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quarta-feira, 4 de março de 2020

Esta Noite Sonhei com Dante - Um Conto (Excerto)

Blake, William, The Lovers' Whirlwind,
Francesca da Rimini and Paolo Malatesta
, 1824-27.
Birmingham: Birmingham Museum and Art Gallery.
https://www.wga.hu/


Esta Noite Sonhei com Dante 

- Um Conto -


I


   Maria Clara, inquieta e angustiada, dava voltas na cama. Como uma tempestade revirava os lençóis. Tornava a areia lisa do tecido em dunas íngremes de cobertores e mantas. O seu sono era o de quem leva a bordo a dor no inconsciente e a veleja no mar agitado do sonho e da fantasia. As gotas de suor e lágrimas eram o rio que corria até ao seu corpo, desaguando em tormenta e memória. Com os olhos fechados e a respiração ofegante, a jovem mulher rodava de um lado para o outro. A realidade de quem apenas vê permanecia de pálpebras deitadas e tudo quanto existia era sonho e imaginação, dádiva e desgraça. Maria Clara sonhava com Dante. 

   O segundo círculo do Inferno, mais pequeno que o primeiro, mas maior em sofrimento, era um abismo de dor e um vórtice de expiação. Porém, naquele lugar não existia perdão, nem absolvição. A pena do pecador estendia-se na eternidade. Maria Clara estava encolhida sobre si mesma, de braços cruzados, envolvendo o peito, e levemente curvada, devido à gravidade do espaço. Olhou em frente e viu, não muito longe, o horrível soberano de cauda rodante, o juiz e o carrasco, o senhor que pune, sem compaixão, aqueles que foram entregues ao círculo dos luxuriosos. Os condenados por amor faltoso, por erro do coração, colocados diante da justiça de Minos, desconheciam o seu fado. A sua sentença era volverem-se, girarem sobre si mesmos, num tornado de agonia, juntos, mas sem união, até desesperarem na roda do tempo que não pára. 

   Maria Clara seguiu, a passo tardio, o caminho que temia encontrar. Olhava à sua volta, detinha-se nos casais em pranto, procurando chegar a quem há muito perdera. Aproximou-se mais um pouco, até que, junto dela, estavam duas sombras, as quais observavam e nomeavam o mesmo que a jovem queria ver. Ouviu, da boca do guia, os nomes dos danados. Primeiro as mulheres, a quem o pecado da luxúria é gravemente sancionado e a quem, por norma, se atribui uma pena superior e mais didáctica. Com as palavras do mestre e do seu discípulo, pode identificar Semíramis da Assíria, Dido de Cartago e Helena de Tróia. As três mulheres que em diferentes formas de amar se perderam eram penitentes sem perdão. Os amorosos companheiros também não escaparam da punição que no tempo se arrastava. Aquiles, Páris e Tristão a outros mil se juntaram, seguindo o séquito de luxuriosos a quem o amor fendeu o fio da vida severa. Maria Clara, assistindo à procissão da turba dolorosa, procurava, sem cessar, um casal de amantes que só ali podiam estar, mas as lágrimas que o choro estendia impediam-na de olhar com vagar e pormenor. Diante de si e dos outros viajantes, dois amantes se colocaram, rodando em sofrimento e pesar. Francesca da Polenta e Paolo Malatesta morreram por amar, foram assassinados pelo marido e irmão. Maria Clara perguntava-se que amor era aquele que não permitia amar quem fora amado, mas, sem resposta, sentiu o fraquejar das pernas, o peso sobre os ombros, a queda que ameaçava. A tragédia dos amantes era idêntica à dos seus pais que também foram mortos por amar e, sem perdão, somente no Inferno podiam estar. 

