quarta-feira, 5 de abril de 2017

Do Baú VII: A Remissão do Humano

A Remissão do Humano
2016/VIII/17

Poussin, Nicolas, Eco e Narcisso, 1628-30. Paris: Museu do Louvre. 

   Vivemos numa era dominada por um paradoxo radical que indica que quanto maior é o individualismo, mais débil é a noção de humano e de humanidade. O Eu, a personalidade, engrandece e a consciência de si ou enfraquece ou não chega a ser alcançada. O humano como categoria está em remissão.

   O individualismo tolhe o humano, porque se impõe ao mundo, sem nada dar e sem nada receber. É uma projecção do eu que se julga mais do que verdadeiramente é. Jung diz que "tal como tendemos a assumir que o mundo é como o vemos, nós supomos inocentemente que as pessoas são como as imaginamos. (...) Todos os conteúdo do nosso inconsciente estão constantemente a ser projectados no meio que nos rodeia (...) Cum grano salis, nós vemos sempre os nossos erros inconfessados no nosso oponente" ("General Aspects of Dream Psychology", CW 8, 1972, par. 507). Aquilo que, por demasiadas vezes, tomamos como certo, como facto, como realidade não é mais que uma explosão de subjectividade, ou seja, vertemos aquilo que somos e que, na maior parte das vezes, desconhecemos num determinado objecto, projectamos o nosso eu em algo que passa de ser o que é para ser uma continuidade de nós. A maioria destes fenómenos ocorrem salutarmente e servem de base para o processo gnoseológico e para a criação de estruturas relacionais entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e o mundo. No entanto, o individualismo e o exacerbamento do eu transgridem a natureza relacional e transformam-se numa dinâmica bélica. O Eu, sem consciência de si, invade o mundo, subjuga o outro e impõe o seu domínio e, quando o faz, debilita o humano e anula a sua humanidade.

   Segundo Freud, o narcisismo, numa abordagem primária, apresenta-se como complemento libidinal do egoísmo face ao instinto de preservação. Ora as estruturas primitivas do eu, em momentos de crise de identidade, tornam-se dominantes, daí que, por instinto territorial, se transforme a auto estima em narcisismo. Frases como "não quero saber que os outros não gostem de mim, eu gosto", "eu sou assim", "quem não gosta, ponha na borda do prato", "eu é que sei", "não quero saber o que pensam de mim" revelam traços infantis e narcisistas que, numa idade em que já não fazem sentido, podem originar uma megalomania patológica. Freud, na sua introdução ao narcisismo (Zur Einführung Des Narzissmus, 1914), aponta essa passagem do objecto da libido, em especial a mãe, do Self para a realidade social, ora é nesta projecção que a personalidade considera o mundo o seu domínio, tal como a criança vê a mãe como sendo apenas sua e sente ciúmes, senão mesmo raiva, quando alguém dela se aproxima. O narcisismo primitivo da criança não permite a partilha da progenitora. Porém, a criança cresce e é suposto que o seu desenvolvimento altere este comportamento. Quando um adulto continua a revelar estes comportamentos narcisistas, mesmo que o foco já não seja a mãe, mas sim a sua personalidade, o seu lugar na realidade social, podemos considerar que esse indivíduo sofre de uma perturbação.

   O transtorno de personalidade narcisista, inscrito no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM - IV), é marcado por uma componente dramática e emotiva, de carácter extremamente egocêntrico, o que faz com que seja difícil de diagnosticar por parte dos terapeutas. O narcisista não consegue ou tem relutância em admitir que tem um problema. Este transtorno pertence à categoria dos transtornos borderline e antissocial. Numa perspectiva filosófica, o narcisismo é uma negação do humano, pois a consciência da nossa humanidade é alcançada pela compreensão e aceitação dos nossos limites, e o narcisista acredita não ter limites, ou se os tem estão num patamar superior aos dos demais. A sintomatologia do narcisista passa, primeiro, por uma grande necessidade de atenção - "olhem todos, vejam o que eu fiz" -, conjugada quase sempre por estado de arrogância, e depois por uma expectativa de reconhecimento, todavia, os atributos de base não correspondem ao que foi executado. É, neste ponto, que o transtorno de personalidade narcisista se pode relacionar com a síndrome de Dunning-Kruger. No artigo "Unskilled and Unaware of It: How Difficulties in Recognizing One's Own Incompetence Lead to Inflated Self-Assessments " (Journal of Personality and Social Psychology, 1999, Volume 77, Número 6, pp.1121-1134 ), os psicólogos David Dunning e Justin Kruger estabelecem uma relação entre a estupidez ou a ignorância e a vaidade. A partir do estudo da amostra, foi possível fixar dois princípios fundamentais: primeiro, os indivíduos incompetentes tendem a sobrevalorizar as suas próprias habilidades e, segundo, os indivíduos incompetentes são incapazes de reconhecer as verdadeiras habilidades dos outros. Estes dois aspectos da síndrome de Dunning-Kruger reforçam a inveja como sintoma primordial do transtorno de personalidade narcisista, pois neste caso a inveja é crónica e basilar, o indivíduo não só nutre uma inveja desproporcional pelos outros, pelo que outros são e fazem, como também acredita que é alvo de inveja, de inveja constante e permanente. A obsessão pela genialidade, pela beleza, pela riqueza, pela fama impedem-no de criar empatia, uma vez que a crença na sua superioridade obriga a uma exigência de tratamento preferencial e especial, tornando-o inevitavelmente arrogante.

