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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Logos e Revelação - O Enigma de Heraclito

Turner, Joseph Mallord William, The Angel Standing in the Sun, 1846.
Londres: Tate Gallery.


  O processo de cair em si ou a consciência de que somos um enigma constitui o primeiro momento de todo o acto filosófico, de todo o acto criativo. O enigma surge como um desafio. A sua presença suspende o curso da vida. É portanto necessário sobreviver ao enigma, pois a passagem pelo enigma indica e inicia uma outra vida, uma outra consciência. Ora essa sobrevivência depende do discernimento e da acção. O enigma apresenta-se como a origem de uma inquietude, ou seja, resume todas as disposições afectivas numa só e a partir dela perturba a realidade anterior. A inquietação torna-se assim a plena consciência do enigma e dos limites que ele impõe. O enigma suspende o mundo enquanto extensão do eu e anula o próprio eu até se alcançar a sua revelação. O Logos é para Heraclito a revelação do enigma, ele é o princípio unificador e o portador da candeia do sentido. 

  Antero de Quental (308-9, vv. 1-4), num soneto intitulado "Logos", expressa a mesma ideia que observamos em Heraclito: 
                                       Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
                                       E, o que é mais, dentro de mim - que me rodeias
                                       Com um nimbo de afectos e de ideias,
                                       Que são o meu princípio, meio e fim…
Estes versos, logo quando dizem "Tu, que não vejo, e estás ao pé de mim", indicam a impossibilidade dos sentidos apreenderem o Logos. Essa determinação aponta para o fragmento do Efésio: "Más testemunhas são para os seres humanos os olhos e os ouvidos, se tiverem almas que não compreendam a sua linguagem" (DK 22 B 107). A linguagem, o Logos, torna-se assim a cifra e a chave do enigma. Por outro lado, Antero de Quental, ao dizer "estás ao pé de mim" e "me rodeias", demonstra a presença suprasensorial do Logos. Este está presente em todas as coisas, é o seu "princípio, meio e fim". 

  A ideia de presença universal surge também quando Heraclito diz que "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, estende-se a toda realidade e participa dela enquanto elemento activo, pois todas as coisas existem de acordo com o seus ditames (DK 22 B 1). Contudo, a maioria não segue esse Logos que é comum, prefere, por seu lado, uma sabedoria particular, que, na verdade, não é sabedoria alguma, porque a sabedoria não pode ser particular. A sabedoria tem de ser sempre uma experiência da totalidade.

  O soneto refere ainda "E, o que é mais, dentro de mim", ou seja, o Logos existe no humano. Heraclito afirma algo idêntico quando diz que "À alma corresponde um Logos que cresce por si só." (DK 22 B 115). Porém, convém referir que este Logo não existe apenas na alma, ele cresce, logo opera de forma dinâmica e estabelece um processo criativo. Na alma, o Logos tem a possibilidade de se auto-superar, de "crescer por si só". Bruno Snell comenta este fragmento da seguinte maneira: "Seja qual for o significado peculiar que tal frase possa ter, Heraclito atribui aqui à alma um logos que pode, a partir de si mesmo, estender-se e crescer. Por conseguinte, considera-se a alma como ponto de partida para determinados desenvolvimentos, ao passo que não teria sentido atribuir ao olho ou à mão um logos, que a si mesmo se amplia" (Snell: 44). 