   Maria Clara fixou os olhos daquele que seguia o mestre latino e viu as lágrimas que o tomavam. A dor de Francesca era a sua própria dor, dor essa que era idêntica ao quebranto que a jovem sentia. O sofrimento tomou o corpo e nele se fez raiz. O poeta descrevia o texto como vida, como mestre no caminho, pois indicava e sugeria, por sibilinos oráculos e por sinais de símbolo, analogia e metáfora, o destino que não se podia evitar. A página que ditou o fim de Francesca e Paolo foi a mesma, ou pelo menos um cópia ou adaptação, da que marcou a morte dos seus pais. Maria Clara procurou a memória, o sentido e o valor, mas tudo o que levava consigo era a proximidade da queda, do abismo que inauguralmente se apresentava. A dor dominou a fraqueza de quem via os amorosos em tamanha agonia e pranto e, na impossibilidade de libertar o amor dos seus algozes, a morte tolhia-lhes os membros. O fiorentino escrevente quebrou-se em queda certa e chorou o amor alheio como se o seu próprio coração tivesse sido apartado, arrancado do peito sem bebida forte ou pancada rude. Maria Clara, tal como Dante, caiu no sonho e na vida como um corpo morto cai. A jovem mulher tinha a consciência cristalina que um amor que não nos ergue ao sol e às estrelas só ao Inferno nos pode conduzir e, embora não tivesse visto os seus pais, sabia que seguiriam no séquito dos defuntos do amor.

   Maria Clara acordou do seu sonho como se se estivesse a afogar no mar profundo e fosse resgatada, puxada para cima, por um velho marinheiro que a furtou à morte escrita. Os pulmões negavam o sopro que era dádiva e feriam o peito quando inspirava. A jovem sentou-se na cama, desapertando os botões da camisa de dormir, soltando o pescoço que sufocava. Deixou os seios expostos à noite que fora uma cruel conselheira. O suor corria da testa à foz, humedecendo a roupa e pingando do cabelo. Não fora apenas o que vira que a deixara em sofrimento, foi também o que não vira, o que não disse, o que não pode expressar. A memória implorava por transformação, por justiça ou entendimento. A jovem levantou-se, caminhou para a bacia de água e despejou as conchas das mãos no rosto quente. Molhou o pano bordado e banhou-se de lua e esquecimento.


..... continua 



RMdF

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos (Um Pequeno Conto)

Raffaello, Sanzio, The Voyage of Galatea, 1511.
Roma: Villa Farnesina.

O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos

(Um Pequeno Conto)


  Um velho quase cego, sentado em frente ao mundo, tentava resgatar o sonho da memória. Simplício não procurava rememorar uma outra vida. Queria sim recuperar o riso perdido. Queria deslumbrar-se com aquela inocência singular, com aquele doce despertar. Queria fitar e esconder para si a paleta da realidade, as matizes que se estendiam sem esforço sobre o seu olhar, mas a doença que a fere a vida deixou-lhe apenas vultos e sombras, formas ocultas e memórias disformes. Simplício perdera o horizonte.

  Naquele dia, depois de tentar tornar nítido o fumo espesso, Simplício percebeu, sem necessidade de recorrer aos sentidos, que existia, mesmo diante de si, uma novidade, uma expressão inaugural que colhia o bater de asas de um anjo. Um demiurgo estava de passagem. Porém, o som da origem foi suspenso por um acorde demoníaco. Na harmonia delicada das asas ondulantes, existia agora uma dissonante tensão, um melodioso conflito que surgia porque algo estava para nascer. Simplício que perdera a cor acreditava que nada podia nascer, que não existia nada para criar. Era tudo sombra. Contudo, o homem caíra no seu próprio erro. O nevoeiro era mera ilusão.