   Erich Fromm diz que "o narcisismo é a essência de todas as patologias psíquicas graves. Para a pessoa envolvida narcisisticamente, existe apenas uma realidade, a sua, determinada pelos seus processos, sentimentos e necessidades. O mundo exterior não é experienciado ou percepcionado objectivamente, isto é, não existe nos seus próprios termos, condições e necessidades. A forma mais extrema de narcisismo pode ser encontrada em todas as formas de insanidade" (The Sane Society, 2ª Edição, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2002, p.34). A sociedade actual criou um conjunto de exigências e de processos de validação social que cultivam o narcisismo. O culto da imagem, a idolatria do corpo, corrompe as estruturas interrelacionais, pois julgamos o outro, atribuímos-lhe um patamar qualitativo, consoante a sua imagem, o seu corpo, em acordo com o paradigma em vigor. O gordo, segundo os narcisistas, tem menos valor social que o magro. A indumentária e os adornos, a tecnologia que se ostenta, as fotografias que se exibem, o emprego que se tem, as férias e as viagens que se fazem, tudo serve para avaliar o outro. Porém, existe uma grande dificuldade em compreender o outro pela sua humanidade. A aceitação do outro pelos seus limites implica a aceitação dos nossos próprios limites e isso é um processo difícil de alcançar. A exigência da imagem, do valor que nos é atribuído, não permite fragilidades. Jung diz que "a sombra é um problema moral que desafia a totalidade do ego-personalidade, pois ninguém se torna consciente da sombra sem um esforço moral considerável. Tornar-se consciente disso implica reconhecer os aspectos mais negros da personalidade como presentes e reais" ("The Shadow", CW 9ii, 1979, par. 14). A sombra é parte de nós, da nossa personalidade, a que queremos negar a existência, mas da qual não se pode fugir e cujo confronto é inevitável. Em última análise, a sombra representa um conjunto de expressões do inconsciente que apontam para o medo da morte, da aniquilação e da decadência. Hoje isso está particularmente presente na vontade narcisista de ignorar a morte e o envelhecimento. Criou-se a ilusão que se comermos bem, formos activos e, quando formos velhos, dermos muitos pinotes, evitamos a decadência própria da nossa condição humana. A doença e a morte não são tão criteriosas como julgamos, pois agarram qualquer um e, quase sempre, sem aviso prévio, mas essa é também a beleza de ser humano. A imortalidade dos deuses não permite que se dê valor ao momento e às pequenas coisas.

   O ser humano, contrariamente às outras espécies, tem a possibilidade de se expressar através de uma dualidade que tem tanto de belo como de horror. Os outros animais movem-se por instintos e emoções primárias. Jung apresenta esta dicotomia através dos conceitos de Self e de Sombra. Se a sombra é o nosso lado negro, o Self é o "Deus dentro nós" ("The Mana-Personality", CW 7, 1972, par. 399). O narcisismo faz com que a Sombra negue o Self e ao fazê-lo arrasta a personalidade, o ego, para uma realidade onde o arquétipo numinoso de totalidade está ausente ou, no mínimo, projectado na visão que o narcisista tem de si próprio. O narcisista é o único deus na sala, é o centro, o umbigo da realidade, daí a sua dificuldade em se relacionar com os outros. A remissão do humano ocorre devido a essa mesma impossibilidade. Actualmente, a incapacidade de nos relacionarmos como humanos é particularmente visível quando vemos, sobretudo nas redes sociais e nas conversas informais, um predisposição para sentir maior empatia por um animal maltratado do que por um outro ser humano, mesmo que seja uma criança, numa situação em que a dignidade lhe foi retirada. Uma vez que não nos conseguimos relacionar salutarmente, projectamos nos animais, sobretudo os domésticos, essa fragilidade. Estamos a humanizar os animais e a desumanizar as pessoas e a causa primeira desse processo é um narcisismo generalizado. O cão ou gato não nos contraria de igual para igual, não nos apresenta desafios morais e comportamentais. Face ao animal, continuamos a ser superiores, mas fingimos que somos iguais. É óbvio que a nossa compreensão acerca dos animais evoluiu, já não os consideramos meros seres sem alma e irracionais, hoje atribuímos-lhes emoções, até sentimentos, e funções cerebrais e cognitivas superiores ao que julgávamos. No entanto, o ser humano tem capacidades que o distinguem. O animal vive a realidade, mantém as prerrogativas da natureza, sem ter a consciência ou o espírito crítico para a transformar, essa capacidade reinterpretativa pertence ao humano. O animal utiliza os recursos naturais, o humano cria. A arte e a cultura são fenómenos humanos. O ser humano não vive apenas a realidade, dá-lhe sentido e valor. Só o humano pode intuir a ideia de Deus. Por outro lado, o ser humano pode querer ser deliberadamente ignorante e praticar o mal pelo mal, tornando-o banal. É essa complexidade que nos define.