  O Logos, enquanto revelação do enigma, não o anula, mas estende-se sim como uma síntese dos planos antropológico, cosmológico e teológico. O humano preserva em si essa qualidade essencial de enigma, pois o desenvolvimento do Logos, enquanto revelação constante do enigma, existe em si. Contudo, por mais que cresça, "Perante a divindade, o homem é considerado infantil, tal como a criança face ao homem" (DK 22 B 79; Cf. Fränkel: 214-28). O humano não pode superar os limites que lhe foram determinados, o seu valor sapiencial é nulo face à divindade, pois "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus" (DK 22 B 32). Jaeger diz que "Heraclito é o primeiro pensador que não deseja conhecer apenas a verdade, visto que sustem também que este conhecimento renovará a vida dos homens. Na sua imagem dos que estão acordados e dos que estão a dormir deixa ver o que espera do seu logos. Não tem nenhum desejo de ser outro Prometeu, ensinando aos homens novos e más engenhosos os métodos para alcançar os fins últimos; mas espera torná-los capazes de dirigir as suas vidas totalmente despertos e conscientes do logos segundo o qual ocorrem todas as coisas" (Jaeger: 115). 

  A filosofia de Heraclito não é meramente cosmológica, a sua grande finalidade é antropológica, a sua preocupação é o humano, daí que diga "Tentei decifrar-me a mim mesmo" (DK 22 B 101). O Filósofo Obscuro assume-se como um enigma e, por extensão, prolonga essa qualidade de enigma a toda a humanidade. A alma carece assim de uma revelação. O plano divino permanece eterno, uno e indiferente à realidade humana, daí que Heraclito diga que "A natureza humana (ethos) não possui nenhum instrumento para se conhecer, mas a divina possui" (DK 22 B 78). Ao ser humano, falta-lhe a chave para ultrapassar o portão fechado do enigma, visto que, uma vez colocado o enigma, é impossível virar-lhe as costas. Nietzsche expressa essa via de sentido único quando diz: "Segues o teu caminho para a grandeza: aqui ninguém deve seguir-te furtivamente! O teu próprio pé apagou o caminho atrás de ti, e sobre ele está escrito: 'Impossibilidade' " (Nietzsche 5: 176). Édipo escolheu o seu caminho. Era-lhe impossível voltar as costas à esfinge, pois a sua vida dependia da resolução do enigma.

  Em Nietzsche, o enigma oculta-se nas imagens de Apolo e revela-se no êxtase de Diónysos, daí que diga: "É a vós, que buscais, que tentais com ousadia, e a quem alguma vez embarcou com ardilosas velas em mares terríveis, é a vós, ébrios de enigmas, rejubilantes com o lusco-fusco, cuja alma é atraída ao som das flautas para todos os abismos labirínticos, pois não quereis seguir o fio, tacteando-o com mão timorata, e detestais deduzir, quando podeis adivinhar, é unicamente a vós que eu conto o enigma que vi - a visão do mais solitário" (Nietzsche 5: 179). O enigma existe num plano que não é dedutivo, mas sim intuitivo, senão mesmo instintivo. Apolo cria "os abismos labirínticos" e Diónysos, a atracção pelo "som das flautas", que eleva a alma à visão do enigma e a sua revelação. É nesse sentido que afirma que "Temos aqui diante dos nossos olhos, numa suprema simbologia artística, aquele mundo apolíneo de beleza e o seu subsolo, a terrível sabedoria de Sileno, e entendemos por intuição a sua mútua necessidade" (Nietzsche 1: 39).

  O enigma é terrível, pois é ele que inicia a experiência da queda, o cair em si, esse choque inicial de toda a pulsão criativa. O dom de criar é assustador, pois provém do assombro que é a totalidade, do absoluto que o humano rejeita. Nessa estrada de muitos caminhos, a escolha torna-se imperativa. Porém, a sabedoria do enigma é mediada pela intuição e, segundo Nietzsche, Heraclito alcançou-a na perfeição: "O dom real de Heraclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efectiva em conceitos e combinações lógicas" (Nietzsche 6: 40). Ora é com base no princípio de representação intuitiva que Heraclito diz: "O saber de muitas coisas não ensina a intuição. Se assim fosse teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, e também Xenófanes e Hecateu" (DK 22 B 40; Cf. Mansfield: 442-48). O saber deve ser orientado para um fim e não se deve dispersar, senão a intuição não é alcançada. Não se chega ao Logos, que está presente em todas as coisas, sem uma visão teleológica de totalidade, daí que Heraclito afirme que "É mais necessário extinguir a desmedida que um incêndio" (DK 22 B 43). A não aceitação dos limites e a sua transgressão implica a prática de um crime, que deve ser severamente castigado. As Erínias hão-de perseguir os infractores, obrigando-os a pagar com a sua própria vida. Esse é o preço de seguir a outra via, pois, sem a visão de totalidade, é tudo destruição e morte.