  A nuvem tornava-se mar e os vultos ganhavam a forma de ondas. O velho pensou que o Sol brincava com ele, que a sua luz gerava uma desejada fantasia. Foi então que a maré lhe ofertou o perfume da maresia. O aroma tornava-se memória e Simplício regressava a si. O tempo já não se alongava em fio de tecedeira, era um aro num jogo de criança. Tudo regressava à origem. Simplício voltava à casa que nunca conhecera. Aquele areal, aquele mar, aquele vento eram o lugar da memória, pois o que permanece é o que se lembra e o que se imagina. O homem estava sentado, com as mãos apoiadas na bengala, ceifando aqueles raios de luz e, sem que desse conta, uma forma furtou-lhe a imagem. Diante de si, contornado pelo Sol, um menino quebrara-lhe a memória, o sonho e a ilusão.

  - Saí da frente, fedelho! Não vês que me tiras o Sol.
  - Como lhe posso tirar o Sol se o Sol é todos?
  - Criatura insolente! Já não há educação. Os pais não educam as crianças. No meu tempo, levava uma galheta que ficava logo em sentido.
  - Desculpe, não o queria ofender, só lhe tentei dizer que não lhe posso tirar o que não é seu, mas não se zangue que eu desvio-me. O senhor estava a ver o quê?
  - Nada que te diga respeito.
  - É que o senhor olhava em frente quando estão todos a olhar para a sua esquerda. Toda a gente quer ver os golfinhos.
  - Miúdo, tu não vês que eu sou cego.
  - Não tem de ver, basta ouvir o riso dos golfinhos.
  - Eu não oiço nada.
  - Esteja atento. Parecem gargalhadas.
  - Não oiço nada. Ora esta, não é que o raio do miúdo não me deixa em paz. Vai para ao pé dos teus pais. O teu lugar não é aqui.
  - Eu gosto deste lugar. É tão bom ouvir o riso dos golfinhos. Eles falam a rir.

  Simplício estava incomodado com a presença da criança. O velho sabia que só via sombras, mas sempre ouvira bem. Diziam-lhe até que tinha ouvidos de tísico. Como podia não ouvir o riso golfinhos? A questão inquietava o homem.

  - Ó miúdo, diz-me para onde me devo virar. Onde estão os tais golfinhos?
  - Para este lado, eu ajudo-o – menino, levando o velho pela mão, sentou-o em frente aos golfinhos.
  - Aqui estou bem?
  - Sim, está. Oiça agora. Os golfinhos estão a gargalhar. Riem como se ouvissem uma piada. Sabe como aquelas que nos fazem chorar de tanto rir.
  - Não oiço nada. Estás a enganar-me. Estás a gozar comigo. Sai, sai já daqui ou dou-te umas bengaladas!

  A criança desapareceu, deixando o velho na sua própria angústia. Simplício não conseguia escutar o riso dos golfinhos. A ausência condenara-lhe a possibilidade. A audição sempre lhe compensara o limiar da cegueira, todavia a dúvida cercara-lhe a certeza. Se não podia confiar no que ouvia, tinha de se firmar nos vultos e deixar-se assombrar pela confusão das coisas. No entanto, não se dera por derrotado. Simplício, já que não conseguia ouvir o riso dos golfinhos, queria afastar a poeira do olhar e deter-se nas suas próprias sombras. Focava-se no horizonte perdido e procurava aqueles seres de passagem, todavia, nenhuma forma esfumada cavalgava as ondas da sua imaginação. O seu mar era apenas o tempo que avança e recua, o perfume de sal espesso que lhe tocava o sopro e o desalento. Nada existia naquele oceano revolto. O Sol sulcava-lhe as rugas e a penumbra de luz ferida vertia-se numa única lágrima. Nos vultos serpentinos, os golfinhos permaneciam indeterminados. Simplício desistiu. Deixou que o rosto cobrisse a escuridão. Colocou as mãos na bengala e baixou a cabeça.