   O narcisismo da sociedade actual, o individualismo radical e generalizado, fez com que a humanidade não evoluísse como era esperado, senão mesmo regredisse. Há umas décadas atrás, quando tanto se fazia e se esperava pelos direitos das mulheres, ninguém acreditaria que estaríamos onde estamos. Em pleno século XXI, as mulheres são agredidas por serem mulheres e são mortas por serem mulheres. Continuamos a preferir a Marilyn Monroe a cantar submissa para o Presidente Kennedy do que a Norman Jeane a ler o Ulisses de James Joyce. É preciso resgatar o humano. A humanidade tem de abraçar a sua sombra, a sua finitude, a sua efemeridade, e elevar-nos na divindade que arde esquecida em nós.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

As Casas de Exaltação segundo Ibn Ezra (Tradução)

Abraão ibn Ezra 
(1089-1167)
 O Livro das Razões
(Reshit Hokhmah)
Capitulo 2, 16 
Casas de Exaltação


16
(1) Vou agora abordar as casas de exaltação.

(2) Dizem que a exaltação da Lua ocorre no terceiro grau de Touro, esta é a opinião dos cientistas indianos.

(3) Ptolomeu defende que todo o signo é a sua casa de exaltação [lit. casa de honra], pois quando a Lua está em conjunção ao Sol em Carneiro, o que significa a génese do mundo, e ela pode ser observada a oeste da Terra no signo de Touro.

(4) Os cientistas indianos afirmaram que isso ocorre desse modo porque a distância da exaltação da Lua ao lugar da exaltação do Sol é igual à distância da Lua ao Sol quando a Lua abandona a luz solar. Portanto, eles disseram que o grau de sua exaltação é o terceiro grau de Touro.

(5) Ora o grau de depressão [leia-se queda] do Sol é 19 de Balança e o grau de depressão da Lua é 3 de Escorpião, daí eles designarem os graus de 19 de Balança a 3 de Escorpião como "lugar de combustão" e defendem que o poder de qualquer planeta extingue-se nesse lugar. É chamado de "lugar de combustão", pois é como se o planeta em causa ardesse com a luz solar.

(6) Afirmaram também que Balança é a casa de exaltação de Saturno, visto que a sua natureza é oposta à do Sol, logo a sua casa de exaltação é a casa de depressão [lit. casa de desonra] do Sol e a casa de depressão de Saturno é a de exaltação do Sol.

(7) Os cientistas indianos disseram que a exaltação de Saturno ocorre a 21° de Balança, tal como verificaram pela experiência.

(8) Enoque afirma que a exaltação de Saturno ocorre quando este está a dois graus da oposição ao Sol exaltado, de modo a que não recaia sobre o Sol um grande prejuízo.

(9) Os cientistas indianos disseram que a exaltação da Cabeça de Dragão ocorre a 3° de Gémeos, onde é também a depressão da Cauda de Dragão, mas Ptolomeu riu-se deles, pois a Cabeça de Dragão não é uma estrela, e está correcto. 

(10) Eles afirmaram que a casa de exaltação de Júpiter é Caranguejo, pois Júpiter indica os ventos do Norte e quando está nessa casa os ventos aumentam, e os cientistas indianos disseram que o grau da sua exaltação situa-se no meio do signo. 

(11) Uma vez que Marte gera os ventos do Sul e eles intensificam-se quando está em Capricórnio, disseram que esta é a casa de exaltação de Marte. Assim sendo, está em oposição a Júpiter tal como o Sol está em oposição a Saturno, pois a natureza de Marte é oposta à natureza de Júpiter.

(12) Os cientistas indianos defendem que o grau da sua exaltação o era o 28° de Capricórnio, pois nesse lugar existe uma estrela distante com a sua natureza.

(13) Eles afirmaram que a casa de exaltação de Vénus é Peixes, pois verificaram por experiência que a sua casa de depressão é Virgem, uma vez que esta indica uma relação sexual negativa e indecente.

(14) Isto porque Vénus indica os prazeres terrenos e Mercúrio tudo o que se relacione com a sabedoria. Eles disseram que a casa de exaltação de Mercúrio está em oposição à casa de exaltação de Vénus e que a casa de depressão de um é a de exaltação do outro.

(15) Quanto ao que eles disseram, ou seja, que os signos de água não têm voz, isso aplica-se também aqueles que nasceram na água.

Tradução: RMdF

Versão utilizada: 
Ibn Ezra, Abraham, The Book of Reasons - A Parallel Hebrew-English Critical Edition of the Two Versions of the Text. Edited, translated and annotated by Shlomo Sela. Leiden and Boston: Brill, 2007, pp. 54-57.

sábado, 1 de abril de 2017

Do Baú VI: 9 Fragmentos (ou O Fragmento é Semente)

Botticelli, Sandro, Madonna com a Romã (Pormenor), c.1487.
Florença: Galleria degli Uffizi.

O Fragmento é Semente – I
2013/VI/20

A História é uma faca que talha os factos numa forma que é intencional e imaginativa.


O Fragmento é Semente – II
2013/VI/21

Que Deus nos livre do momento em que a noção de interesse nacional seja uma e a mesma, pois quando isso acontecer já não estaremos em Democracia.


O Fragmento é Semente – III
2013/VIII/06

A memória e a imaginação exaltam a natureza mítica da realidade, atribuindo-lhe um carácter de ideal ou de arquétipo.