  É a consciência dos limites que permite a apreensão do enigma e da sua revelação. No entanto, para ser a humano, o conhecimento dos limites implica o conhecimento da finitide e da morte, o que, tendo em conta a sua arrogância, a sua predisposição para ignorância e a sua incapacidade de acolher o dom do nascimento, não é fácil de alcançar. Nesse mesmo sentido, Heraclito diz que "É difícil combater contra a paixão; o que ela quiser, está disposta a pagá-lo com a alma" (DK 22 B 85). A alma descontrolada que se deixa mergulhar no sonho e na paixão enche-se de vapores húmidos e torna-se molhada e, segundo o Efésio, "A alma seca é mais sábia e melhor" (DK 22 B 118), pois o ar está mais próximo de se tornar fogo do que a água e é o fogo sempre vivo que governa todas as coisas. Encontramos assim em Heraclito a primeira doutrina dos elementos, não numa concepção cosmológica, mas sim como fundamento de uma teoria da alma e como modelo de sabedoria.

  Giorgio Colli afirma que "o enigma é a manifestação na palavra daquilo que é divino, oculto, uma interioridade indizível" (Colli: 49). Heraclito revela isso mesmo no célebre fragmento: "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 40; Cf. Nietzsche 7: 203-5; Hölscher: 229-30). A palavra sugerida, qual canto oracular, possui um carácter demiúrgico, um valor de passagem entre o humano e o divino. Neste sentido, a sugestão torna-se superior à revelação, pois esta define e indica o fim, a outra abre caminhos, desbrava as florestas ignotas. Existe também na sugestão um sentido didáctico, uma vez que, na maior parte dos casos, o ser humano é incapaz de compreender o alcance da revelação, desse Logos comum, mas desconhecido, e assim a única solução é sugerir essa realidade, é indicar os sinais, as luzes que guiam na sombra. 

  O fragmento "Tentei decifrar-me a mim mesmo" não constitui um solipsismo radical. Heraclito não rejeita o mundo, mas nega a compreensão que a maioria julga ter. O filósofo não deixa de brincar com as crianças no templo de Ártemis (Diógenes Laércio: IX, 3; Marco Aurélio: VI, 42), pois existe na infância a mesma simplicidade e reconhecimento do Deus que joga aos dados. Nietzsche diz que o "«Conhece-te a ti mesmo», é toda a ciência - Só depois de conhecer todas as coisas o homem se conhecerá. Pois as coisas são simplesmente as fronteiras do homem." (Nietzsche 8: 44, §48). Heraclito tentou conhecer essas fronteiras, esse limiar que separe e une o cume e o abismo. A doutrina do Logos, a noção de harmonia e de guerra e a concepção de uma divindade una que assimila todos os contrários são a prova desse esforço gnoseológico. Em Heraclito, tudo aponta para a revelação do enigma.

