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Antolinez, José, Assunção de Maria Madalena, s/d.
Madrid: Museu do Prado. |
Do Amor-Próprio à Vida Eterna
João
12:25
Quando entregamos à alma a
disponibilidade de ler, de nos deixarmos deslumbrar, por uma passagem de um
qualquer texto sagrado, sem dogmatismo, sem os grilhões de uma leitura
condicionada, podemos encontrar uma luz textuante que nos eleva para uma
realidade onde o divino se torna palavra. Essa disponibilidade adquire um
profundo carácter de transformação se o espectro textual se tornar universal,
ou seja, todos os textos, de todos os tempos, de todas as religiões ou
civilizações, adquirem um elemento de gravidade existencial.
O versículo 25 do capítulo 12 do
Evangelho de São João é um bom exemplo dessa leitura. Uma visão crítica, focada
apenas na letra do texto, permite uma vasta apreensão da palavra sagrada. Se
compararmos o texto grego com a vulgata e com algumas das principais traduções
portuguesas, percebemos que as variantes, em vez de adulterarem o sentido
primordial, aprofundam esse sentido. Ora o texto grego diz:
̉Ο φιλῶν τὴν ψυχὴν αὐτοῦ,
ἀπολλύει αὐτήν,
καὶ ὁ μισῶν τὴν ψυχὴν αὐτοῦ ἐν τῷ κόσμῳ
τούτῳ, εἰς ζωὴν αἰώνιον φυλάξει αὐτήν.
E,
por seu lado, a vulgata de São Jerónimo diz:
Ipsum solum manet si autem mortuum
fuerit multum fructum adfert qui amat animam suam perdet eam et qui odit animam
suam in hoc mundo in vitam aeternam custodit eam.
Nas
traduções portuguesas, destacamos três: a de João Ferreira de Almeida; a Nova
Bíblia dos Capuchinhos e a Bíblia de Jerusalém. Na tradução de Ferreira de
Almeida, encontramos a seguinte versão:
Quem ama a sua vida, perdê-la-á; e
quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna.
A
Bíblia dos Capuchinhos, que é aquela que mais difere das restantes, diz:
Quem se ama a si mesmo, perde-se;
quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna.
E,
por fim, a Bíblia de Jerusalém diz:
Quem ama sua vida a perde e quem
odeia sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna.
Quando
abordamos as traduções da Bíblia é impossível não cotejar também a King James,
que, neste caso, não difere da maioria das traduções portuguesas:
He
that loveth his life shall lose it; and he that hateth his life in this world
shall keep it unto life eternal.
Estes
périplos textuais não procuram, de modo algum, a erudição exegética, mas sim a
compreensão do texto enquanto matéria viva, criatura vivente e em contínuo
processo transformativo. Contrariamente ao que se possa pensar, só o texto que
não é lido é que permanece morto, fechado em si mesmo. A palavra possui um
carácter de passagem. É um demiurgo que, de corpo em corpo, de leitor em
leitor, se transforma.
O versículo de João permite
diferentes leituras, sem que por isso sejam dissonantes. As questões
interpretativas resultam essencialmente da polissemia textual. A primeira
delas, e que surge logo no texto grego, é a de como devemos ler a palavra ψυχή. A tradução mais
comum, aquela que encontramos em Ferreira de Almeida, na Bíblia de Jerusalém e
na King James, opta pelo termo vida.
Na vulgata, encontramos o termo anima,
que, apesar de conservar a dimensão de sopro de vida, não tem o alcance de ψυχή. No entanto, é na
vulgata que encontramos uma pista para a tradução da Bíblia dos Capuchinhos. O
texto diz: ipsum solum manet. Ora o
acto de permanecer apenas em si é o amor-próprio dessa tradução e está em total
harmonia com a ψυχή
grega,
que tem também a acepção de si mesmo
ou de consciência de si.
O texto grego pode não incluir
literalmente o ipsum solum manet da
vulgata, todavia o elemento vivo que anima o texto é o mesmo. A tradução da Bíblia
dos Capuchinhos da primeira parte do versículo é portanto a que melhor traduz o
espírito de ̉Ο φιλῶν τὴν
ψυχὴν αὐτοῦ, ἀπολλύει
αὐτήν.