O Fragmento é Semente – IV
2013/VIII/07

Os sonhos guardam-nos do horror do mundo. No inconsciente, repousa a origem da nossa vocação.


O Fragmento é Semente – V
2013/X/03

Rejeitar o acto de votar é uma negação da democracia. A abstenção mina a legitimidade dos eleitos e destrói a sustentação do regime. Sem voto, a democracia é uma ilusão.


O Fragmento é Semente – VI
2013/X/11

O som do mundo nasce da sensação e o pensamento do seu silêncio.


O Fragmento é Semente – VII
2013/X/16

Neste mundo confuso, não existem caminhos rectos, apenas passos longos e quedas iminentes. 


O Fragmento é Semente – VIII
2013/X/18

A Esperança é como o Colosso de Rodes. Firma-se, de um lado, no Momento e, do outro, na Oportunidade. E o Tempo é o mar que por ela passa.


O Fragmento é Semente - IX
2013/XI/01

Primeiro tínhamos Deus, depois a Humanidade, e agora temos os estilhaços dessas duas crenças.

Do Baú V: Não queiras ser um Deus, sê antes Humano

Não queiras ser um Deus, sê antes Humano
2016/V/06

Baburen, Dirck van, Prometeu a ser Agrilhoado por Vulcano, 1623.
Amesterdão: Rijksmuseum.

   Num mundo sem Deus, é mais fácil construir um deus do que um ser humano. A sociedade avançou - ou regrediu - num processo de individualização extrema que egotiza a realidade e desumaniza a consciência que temos de nós próprios, dos outros e do mundo. Perdemos o humano, porque nos engrandecemos como deuses.

   Abastecemos com egocentrismo a nossa imagem e consideramos a aparência a nossa verdadeira essência. A obsessão pelo corpo e a necessidade de anular o envelhecimento são prova da incapacidade de nos aceitarmos como humanos. Os gregos tinha o conceito de kalokagathía que significava a união do belo, kalós, com o bom, agathós. Esta noção daria, mais tarde, a máxima mens sana in corpore sano que, curiosamente, deriva de um verso, usado com ironia, nas Sátiras (X, 356) de Juvenal. Orientamos a nossa atenção para o corpo e para o belo e deixamos a mente e o bom tolhidos de cuidado. Basta vermos o número de pessoas que recorre a qualquer forma de terapia ou aconselhamento para a mente. A alma humana está profundamente doente, pois consolidou a sua existência, mais do que nunca, na aparência que é, por natureza, é efémera.

   A condição humana é absurdamente frágil. A doença, o envelhecimento e a morte não são possibilidades, são categorias que nos definem como humanos. Lá por comermos muita quinoa, bulgur, seitan ou bagas goji não anulamos a possibilidade de virmos ter cancro, caso exista uma predisposição genética. Podemos, de facto, com uma alimentação saudável prevenir muitas doenças, mas não destruímos, por completo, a possibilidade de termos uma doença grave ou terminal. O exercício, bem como a alimentação, também não afasta da nossa existência o natural envelhecimento do corpo. Pode melhorar a nossa condição física, mas não deixámos de envelhecer.

   A escolha radical pelo culto da aparência revela-se até na linguagem. Para preservar um enorme espectro de ilusões, desenvolvemos eufemismos para dar um outro sentido à realidade. Já não dizemos que é mentira ou falsidade, dizemos que falta à verdade ou que é uma inverdade. Como temos um medo atroz de envelhecer, porque, no fundo, tememos a decadência e a morte, deixámos de ser velhos para sermos idosos, seniores ou anciãos. Ora idoso é quem tem idade e é um mero elemento quantitativo, mais ou menos anos, mais ou menos idoso; sénior vem do latim senior que indica quem tem mais anos, é um denominador superlativo, oposto a minor, que indica quem tem menos de trinta anos, o jovem e a criança; e, por fim, ancião indica alguém que pela experiência ou conhecimento tornou-se um exemplo, logo é um elemento qualitativo que não é comum a todos. No fundo, quer queiramos ou quer não, quando envelhecemos somos velhos, mas podemos ser orgulhosamente velhos.

   A ambição de ser um deus exige palavras e ruído. Perdemos o dom maravilhoso do silêncio e do seu potencial criador. Zenão de Cítio diz que "a natureza deu-nos somente uma boca, mas duas orelhas, de modo que devemos falar menos e escutar mais" (Diógenes Laércio, VII, 23). Falamos por falar, falamos sem sentido, mas sobretudo falamos de nós. Eu sou, eu faço, eu fiz, eu penso, eu sinto enchem os discursos, tudo porque temos a necessidade de divinizar a nossa existência. Temos de ser os melhores, os mais esbeltos, os mais assertivos e com opinião formada sobre tudo. Face a nossa magnitude, os outros só podem ser alvos de crítica. Tudo porque não sabemos ser humanos, porque se soubéssemos, compreenderíamos a nossa condição imperfeita e efémera.

   Os dois textos homéricos, a Iliada e a Odisseia, apontam, logos nos primeiros versos, para a diferença radical entre homem-deus e o homem-humano (perdoe-se o pleonasmo). A Ilíada (I, 1-7) começa da seguinte forma:

Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles. 