  O Logos é o elemento central no pensamento de Heraclito, daí que Guthrie diga que "Heraclito acredita primeiro e acima de tudo no Logos" (Guthrie: 419). Existe portanto uma universalidade do Logos, todavia o Logos, sendo acessível a todos, mas não é partilhado por todos. Nietzsche afirma que "Nós veneramos tudo o que é tranquilo, frio, nobre, longínquo, passado, tudo aquilo cujo aspecto não obrigue a alma a defender-se e guarnecer-se, tudo aquilo a que se pode falar; sem elevar a voz." (Nietzsche 4: 109). A visão do Logos é sublime, ela traz paz à alma, pois é o seu "princípio, meio e fim". A alma não se defende dele porque ele é o seu motor, nela ele cresce por si só. Já Aristóteles defende, pelo contrário, que "Para Heraclito o princípio consiste na própria alma, em virtude de ela ser aquela emanação quente pela qual todos seres são criados. Trata-se, por conseguinte, de uma realidade incorpórea e em mutação contínua: conhece-se o movimento consoante mais se movimenta, sendo sua opinião (e também a de muitos outros) a circunstância de todos os seres se encontrarem em movimento" (De Anima, 405 a 25-30). Porém, não compreende que este movimento da alma é regulado por um princípio único e universal, o Logos.

  O estilo oracular de Heraclito não é um mero artifício de linguagem, mas sim uma metodologia do Logos, uma imagem sibilina da revelação do enigma. Nesse sentido, Nietzsche diz que "Nos escritos de um eremita nota-se sempre também algo do eco do deserto, algo do ciciar e do tímido olhar da solidão; das suas palavras mais fortes, mesmo do seu grito, ressoa ainda uma espécie nova e mais perigosa de silêncio, de mutismo. Quem esteve sentado durante anos, dia e noite, só com a sua alma em discussões e diálogos íntimos, quem na sua caverna - seja ela um labirinto ou uma mina de ouro - se tornou um urso ou um pesquisador ou guarda de tesouros, um dragão: as suas ideias acabam por adquirir um tom de meia-luz, um odor de profundidade e de decomposição, algo de incomunicável e de repugnante que lança um bafo frio aos que passam" (Nietzsche 3: 213, §289). Existe portanto uma impossibilidade hermenêutica de compreensão dos escritos de um eremita. Foi face a esse limite de interpretação que Heraclito colocou o seu livro no templo de Ártemis. Os seus escritos estavam ao alcance de todos, mas só os eleitos, os iniciados na sabedoria do Logos, os podiam ler. O elitismo de Heraclito resulta assim do valor do enigma e do sentido da sua revelação.

  Heraclito compreendeu que a maioria, o vulgo, era incapaz de compreender a verdade, pois estava preso à sua sabedoria particular, à incoerência das suas verdades, das suas opiniões. A ignorância parte sempre do particular, daquela negação individual, e só se torna colectiva quando, por vontade, o pensamento deixa de ser uma harmonia concordante e se torna uma comum discórdia. Nietzsche aponta para esse caminho quando afirma que "O filósofo grego atravessava a existência com o sentimento secreto de que havia muito mais escravos do que se pensava: quem quer que não fosse filósofo, era escravo do seu ponto de vista" (Nietzsche 2: 53, §18). No entanto, se não existisse uma esperança de que alguns seriam capazes de ler o seu livro, Heraclito teria-o destruído, mas ele não o fez, deixou-o à mercê da interpretação, daqueles que o procurassem.

  Heraclito não era apenas um filósofo, era um poeta, com a necessidade e o dever de cantar a Verdade. Aos seus olhos, tudo era nítido, não existia nem dúvida, nem hesitação, pois, como diz Dodds, "o poeta não pede para ser 'possuído', mas apenas para servir de intérprete para a Musa possuída." (Dodds, 82). Heraclito foi sobretudo um intérprete do Logos e é ele que o afirma: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). O Efésio surge com uma voz oracular que não é sua, mas sim do Logos. Nietzsche compreendeu na perfeição o valor da revelação de Heraclito, a obra a que ele se propunha, e expressa-o através de Zaratustra. O respeito por este filósofo é tão grande que o leva a afirmar que "o mundo precisa eternamente da verdade, precisa, portanto, eternamente de Heraclito: embora ele não precise do mundo." (Nietzsche 6: 55). 

  Heraclito decifrou-se a ele mesmo como um enigma e atingiu a revelação máxima do ser humano, do mundo e de deus. Foi essa transformação, aquela que estabelece a passagem entre o enigma e a revelação, que o tornou, não um filósofo, mas sim um sábio. O pensamento do Obscuro é o enigma, a sabedoria que, embora não ouvida, persiste como verdade e caminho.


