Raffaello, Sanzio, The Voyage of Galatea, 1511.
Roma: Villa Farnesina.
|
O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos
(Um Pequeno Conto)
Um velho quase cego, sentado em frente ao mundo, tentava resgatar o sonho da memória. Simplício não procurava rememorar uma outra vida. Queria sim recuperar o riso perdido. Queria deslumbrar-se com aquela inocência singular, com aquele doce despertar. Queria fitar e esconder para si a paleta da realidade, as matizes que se estendiam sem esforço sobre o seu olhar, mas a doença que a fere a vida deixou-lhe apenas vultos e sombras, formas ocultas e memórias disformes. Simplício perdera o horizonte.
Naquele dia, depois de tentar tornar nítido o fumo espesso, Simplício percebeu, sem necessidade de recorrer aos sentidos, que existia, mesmo diante de si, uma novidade, uma expressão inaugural que colhia o bater de asas de um anjo. Um demiurgo estava de passagem. Porém, o som da origem foi suspenso por um acorde demoníaco. Na harmonia delicada das asas ondulantes, existia agora uma dissonante tensão, um melodioso conflito que surgia porque algo estava para nascer. Simplício que perdera a cor acreditava que nada podia nascer, que não existia nada para criar. Era tudo sombra. Contudo, o homem caíra no seu próprio erro. O nevoeiro era mera ilusão.
A nuvem tornava-se mar e os vultos ganhavam a forma de ondas. O velho pensou que o Sol brincava com ele, que a sua luz gerava uma desejada fantasia. Foi então que a maré lhe ofertou o perfume da maresia. O aroma tornava-se memória e Simplício regressava a si. O tempo já não se alongava em fio de tecedeira, era um aro num jogo de criança. Tudo regressava à origem. Simplício voltava à casa que nunca conhecera. Aquele areal, aquele mar, aquele vento eram o lugar da memória, pois o que permanece é o que se lembra e o que se imagina. O homem estava sentado, com as mãos apoiadas na bengala, ceifando aqueles raios de luz e, sem que desse conta, uma forma furtou-lhe a imagem. Diante de si, contornado pelo Sol, um menino quebrara-lhe a memória, o sonho e a ilusão.
- Saí da frente, fedelho! Não vês que me tiras o Sol.
- Como lhe posso tirar o Sol se o Sol é todos?
- Criatura insolente! Já não há educação. Os pais não educam as crianças. No meu tempo, levava uma galheta que ficava logo em sentido.
- Desculpe, não o queria ofender, só lhe tentei dizer que não lhe posso tirar o que não é seu, mas não se zangue que eu desvio-me. O senhor estava a ver o quê?
- Nada que te diga respeito.
- É que o senhor olhava em frente quando estão todos a olhar para a sua esquerda. Toda a gente quer ver os golfinhos.
- Miúdo, tu não vês que eu sou cego.
- Não tem de ver, basta ouvir o riso dos golfinhos.
- Eu não oiço nada.
- Esteja atento. Parecem gargalhadas.
- Não oiço nada. Ora esta, não é que o raio do miúdo não me deixa em paz. Vai para ao pé dos teus pais. O teu lugar não é aqui.
- Eu gosto deste lugar. É tão bom ouvir o riso dos golfinhos. Eles falam a rir.
Simplício estava incomodado com a presença da criança. O velho sabia que só via sombras, mas sempre ouvira bem. Diziam-lhe até que tinha ouvidos de tísico. Como podia não ouvir o riso golfinhos? A questão inquietava o homem.
- Ó miúdo, diz-me para onde me devo virar. Onde estão os tais golfinhos?
- Para este lado, eu ajudo-o – menino, levando o velho pela mão, sentou-o em frente aos golfinhos.
- Aqui estou bem?
- Sim, está. Oiça agora. Os golfinhos estão a gargalhar. Riem como se ouvissem uma piada. Sabe como aquelas que nos fazem chorar de tanto rir.
- Não oiço nada. Estás a enganar-me. Estás a gozar comigo. Sai, sai já daqui ou dou-te umas bengaladas!
A criança desapareceu, deixando o velho na sua própria angústia. Simplício não conseguia escutar o riso dos golfinhos. A ausência condenara-lhe a possibilidade. A audição sempre lhe compensara o limiar da cegueira, todavia a dúvida cercara-lhe a certeza. Se não podia confiar no que ouvia, tinha de se firmar nos vultos e deixar-se assombrar pela confusão das coisas. No entanto, não se dera por derrotado. Simplício, já que não conseguia ouvir o riso dos golfinhos, queria afastar a poeira do olhar e deter-se nas suas próprias sombras. Focava-se no horizonte perdido e procurava aqueles seres de passagem, todavia, nenhuma forma esfumada cavalgava as ondas da sua imaginação. O seu mar era apenas o tempo que avança e recua, o perfume de sal espesso que lhe tocava o sopro e o desalento. Nada existia naquele oceano revolto. O Sol sulcava-lhe as rugas e a penumbra de luz ferida vertia-se numa única lágrima. Nos vultos serpentinos, os golfinhos permaneciam indeterminados. Simplício desistiu. Deixou que o rosto cobrisse a escuridão. Colocou as mãos na bengala e baixou a cabeça.
Passados alguns minutos, que se assemelhavam a horas de mergulho profundo, o homem ergueu a face tombada. Não havia nem mar, nem ondas. Simplício estava num banco de jardim, observando as sombras de passagem, gente que corria, gente que, sem mar, se afogava. Aquele era o seu lugar. Numa quietude sem espanto, o velho observava a vida dos outros. Porém, aquela outra viagem esvaziara-lhe o interesse. Simplício levantou-se e, apoiado na sua bengala, caminhou até casa. Subiu as escadas estreitas, baixou a cabeça para entrar e suspirou. Sem qualquer alento, deu desprezo ao Sol do crepúsculo e correu as cortinas. Puxou as orelhas da cama, para lá do seu próprio rosto, e dormiu. Nessa noite, Simplício sonhou com golfinhos.
RMdF