   O verso sétimo indica a dicotomia que anteriormente se descrevia. De um lado está o Atrida, Agamémnon, soberano dos homens, e do outro o divino Aquiles. O filho da deusa Tétis e de Peleu, o rei dos mirmidões, têm o seu olhar no céu, na glória da eternidade. É um meio-humano que, no fundo, deseja ser apenas deus, imortalizado no tempo e na história. Contrariamente, a Odisseia (I, 1-10) começa assim:

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion,
o Sol - e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.

Odisseu, ou Ulisses, é humano, sofre, enfrenta a possibilidade da loucura, teme pela sua vida e tenta salvar-se. É um homem que recorre à inteligência e à astúcia para sobreviver. Os dois heróis são, por isso, exemplo dos dois vectores apresentados: o querer ser deus e gozar da imortalidade e o ser humano e aceitar essa condição. Aquiles deve o direito de escolha porque era um semideus. Preferiu a glória imortal e a vida breve, em vez de uma vida longa com mulher, filhos e netos, mas foi o sangue divino de Tétis que lhe deu essa hipótese. Ora Ulisses, à semelhança de todos os humanos, não pode escolher. Teve sempre a vida presa por um fio, como todos nós, com a ameaça constante da tesoura de Átropos.

   O egocentrismo da sociedade contemporânea deixou-nos num estado de desumanização sem par. As pessoas sensibilizam-se mais com um cão maltratado do que com os bombardeamentos a um hospital, cheio de crianças e mulheres grávidas, em Aleppo. Movem-se por causas idealizadas, mas têm pouca compaixão pelo próximo. Estamos tão focados em nós, nos deuses que queremos ser, que nos esquecemos do outro e da nossa humanidade. 



Bibliografia:
  • Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.
  • Juvenal, Juvenal and Persius. Tradução Susanna Morton Braund. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 2004.
  • Homero, Ilíada. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
  • Homero, Odisseia. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Do Baú IV: O Ridículo que pertence à Terra

O Ridículo que pertence à Terra

2016/IV/15

Poussin, Nicolas, The Nurture of Bacchus, 1630-35. Paris: Museu do Louvre.
   

   Hermann Broch deixou-nos a noção transformadora do "absoluto que pertence à terra", indicando o modelo de passagem que permite ver na terra o absoluto que pertenceria somente ao céu. Segundo Filomena Molder, este absoluto terrestre "não é nem abismo, nem transformação em infinito, mas a intensificação da relação entre os dois, o seu sustentáculo". Ora é nesta ponte entre abismo e infinito que se pode introduzir o riso, o cómico como categoria crítica da realidade. O conhecimento da morte e valor efémero da vida conferem à existência humana uma certa dimensão de ridículo.

   A tese que vigorou na Idade Média era de que o riso era próprio dos animais e era uma coisa do Diabo. Essa visão está bem presente na personagem de Umberto Eco Venerável Jorge, a qual argumenta com o Irmão Guilherme a existência de um segundo livro da Poética de Aristóteles, dedicado à Comédia. Em O Nome da Rosa, o texto existe, já nós temos claros indícios da existência dessa obra, hoje perdida.

   O suposto gargalhar de macacos e hienas não passa de uma mera vocalização, pois não é um riso que interpreta a realidade e lhe confere uma natureza crítica. Bergson, no seu ensaio sobre o riso, diz que "não há comicidade fora do é propriamente humano". E é a partir do Renascimento que se reintroduzem as categorias da comédia e do riso como expressões críticas da realidade. É desse momento em diante, e na continuidade de Aristófanes, que foram produzidas as melhores obras de comédia e de sátira.

   Mais tarde, Rabelais, no Pantagruel, vem dizer: "Mieux est de ris que de larmes escripre/ Pour ce que rire est le propre de l'homme". Mais uma vez, a noção de que o riso é próprio do humano apela para a reinterpretação do real. O grotesco é utilizado na crítica à sociedade. O gigante Pantagruel, quando provocado pela multidão de Paris, verte águas sobre ela afogando uma parte, os sobreviventes riem até perderem o fôlego. A origem do nome da cidade surge, nesta sátira, de "Par Ris". A tragédia, pela mão do grotesco, torna-se risível.

Na esteira de Rabelais, Eça de Queiroz afirma, nas Notas Contemporâneas, que "o Riso é a mais antiga, ainda a mais terrível forma de crítica". Quando lemos as comédias de Aristófanes compreendemos a importância do riso como crítica, sobretudo social, como por exemplo nas peças Lisístrata ou As Mulheres na Assembleia. O ser humano quando ri tem sempre um referente para o seu riso, seja de si, do outro ou da comunidade.

   No entanto, tal como diz Eça, "penso que o riso acabou - porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização". As aparências e a complexidade dos artifícios sociais enfraqueceram o riso como crítica. A crítica social através do riso repousa apenas naqueles que vivem do humor e, todavia, os remetentes da sua mensagem não a interiorizam, preferem sorrir como se fosse uma necessidade protocolar, determinada pelo o que é comummente aceite. O rir dos outros mantém-se quase inalterado, pois apela a uma certa maldade intrínseca de diminuir o próximo. Porém, se este fosse equilibrado com a nobre acção de rirmos de nós mesmos, seria atenuada a perfídia do julgamento fácil, mas é aqui que reside o problema. Tornámo-nos tão cinzentos e tristes que temos dificuldade em rir de nós mesmos. 