Bibliografia

Antero - Quental, Antero de, "Logos" in Poesia Completa 1842-1891, Org. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

Aristóteles (De Anima) - Aristóteles, Da Alma (De Anima), Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2001.

Colli - Colli, Giorgio, O Nascimento da Filosofia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d.

Diógenes Laércio - Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.

DoddsDodds, E. R., The Greeks and the Irrational. Berkeley and Los Angeles and London: University of California Press, 1951.

Fränkel - Fränkel, Hermann, "A Thought Pattern in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical EssaysOrg. Alexander P. D. Mourelatos. Princeton: Princeton University Press, 1993, pp. 214-228.

Guthrie - Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, Vol. I. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.

Heraclito (DK 22 B)Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Hölscher - Hölscher, Uvo, "Paradox, Simile and Gnomic Utterance in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical EssaysOrg. Alexander P. D. Mourelatos. Princeton: Princeton University Press, 1993, pp. 229-238.

Jaeger - Jaeger, Werner, La Teologia de los Primeros Filosofos Griegos, Trad. José Gaos. México, Madrid, Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica; 1982. 

Mansfield - Mansfield, Jaap, Studies in the Historiography of Greek PhilosophyAssen/Maastricht: Van Gorcum & Comp. B.V., 1990.

Marco Aurélio - Marco Aurélio, Pensamentos, Trad. João Maia. Lisboa: Relógio D'Água, 1995.

Nietzsche 1 - Nietzsche, Friedrich, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Friedrich, Gaia Ciência, 2a. Edição. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores; 1977.

Nietzsche 3 - Nietzsche, Friedrich, Para Além do Bem e do Mal, Trad. Hermann Peluger; Lisboa: Guimarães Editores; 1978; p. 213 (§289).

Nietzsche 4 - Nietzsche, Friedrich, Genealogia da Moral, Trad. Carlos José de Meneses. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.

Nietzsche 5 - Nietzsche, Friedrich, Assim Falava Zaratustra - Um Livro para Todos e Ninguém. Tradução Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D' Água, 1998.

Nietzsche 6 - Nietzsche, Friedrich, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Nietzsche 7 - Nietzsche, Friedrich, Considerações Intempestivas, Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p. 203-205.

Nietzsche 8 - Nietzsche, Friedrich, Aurora, Trad. Rui Magalhães. Porto: Rés Editora Lda., 1977, p. 44 (§48).

SnellSnell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

O Lugar das Bacantes entre o Apolíneo e o Dionisíaco

Poussin, Nicolas, Bacanal, 1625-26.
Madrid: Museu do Prado.

   Nietszche desenvolveu uma cosmovisão a partir do elemento dionisíaco e da sua oposição ao elemento apolíneo. Segundo Colli, partiu " das imagens de dois deuses gregos, Dioniso e Apolo, e mediante o aprofundamento estético e metafísico dos conceitos de 'dionisíaco' e 'apolíneo ' delineia primeiramente uma doutrina da emergência e da decadência da tragédia grega, em seguida uma interpretação global da cultura grega, e até uma nova visão do mundo." (Colli: 14). Esta conflito entre Apolo e Diónysos firma-se em três intenções: denunciar o estado de decadência a que chegou a tragédia grega, promover uma interpretação global da cultura grega e criar uma nova concepção do mundo. Ora é nessa continuidade que as personagens de Eurípides se incluem: Diónysos está para o dionisíaco como Penteu está para o apolíneo.

