio do caminho, encontrou um mendigo na estrada e o Bispo decidiu levá-lo. Perguntou-lhe para onde ia, a que o mendigo respondeu que ia para casa do Padre de Varzim.  Olhou para o homem, coberto de lama, e viu que "nas mãos havia um gesto de paciência. Um gesto muito antigo de paciência. E de repente pareceu ao velho Bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento, toda a solidão, o olhavam de frente no rosto daquele homem. Coisa difícil de olhar de frente" (80). O Bispo disse que a distância era longa e estrada estava cheia de lama, sugerindo que passasse a noite na sua casa. O homem não respondeu e quando o Bispo ergueu o rosto, o mendigo desaparecera. Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. Por fim, o Bispo iluminou-se com o reconhecimento, sabia agora quem era aquele homem. As palavras, abafadas pelo silêncio, concluíram: "aquilo que eu fiz tem de ser desfeito" (81). O Bispo voltou à Casa Grande, afim de falar com o Dono da Casa e de lhe comunicar que queria desfazer o negócio fechado. Deus viera testemunhar em favor de um homem injustamente acusado e o Bispo foi voz desse testemunho. O Dono da Casa duvidou, não quis acreditar, "estava fechado na certeza dos seus direitos" (82).
O Bispo apresentou, em síntese, o que concluíra: "o padre de Varzim não foi só acusado. Foi também vendido. Vendido pelo telhado de uma igreja. Da Igreja da Senhora da Esperança" (83). O Dono da Casa respondeu, dizendo que "não houve nenhuma venda. Dei uma esmola e fiz, de acordo com a minha consciência, um pedido" (83). O Bispo "estava a trair as regras do jogo" (83) e Dono da Casa não suportava aquela atitude e apenas refreou a sua cólera porque a sua reputação e fama eram mais importantes. Depois, decidiu chamar o outro contribuinte, o Homem Importante. Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. O Homem Importante desaparecera e com ele o seu cheque. Todos procuravam o papel, mas nada, não havia sinal do cheque. A criada Júlia conclui que "talvez o diabo o tenha levado" (86). A cozinheira Gertrudes perguntou quem era esse homem e o criado respondeu que "parece que entrou o demónio nesta casa" (86).
O conto termina com frase de Gertrudes: "nos tempos que correm (...) já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se quem puder" (87). Pega num pano e limpa as pegadas do mendigo.

Sophia de Mello Breyner Andresen oferece-nos, pela letra da sua palavra, um conto que viaja no tempo, entra no Estado Novo, passa no Pós 25 de Abril e repousa nos dias de hoje, quando os pobres perdem a esperança e os ricos asseguram os seus "direitos". "O Jantar do Bispo" é um texto actual. Leia-se.

Sophia de Mello Breyner Andresen

"O Jantar do Bispo", pp. 43-87.

Contos Exemplares

Figueirinhas

2006

sexta-feira, 24 de março de 2017

O Mago ou a Sabedoria da Vontade

O Mago
Tarot Rider-Waite


O Mago é o símbolo do momento inaugural e das origens, é o princípio da vontade.

O Mago é a seta da vontade, o poder dos elementos essenciais,  a predisposição para misturar e criar.

O Mago é o ponto a partir do qual tudo surge, é a génese da criação, mas criação sem sentido é um caos informe.

O Mago é a Vontade do Pai que só existe se unida à Sabedoria da Mãe, pois só nasce o que resulta da dualidade. Na unidade, não existe criação.

O Mago é a sede de sentido, de amor à Sabedoria, mas também a fome de ignorância, de acção desmedida.

O Mago é aquele que reúne a potência, a dinâmica, que opera na representação da realidade, na busca do significado.

O Mago é a acção orientada e a demanda com finalidade, é uma expressão da Trindade.

sábado, 4 de março de 2017

A Sacerdotisa: O Tarot é a Sabedoria do Feminino

A Sacerdotisa
Tarot Rider-Waite

O Tarot é o livro da Sacerdotisa, aquele que anuncia o feminino que é a salvação e a vida, a sabedoria e a verdade.

O Tarot é um livro que não fala, nem descreve, mas sugere, indica símbolos e sinais. É um livro de imagens, ofertado pela Mãe Eterna.

O Tarot é um livro de síntese que coloca a totalidade numa imagem.

A Sacerdotisa é o centro do mistério, aquele que rege a vida e a morte, o céu e a terra.

A Sacerdotisa é o símbolo da deusa eclipsada e o valor da origem perdida.

A Sacerdotisa é Ísis, é Maria, a Magdalena, é o Sagrado Feminino.

E o Tarot é a unidade-dualidade resumida na Sacerdotisa.