   Montaigne, no ensaio Da Vaidade, diz que "a corrupção da nossa época grassa devido ao contributo pessoal de cada um de nós: uns concorrem para ela com a traição, outros, com a injustiça, com a irreligião, a tirania, a ganância ou a crueldade, à proporção do poder que têm; os mais fracos, entre os quais me conto, contribuem com a tolice, a vaidade ou a ociosidade". O ser humano insuflou-se tanto de ego e vaidade que é incapaz de ver que o produz é mais corrupção do que esplendor. A capacidade de rirmos de nós mesmos é um ensimesmamento terapêutico. E só quem se tem em grande conta é que é incapaz de rir de si. Somos uma migalha ínfima no universo, logo não adianta as grandezas do eu.

   O gordo, o pobre, o mal vestido, o que tem um carro velho ou uma casa modesta são motivo de riso, mais comum do que a nossa insignificância ou a nossa ignorância. Pensamos que o que somos e fazemos é magnânimo e magnífico, mas a ironia está no ridículo que somos quando assim nos apresentamos. Existe sempre um outro lado: o magro extremo que da boa comida abdica também é ridículo; o rico que na opulência se espelha é ridículo; o que demasiado aprumado se veste é ridículo, pois é incapaz de descontrair; o carro faustoso é ridículo e a casa excessivamente rica é ridículo e pirosa.

   A didáctica do riso garante o nosso lugar no mundo e fixa a nossa dimensão humana. Temos de seguir a máxima de Rabelais: "Riez! Riez!". O sábio e o génio riem de si, porque conhecem os seus limites, já o ignorante adorna a sua vaidade com lustrosas patentes e medalha o ego com a riqueza dos seus feitos ilusórios. Somos cinzas e pó que temem o abismo e fitam o infinito. A nossa existência é este ridículo que pertence à terra.


Bibliografia:
Bergson, Henri, O Riso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
Eco, Humberto, O Nome da Rosa. Lisboa: Difel, s/d.
Montaigne, Ensaios - Antologia. Lisboa: Relógio D'Água, 1998.
Molder, Maria Filomena, O Absoluto que pertence à Terra. S/l: Vendaval, 2005.
Queiroz, Eça de, Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.
Rabelais, François, Gargantua et Pantagruel. Paris: Arlea, 2010.

Do Baú III: Tu que és Sombra e Sombra vês

Tu que és Sombra e Sombra vês
2016/III/30
  
Caravaggio, David com a Cabeça de Golias, 1609-10.
Roma: Galleria Borghese.


            Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, expandiu o alcance do conceito de mal, fez com que descesse da sua dimensão extrema e contaminasse o ser humano comum. Um ser quase sem sentido como Eichmann não se revela imbuído de uma perfídia psicopatológica, mas sim de um espírito meramente executante que não pensa, nem questiona, e que, no entanto, estende o mal a uma banalidade quase universal. A prática inconsciente do mal pode parecer uma mera expressão de ignorância, porém atinge uma dimensão mais profunda, a da aceitação do mal como estado natural das coisas. O extermínio e a anulação do ser humano nos campos de concentração parecem uma forma normalizada e rectificada das coisas, tudo porque foram determinados pelo líder.  A confiança cega de que o foi decidido é o melhor é o veículo adequado para a banalização do mal.
Pensamos no mal como se descendo uma pirâmide. No topo, encontramos a génese do mal que se alastra para a parte mais larga da pirâmide, ou seja, partimos da personificação do mal, centrada numa pessoa ou aspecto, e descemos para o vulgo que se deixa corromper. Todavia, o movimento não é apenas descendente, nem centralizado. É a base da pirâmide que constrói e legitima o mal. Não existe senhor, sem súbditos. Os cultos de personalidade nascem de uma predisposição para o mal, têm a sua génese numa incompletude massificada que verte essa falta numa corrupção do mito do herói. Na ausência de uma fé profunda, que anularia esse desejo de participar na acção de um homem comum, marcado pela Providência, constrói-se uma imagem de salvação e redenção. Todas as esperanças de um povo estão agora nas mãos de um ser banal tornado deidade. Esta é uma pura construção do mal.
Quando o sentido da humanidade enfraquece e quando Deus desvanece na aparência dominical, aparecem deuses do momento que alentam os povos e que os elevam numa grandeza que não é sua. Os países que viveram em ditadura revelam uma predisposição, quase natural, para os cultos de personalidade. Em Portugal, essa fraqueza de espírito é deveras evidente. A nossa pequenez aspira sempre a tornar os feitos individuais numa glória colectiva. Veja-se o exemplo de Cristiano Ronaldo. O melhor jogador do mundo é português, logo Portugal é espectacular. Agora, criou-se, sobretudo na comunicação social, a ideia de um presidente que vai salvar os portugueses da bruma da sua própria história. Um homem providencial que anula as fragilidades humanas, as vicissitudes de um povo e que o transporta, aos ombros, para uma vida melhor.
Criámos uma constelação de deuses que não passam de homens comuns. Do alto do pedestal, estes ídolos caiem na sua própria humanidade. São os estão em baixo que operam esta construção do mal. Procura-se consolo numa imagem idílica de um ser perfeito. Será possível ver apenas um génio num Leonardo Da Vinci com resto de sopa na barba, como descreve o biógrafo? Ou ver o arauto da educação num Rousseau que abonou os cinco filhos? Ou um Marx que não pagava o salário à empregada e desprezava os trabalhadores? Um Gandhi, imagem da paz, que batia na mulher e tentava a castidade, dormindo com jovens, em especial, com a sobrinha? Shelley era um mau pagador que pedia dinheiro emprestado e nunca pagava. Tolstoi era um egocêntrico que se aproveitava sexual e emocionalmente dos outros. Leia-se Intelectuais de Paul Johnson e compreende-se a falácia do culto da personalidade. Em Portugal, encontramos também, por exemplo, um D. Pedro, imagem do amor, amante de D. Inês, que nutria afecto obsessivo pelo seu escudeiro, ou um Salazar, homem rectíssimo para muitos, com um fetiche por mulheres casadas.
O problema de prestar culto a seres humanos é o de serem humanos, falíveis, com debilidades morais e vivências na sombra. A aura quebra-se perante a sua própria humanidade, mas, mais uma vez, o erro está nos seus fiéis e é neste aspecto que o mal avança. Só vêem a luz quando o que existe é sombra. O valor deveria repousar na obra e não no indivíduo. Hannah Arendt, numa carta a Gershom Scholem, diz que o mal não tem uma dimensão demoníaca, mas espalha-se como um fungo. Os cultos de personalidade têm essa dimensão de fungo, pois espalham-se e fixam-se nos ideais, sem ideias, do comum dos mortais.
No Purgatório, Dante coloca Estácio diante de Virgílio e quando o primeiro tenta abraçá-lo, o segundo diz: "Frate, non far, ché tu se' ombra e ombra vedi". A noção de que somos sombra e sombras vemos é o que se pode reter. A luz do Bem tende esconder-se e a pessoa boa não pode ser objecto de culto. Veja-se a obra, ver-se-á o homem. O egocentrismo de uma sociedade é uma expressão do mal. A sabedoria pede a contenção e o silêncio, e essa é imagem do Bem.