  No Nascimento da Tragédia, o filósofo afirma que "Muito teremos ganho para a ciência estética se houvermos chegado, não apenas à perspiciência lógica, mas à certeza imediata da intuição segundo a qual a evolução da arte se encontra ligada à duplicidade do elemento apolíneo e do elemento dionisíaco: de modo semelhante àquele como a geração depende da dualidade dos sexos, em luta permanente e reconciliação apenas periódica" (Nietzsche 1: 23). Concluímos portanto que é determinante para a "ciência estética" chegar à intuição que toda a arte evolui a partir dos elementos apolíneo e dionisíaco, os quais mantêm-se em permanente oposição, tal como o macho e a fêmea. O valor desta oposição encontra-se, por exemplo, em Heraclito, um filósofo de eleição de Nietzsche, sobretudo quando diz que "Pólemos é o pai de todas as coisas e de todas elas é soberano, a uns apresenta-os como deuses, a outros, como homens, a uns torna-os escravos, a outros, homens livres" (DK 22 b 53) e que "É necessário saber que a guerra (Pólemos) é comum, e a justiça é discórdia e que tudo acontece segundo a discórdia e a necessidade" (DK 22 b 80). Pólemos é assim uma condição necessária para a manutenção da ordem, pois a sua ausência implicaria a anulação de toda a realidade, daí que Nietzsche valorize a oposição estabelecida entre Apolo e Diónysos, pois a sua não-existência conduziria à extinção da própria arte. Segundo esta discórdia criadora, a guerra torna-se assim a origem da arte.

  Nietzsche começa por dizer: "principiemos por pensá-los como sendo os mundos artísticos separados do sonho e do êxtase" (Nietzsche 1: 23), atribuindo assim o sonho a Apolo e o êxtase a Diónysos. "A bela aparência dos mundos do sonho, em cuja produção cada ser humano é um pleno artista, constitui o pressuposto de todas as artes plásticas e também, como veremos, de uma metade importante da poesia" (Nietzsche 1: 24), afirma ele, daí que Colli diga que "Segundo Nietzsche, Apolo é o símbolo do mundo como aparência, de acordo com o conceito schopenhaueriano de representação" (Colli: 16). O domínio de Apolo é a aparência, pois este é a "consciência que cura e ajuda no sono e no sonho" (Nietzsche 1: 26). O sonho, bem como a imaginação, resumem o prazer que é próprio da aparência e que dela depende. Porém, o terror causado pela desorientação face ao conhecimento da complexidade da existência e dos seus fenómenos, juntamente com o quebrar do principium individuationis, que nos conduz ao lado mais íntimo do ser humano, faz com que nos aproximemos do elemento dionisíaco. O carácter de Diónysos apresenta-se como uma analogia do êxtase (Nietzsche 1: 27). Desta forma, o elemento dionisíaco é uma forma de superação do terror a que o elemento apolíneo conduziu, daí que Nietzsche diga que "Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro: também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano" (Nietzsche 1: 27-8). O elemento apolíneo divide e mostra a realidade na sua diversidade, na sua multiplicidade, o que é próprio da aparência. Já o elemento dionisíaco une o que outro separou, une o homem à natureza, une o que Apolo afastou.

  Esta relação entre os dois elementos contrários pode ser esclarecida por Heraclito, quando diz que "As coisas em conjunto são o todo e o não-todo, algo que se reúne e se separa, que está em consonância e em dissonância; da totalidade, a unidade e da unidade, a totalidade" (DK 22 b 10). A alternância que se estabelece entre as duas naturezas primordiais permite que um seja a origem da multiplicidade e o outro, da unidade. Através do elemento dionisíaco, o homem liberta-se, "Agora o escravo é um homem livre, quebram-se agora todas as limitações rígidas e hostis que a necessidade, arbitrariedade ou uma 'moda insolente' estabeleceram entre os seres humanos" (Nietzsche 1: 28). Apolo expressa o rigor de Nómos e Diónysos, a liberdade de Phýsis, logo "O ser humano já não é o artista, tornou-se a obra de arte: o poder artístico da natureza inteira, para a satisfação voluptuosa do Uno originário, revela-se aqui sob os arrepios do êxtase." (Nietzsche 1: 28). No entanto, Nietzsche também diz que existe "um monstruoso abismo que separa o grego dionisíaco do bárbaro dionisíaco", pois neste último "o centro dessas festas residia num deboche sexual exagerado, cujas ondas transbordavam por sobre todo o mundo da família e os seus respeitáveis estatutos; precisamente as instâncias mais bestialmente selvagens da natureza eram aqui libertas, até se atingir aquela repugnante mistura de volúpia e crueldade que sempre pareceu ser a verdadeira 'poção mágica'" (Nietzsche 1: 30-1). De facto, o culto dionisíaco assumiu diferentes formas e passou por várias transformações, todavia a sua introdução na Grécia não é tão tardia como pensava Nietzsche e Rohde.