  Passados alguns minutos, que se assemelhavam a horas de mergulho profundo, o homem ergueu a face tombada. Não havia nem mar, nem ondas. Simplício estava num banco de jardim, observando as sombras de passagem, gente que corria, gente que, sem mar, se afogava. Aquele era o seu lugar. Numa quietude sem espanto, o velho observava a vida dos outros. Porém, aquela outra viagem esvaziara-lhe o interesse. Simplício levantou-se e, apoiado na sua bengala, caminhou até casa. Subiu as escadas estreitas, baixou a cabeça para entrar e suspirou. Sem qualquer alento, deu desprezo ao Sol do crepúsculo e correu as cortinas. Puxou as orelhas da cama, para lá do seu próprio rosto, e dormiu. Nessa noite, Simplício sonhou com golfinhos. 


RMdF

quinta-feira, 30 de março de 2017

Do Baú I: A Actualidade de O Jantar do Bispo

A Actualidade de O Jantar do Bispo: Reler Sophia
2013/IV/04

O conto de Sophia de Mello Breyner Andersen, presente nos Contos Exemplares, "O Jantar do Bispo" é de uma enorme actualidade. A realidade que Sophia passou para as suas palavras servia para o país de ontem como serve para o de hoje. O imperativo moral é o mesmo.
"O Jantar do Bispo" começa com uma descrição da casa e das terras que a rodeiam. A frase "quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho" (45) é a síntese inaugural deste texto. A dicotomia entre a riqueza e a pobreza é desenvolvida ao longo do conto. O Dono da Casa precisa da intervenção do Bispo, necessita de um favor, "uma semente de guerra" (46) minou a sua autoridade.O jovem padre, o novo pároco de Varzim contraria a pobreza que se instalara no seu rebanho e, para o Dono da Casa, "a sua presença ia crescendo como uma acusação que o acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o tocava" (46). O Dono da Casa pensava que o padre se imiscuiu nos seus assuntos e ia para além da sua competência e, ao confrontá-lo com sua posição, o pároco respondeu que "da nossa própria fome  (...)  podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral" (47). Esta máxima é de tal forma importante que devia ser cravada na cartilha da vida de qualquer pessoa, sobretudo daqueles que tem uma responsabilidade política ou social. "A fome dos outros é um problema moral" fixe-se e use-se como arma da Justiça.  
Para o Dono da Casa, "as suas conveniências, as suas comodidades, as usas vantagens e os seus interesses pareciam-lhe direitos éticos absolutos, princípios sagrados da paz e da ordem" (47), daí que a postura do padre fosse considerada uma afronta, no entanto, o padre era pobre, o que dificultava qualquer acusação que lhe pretendesse fazer. O pároco era um homem insignificante, não era um homem à altura daquele grande homem, habituado a mandar, consagrado pelos ramos de uma família antiga a exercer o seu poder. Porém, ao averiguar a linhagem do seu inimigo, concluiu que "o padre era parente afastado duns seus parentes afastados e que a fome escrita na sua cara não era hereditária, mas sim voluntária" (48). A sua pobreza era um mandamento da sua identidade. O Dono da Casa via nesta opção do padre uma forma de traição, um desafio chocante à ordem estabelecida, ao normal progresso de uma vida abençoada por uma boa família.  
O padre dava tudo o que tinha. Os seus bens, os frutos da sua lavra eram uma dádiva aos outros. O Dono da Casa pensava que isso "era desordem, anormalidade, bolchevismo" (49). Como poderia alguém sair do seu conforto, abandonar o que era seu para dar, para dar aos pobres? Os sermões do padre provocavam-lhe enfado, desprezo, não se revia naquela "esperança num mundo melhor" (49). A sua caridade era da esmola regular. Não era uma palavra viva.  