Bibliografia:
Arendt, Hannah, Eichmann em Jerusalém. Coimbra: Tenacitas, 2003.
Dante Alighieri, A Divina Comédia. Venda Nova: Bertrand Editora, 2000.
Johnson, Paul, Intelectuais. Lisboa: Guerra e Paz, 2008.
Neiman, Susan, O Mal no Pensamento Moderno. Lisboa: Gradiva, 2005

quinta-feira, 30 de março de 2017

Do Baú II: Da Vaidade

Vanitas vanitatum et omnia vanitas
2013/VI/13




O texto que se segue tem por título uma conhecida frase do Eclesiastes. Salomão, filho de David, diz: "vaidade das vaidades, tudo é vaidade" (1,2). Esta tese, a de que todas as paixões se resumem à vaidade, é partilhada por Matias Aires na obra Reflexões sobre a vaidade dos homens ou discursos moraes sobre os effeitos da vaidade  (1752).
Na dedicatória, Matias Aires oferece o opúsculo a D. José I e diz que "é o mesmo que oferecer em um pequeno livro aquilo de que o mundo todo se compõe". A vaidade assume o centro de uma estrutura moral e o próprio criador do texto declara, no prólogo, que "eu que disse mal das vaidades vim a cair na de Autor". Segundo o mesmo, "vivemos com vaidade, e com vaidade morremos" (2), pois "a vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura" (1). A vaidade anima a vida e decora a morte. O cadáver, a caminho da putrefacção, envolve-se na mesma vaidade de quando era um corpo vivo e vistoso. Adorna-se o morto, vestindo-o de soberba, glorifica-se o seu derradeiro habitáculo de madeira nobre e metal rico e compõe-se de valioso mármore o local que apenas a morte guarda. Se esta é a vaidade na morte, então quão universal será a vaidade em vida?
Matias Aires, influenciado por La Rochefoucauld, utiliza uma estrutura textual de pequenos pensamentos ou reflexões, compostos numa lógica aforística ou fragmentária. Esta forma de apresentar a palavra é que mais se distancia da vaidade criativa, ou da ostentação textual, pois o pequeno texto, o fragmento, proclama uma limitação epistemológica, uma síntese daquilo que se conhece em oposição ao vasto desconhecido. 
O autor diz que "a nossa vaidade é a que nos faz ser insuportável a vaidade dos mais" (6). A visão exacerbada do eu contamina qualquer projecção identitária do outro. Os demais ameaçam a nossa vaidade, daí que Matias Aires escreva que "a vaidade parece-se muito com o amor-próprio, se é que não é o mesmo; e se são paixões diversas, sempre é certo, que ou a vaidade procede do amor-próprio, ou este é efeito da vaidade" (10). O amor-próprio e a vaidade potenciam toda e qualquer expressão do humano, formam a sua relação com o mundo e com os outros. 
"Com todas as paixões se une a vaidade; a muitas serve de origem principal; nasce com todas elas, e é a última, acaba" (7). O carácter universal da vaidade é o que lhe permite ser a origem e o fim, a causa e o efeito de todas as paixões. Logo, a vaidade é a suprema forma de afirmação, de conquista de um lugar no mundo, não um espaço oculto, mas sim um local de fama e de reconhecimento. "A vaidade faz, que não há cousa, que não sacrifiquemos ao desejo de parecer entendidos, ainda que seja à custa de um vício, ou de uma culpa" (16). "Fazemos vaidade de errar com subtileza, e temos pejo de acertar rusticamente" (15). É preferível parecer-se sábio na ribalta do que sê-lo no anonimato. Tudo se torna um véu de aparência, uma dissimulação apadrinhada pela vaidade.
"Para donde quer, que vamos, a vaidade nos leva" (20), daí que "os homens mais vaidosos são os mais próprios para a sociedade" (24). O mundo assume uma preferência, mesmo que disfarçada, camuflada de falsa virtude, por esse empreendedorismo do eu. Os vaidosos dedicam-se a essa empreitada de firmar o eu no mundo dos outros como se essa fosse a sua condição natural. "A vaidade nos faz parecer, que merecemos tudo, por isso empreendemos, e conseguimos às vezes; a falta de vaidade nos faz parecer, que não merecemos nada, por isso nem buscamos, nem pedimos" (23). Desengane-se com pensa que a acção que tende para uma realização pessoal está assente em nobres ideias, porque na verdade ela não passa de vaidade, de busca incessante por uma glória do eu. A vaidade também não enfraquece com os anos, muda de forma, mais o seu vigor permanece. Nessa altura, nos anos da velhice, a vaidade torna-se numa ostentação das glórias passadas, numa afirmação inabalável de que se conquistou um estatuto, uma posição de relevo.