Nos dias de hoje, com uma desenfreada propaganda a um individualismo
solipsista, que na maior parte vezes se aproxima de um narcisismo patológico,
este Quem se ama a si mesmo, perde-se
pode parecer estranho, mas, na verdade, deveria servir de fundação a toda
psicologia futura. O amor-próprio pode, e deve, cimentar uma vida
psicologicamente saudável, contudo quando a justa medida é excedida, transforma-se
numa forma de alienação. Nesse sentido, aquele que apenas se ama a si mesmo
perde tanto o amor por si como a própria vida - conjugando-se aqui as duas
acepções de ψυχή -,
pois não existe valor numa vida apenas centrada em si.
O versículo pode ter, porém, uma
outra leitura. A chave dessa leitura encontra-se na relação entre as várias
formas verbais. Os verbos φιλόω, ἀπολλύμι, μισέω e φυλάσσω vão indicar a
presença ou a ausência de um elemento passagem, de um princípio de transformação.
Ora aquele que se ama, perde-se e aquele que se odeia, guarda-se. Esta pode
parecer uma equação algo bizarra, todavia, é a presença ou a ausência de um
elemento de passagem que clarifica a formulação. E esse elemento é Jesus. A
passagem do amor-próprio, centrado em si mesmo, para um amor universal, liberto
das amarras do excesso de si, é mediada por Jesus. Nesse sentido, a vida eterna
que se ganha, mantém ou defende (φυλάσσω), e que é expressa pela palavra ζωή, que indica sobretudo
a vida biológica, resulta não de um acto de se amar a si mesmo (φιλόω) que conduz ao
processo de perda, destruição ou morte (ἀπολλύμι), mas sim de um acto de negação,
recusa ou rejeição (μισέω).
O verbo μισέω, cuja raiz
etimológica encontramos hoje em palavras como misantropia ou misoginia, surge
aqui como indicador da acção que permite ou concede a vida eterna. Ao
abandonarmos o amor-próprio e ao entregarmo-nos ao amor universal, estamos a
aceitar o sacrifício como dádiva. O acto de odiar (μισέω) a própria vida
ou essa desmedida de um amor voltado para si apresenta-se sob a forma de
renúncia, de negação. Embora uma interpretação mais condicionada possa conduzir
a alma a uma disponibilidade para o sacrifício, para o martírio, a proposta de
Jesus assenta sobretudo na necessidade de se renunciar ao excesso de si, ao eu
que não quer ver a dádiva da vida eterna, nem amar o outro como a si mesmo. Jesus
concede neste versículo a possibilidade de darmos ao mundo, não o amor-próprio,
fechado em si mesmo, mas o amor de Deus. A máxima de Deus é Amor torna-se assim,
não um mote espiritual, mas a própria vida e esse Amor transforma a consciência
de si, a ψυχή,
e dá-lhe o dom da totalidade.
João
12:25 é um bom exemplo da importância de uma leitura crítica, pois a leitura de
uma única tradução levar-nos-ia a perder todo um leque de sentidos. A
vitalidade do texto transcende aqui o original, embora este seja a
matéria-prima de toda análise, uma vez que encontramos também nas traduções uma
paleta interpretativa que potencia o seu valor textual. Por outro lado, uma leitura
crítica sustentada na palavra revela igualmente a actualidade de um texto. Desta
forma, depois de cotejadas as palavras, João 12:25 manifesta uma profundidade
que é tanto espiritual como existencial.
Bibliografia
Novo Testamento Interlinear –
Grego-Português, Ed. V. Scholz e R. G. Bratcher. Barueri
(SP, Brasil): Sociedade Biblíca do Brasil, 2007.
Bíblia Sagrada,
Ed. João Ferreira de Almeida. Lisboa: Sociedade Bíblica, 1994.
Bíblia de Jerusalém,
G. da Silva Gorgulho, I. Storniolo & A. F. Andersen. São Paulo (Brasil):
Paulus, 2003.