Os retratos de família, ostentados na casa antiga, consagravam o poder aquela gente, dignificavam o seu rosto no tempo. Era uma tradição que promovia a autoridade. Porém, um certo familiar separava-se daquela aura familiar. "O primo Pedro tinha a sensibilidade certa como a sensibilidade dum artista, tinha a inteligência dum inventor e o espírito de justiça dum revolucionário. Mas em toda a sua vida nada fizera" (53), o que o tornara num pária, num falhado, logo não podia estar naquele jantar, naquela cerimónia que tinha tão alto propósito. "Só tinha convidado gente discreta e segura, com cujo apoio, concordância e silêncio podia contar inteiramente" (54). Quase podíamos pensar que estava a constituir um governo, a elaborar a formação do seu conselho de ministros. O seu objectivo era "explicar claramente que o padre novo era um perigo para a ordem social" (55) e o melhor seria mudá-lo de paróquia. Acreditava que, com as palavras certas - ou o cheque adequado -, o Bispo aceitaria a sua pretensão. 
O Bispo também tinha um pedido a fazer ao Dono da Casa. "Pedir é uma coisa difícil. E tanto mais difícil quanto mais aquele a quem se pede é rico e poderoso. Mas a quem havia de pedir senão aos ricos e poderosos?" (55) O tecto da igreja mais bela da sua diocese estava cair. Noutros tempos, os homens poderosos mandavam erguer igrejas para salvar as suas almas e curar as maleitas dos seus corpos, porém os tempos mudaram. Os remédios de hoje deixavam em ruínas as igrejas de ontem. Sophia escreve, neste contexto, uma frase que é de uma actualidade imensa: "a doença já não igual para pobres e ricos" (56). O dinheiro compra a saúde.
O Bispo acreditava que o Dono da Casa lhe daria o dinheiro necessário para restaurar a igreja, a sua vaidade, a sua fome de fama ia enobrecer a sua virtude. Assim, o Bispo, embora contrariado, seguiu o rumo do repasto. O acaso de uma derrapagem trouxe um outro convidado à mesa. O Homem Importantíssimo juntou-se aos tribunos. É curioso, mas de facto é assim que surgem estes homens. Os homens importantíssimos aparecem sempre devido a uma derrapagem. Este homem ilustre tornou-se o centro das atenções. Bem-falante e afável, criou logo empatia, como aliás o fazem os homens importantes. É então que começa uma amena discussão. O Homem Importante começa por dizer que "este tempo (...) é um tempo de crise: estamos dominados pelo materialismo. Até nos campos, onde só devia reinar a espiritualidade ouvimos constantemente falar de problemas materiais", e continua, afirmando que "o nosso tempo só vê problemas materiais. É um tempo de revolta. Os homens não querem aceitar. Paciência e resignação são palavras que perderam o sentido" (60). Depois, passa para os padres que se vêem imbuídos desse revolta materialista, e a caridade não serve de justificação, pois em nome desse mandamento,  que, segundo o Homem Importante, pode ser interpretado de diversas formas, é possível que se caia no comunismo, veja-se os padres operários.
"O Dono da Casa gostava de estar à mesa com visitas. Nada lhe agradava mais do que dar de comer a quem não tem fome" (63) Parecia aqueles que, nas sombras do poder, se alimentam e, por excesso de fartura, já correm o risco de indigestão. O jantar termina e o Dono da Casa conduz o Homem Importante e Bispo para outra sala. Tinham negócios para fechar. O Dono da Casa dá cinquenta contos e o Homem Importante outros cinquenta. A igreja em ruínas podia agora ter um telhado. E o Padre de Varzim seria forçado a um outro caminho, afastado para uma outra aldeia. Claro está que "ninguém falou em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes" (64). É assim que os altos dignitários fazem negócios.
A segunda parte deste conto começa com a cozinheira Gertrudes a abrir a porta da cozinha a um homem. "Não o conhecia, mas nem era preciso perguntar-lhe quem era: era mais um pobre." (67) As criadas tinham ordem para lhe dar de comer, para o levar à mesa dos pobres. O homem queria falar com o Dono da Casa, todavia a cozinheira quis demovê-lo com duas afirmações lapidares: primeiro, "a esmola é ao sábado" (68) e naquele dia não era sábado; e segundo, "as coisas importantes são para as pessoas importantes" (69), logo como poderia o pobre dizer que era importante. O homem insistia, ao que o criado respondeu que um senhor não podia deixar as suas visitas para vir falar com um mendigo, disse "tenha paciência, não pode ser. O mundo é como é. Temos que ter paciência" (70). É como aqueles senhores, titulares de cargos públicos, que nunca podem falar, nem ouvir as pessoas comuns, as suas conversas são reservadas a pessoas importantes.