"Se a melancolia nos desterra para a solidão do ermo, não deixa de ir connosco a vaidade; e então somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta: nunca podemos fugir de nós: para donde quer que vamos, imos com os nossos mesmos desvarios, se bem que as vaidades do ermo são vaidades inocentes" (37). Aquele que julga que ao distanciar-se de um mundo de vaidades foge da própria vaidade, engana-se, uma vez que a leva consigo, pois ela participa da sua própria natureza. É uma vaidade inocente, mas não deixa de ser vaidade. 
"O que chamamos inveja, não é senão vaidade. Continuamente acusamos a injustiça da fortuna, e a consideramos ainda mais cega do que o amor, na repartição das felicidades. Desejamos o que os outros possuem, porque nos parece, que tudo o que os outros têm, nós o merecíamos melhor; por isso olhamos com desgosto para as cousas alheias, por nos parecer, que deviam ser nossas: que é isto senão vaidade?" (43). A inveja é uma vaidade afectada, diminuída na sua nobre consciência de si. O êxito do outro torna-se, na ausência do nosso sucesso, um inimigo. Gera-se uma sensação de afronta e de despeito e então o vaidoso constrangido vitupera a glória alheia como se ela fosse um ataque à sua própria dignidade.
"A vaidade é de todo o mundo, de todo o tempo, de todas as profissões, e de todos os estados" (64). Cai no erro quem pensar que rejeita a vaidade, que a sua acção ou profissão, que o seu modo de pensar ou de agir se envolvem de virtude e que são tudo menos vaidades. A mais nobre das opiniões ou dos raciocínios podem não ter a vaidade no conteúdo, mas vão tê-la na forma, pois toda a expressão, seja fruto da razão ou do sentimento, visa a aceitação e esta não é mais do que vaidade. Desta forma, "o aplauso é o ídolo da vaidade" (68). Esta paixão universal visa o reconhecimento, a atribuição de valor aos nossos passos. A vaidade procura a estima e rejeita o desprezo. 
"A vaidade é engenhosa em glorificar tudo o que vem de nós, e em reprovar tudo que vem dos outros" (121). A vaidade teme os feitos dos outros. Matias Aires diz que "na república das letras não há menos vaidade que na república das armas" (120). No que compete ao pensamento e à palavra, "o ter ou não ter razão, é verdadeiramente a guerra em que se passam os nossos dias, e os nossos anos" (121). Para essa assunção da verdade do eu, o mais é o melhor. O autor de um tratado assume ter a razão face ao autor de um ensaio que visa a mesma temática. Diz outro que um extenso romance é preferível à síntese de um conto. Ou que um fragmento não iguala a torrente de páginas escritas. Ou ainda que uma ode de cento e onze versos é melhor do que um haiku. A vaidade criativa precisa de uma qualquer forma de ostentação seja pela quantidade de texto, pelo estilo da palavra ou pela pomba da sua apresentação. "Quantas injustiças não terá feito a vaidade de fazer justiça" (134)
Em suma, "vanitas vanitatum et omnia vanitas". Tudo é vaidade. Leia-se as Reflexões sobre a Vaidade dos Homens de Matias Aires e compreenda-se a universalidade da vaidade. 


Bibliografia:
·         Bíblia de Jerusalém - Nova Edição, Revista e Ampliada. São Paulo: Paulos, 2002.
·       Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. Prefácio de António Pedro Mesquita. Fixação do texto e notas de Violeta Crespo Figueiredo e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: INCM, 2ª Edição - Revista, 2005