A casa estava envolta numa tempestade, chuva, relâmpagos e trovões atemorizavam as criadas. O céu falava. A escuridão fechou o espaço e uma criança assustada, filho do Dono da Casa, acabou por ficar em frente do homem que lhe disse vinha da parte do Padre de Varzim. A criança foi contar ao pai, que não quis descer do alto da sala até aos confins da cozinha. João contou ao homem a decisão do Dono da Casa. Os dois despediram-se e o homem saiu. O mendigo não tocara na comida tão caridosamente disposta na mesa dos pobres, e, à semelhança de Deus, rejeitou as ofertas de Caim.
A terceira e última parte do conto traz o maravilhoso a esta narrativa. O Bispo deixa a casa do Dono da Casa e entra no seu automóvel. No meio do caminho, encontrou um mendigo na estrada e o Bispo decidiu levá-lo. Perguntou-lhe para onde ia, a que o mendigo respondeu que ia para casa do Padre de Varzim.  Olhou para o homem, coberto de lama, e viu que "nas mãos havia um gesto de paciência. Um gesto muito antigo de paciência. E de repente pareceu ao velho Bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento, toda a solidão, o olhavam de frente no rosto daquele homem. Coisa difícil de olhar de frente" (80). O Bispo disse que a distância era longa e estrada estava cheia de lama, sugerindo que passasse a noite na sua casa. O homem não respondeu e quando o Bispo ergueu o rosto, o mendigo desaparecera. Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. Por fim, o Bispo iluminou-se com o reconhecimento, sabia agora quem era aquele homem. As palavras, abafadas pelo silêncio, concluíram: "aquilo que eu fiz tem de ser desfeito" (81). O Bispo voltou à Casa Grande, afim de falar com o Dono da Casa e de lhe comunicar que queria desfazer o negócio fechado. Deus viera testemunhar em favor de um homem injustamente acusado e o Bispo foi voz desse testemunho. O Dono da Casa duvidou, não quis acreditar, "estava fechado na certeza dos seus direitos" (82).
O Bispo apresentou, em síntese, o que concluíra: "o padre de Varzim não foi só acusado. Foi também vendido. Vendido pelo telhado de uma igreja. Da Igreja da Senhora da Esperança" (83). O Dono da Casa respondeu, dizendo que "não houve nenhuma venda. Dei uma esmola e fiz, de acordo com a minha consciência, um pedido" (83). O Bispo "estava a trair as regras do jogo" (83) e Dono da Casa não suportava aquela atitude e apenas refreou a sua cólera porque a sua reputação e fama eram mais importantes. Depois, decidiu chamar o outro contribuinte, o Homem Importante. Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. O Homem Importante desaparecera e com ele o seu cheque. Todos procuravam o papel, mas nada, não havia sinal do cheque. A criada Júlia conclui que "talvez o diabo o tenha levado" (86). A cozinheira Gertrudes perguntou quem era esse homem e o criado respondeu que "parece que entrou o demónio nesta casa" (86).
O conto termina com frase de Gertrudes: "nos tempos que correm (...) já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se quem puder" (87). Pega num pano e limpa as pegadas do mendigo.

Sophia de Mello Breyner Andresen oferece-nos, pela letra da sua palavra, um conto que viaja no tempo, entra no Estado Novo, passa no Pós 25 de Abril e repousa nos dias de hoje, quando os pobres perdem a esperança e os ricos asseguram os seus "direitos". "O Jantar do Bispo" é um texto actual. Leia-se.

Sophia de Mello Breyner Andresen

"O Jantar do Bispo", pp. 43-87.

Contos Exemplares

Figueirinhas

2006