  Para Nietzsche, Apolo expressava-se através da arte dórica que se desenvolvia em torno de um grande esforço imagético, de um desejo de criação de imagens. Essa arte era escutada no som da cítara, que se oponha ao vigor da música dionisíaca. Nesse sentido, diz que "No ditirambo dionisíaco, o ser humano é incitado a uma intensificação extrema de todas as capacidades simbólicas; algo nunca sentido manifesta urgência em ser exprimido, a destruição do véu de Maya, a unicidade como génio da espécie e mesmo da natureza" (Nietzsche 1: 32). Arquíloco é, segundo ele, um poeta dionisíaco e Homero um poeta apolíneo. O primeiro, como poeta lírico, procura "unir-se totalmente com o Uno primordial, com a sua dor e conflito" (Nietzsche 1: 44) e reproduz esse "Uno primordial" através da música, a qual já é uma "repetição do mundo", uma "segunda reprodução" (Nietzsche 1: 44), ou seja, une o elemento dionisíaco ao elemento apolíneo, une o êxtase ao sonho.

  É importante distinguir, como Nietzsche faz no Crepúsculo dos Ídolos, que "A embriaguez apolínea excita sobretudo o olho, de modo que ele obtém a força da visão. O pintor, o escultor e o épico são visionários par excellence. No estado dionisíaco, pelo contrário, é todo o sistema emocional que é excitado e intensificado, de maneira que, com um só golpe" (Nietzsche 2: 75-6). Enquanto o elemento apolíneo estimula a visão, o elemento dionisíaco estimula todo o sistema emocional, permitindo que este chegue aos limites da sua própria expressão. Esta extensão do elemento dionisíaco torna-se evidente quando afirma que "O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, ficava aqui submerso no esquecimento de si próprio, inerente aos estádios dionisíacos, e esquecia as normas apolíneas. O excesso desvendava-se como sendo a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores falava de si a partir do coração da natureza. E assim, em todos os lugares onde penetrava o elemento dionisíaco, o elemento apolíneo era suprimido e destruído" (Nietzsche 1: 41). É devido a essa natureza que, nas Bacantes, Diónysos tem uma acção tão destruidora, mas para isso temos de considerar Penteu e todos os outros o que a ele se opuseram como paradigmas da cultura apolínea. No entanto, em última instância, não podemos considerá-los dessa forma, uma vez eles representam também a decadência da cultura apolínea. Lembremos pois que "Apolo não podia viver sem Dioniso!" (Nietzsche 1: 40). Esta tensão tem um carácter de finalidade e propósito. O  racionalismo moral de Penteu renuncia Diónysos, mas a sua franqueza é tal que ele não resiste à divindade, pois "o deus Dioniso é demasiado poderoso; o mais inteligente dos seus adversários - como Penteu nas Bacantes - é por ele enfeitiçado sem o saber, correndo depois sob esse feitiço ao encontro do seu destino fatal" (Nietzsche 1: 88). Desta forma, e defendendo o seu próprio pensamento, Nietzsche diz que "Também Eurípides era, num certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava através dele não era Dioniso, nem tão-pouco Apolo, mas um demónio recém-nascido chamado Sócrates" (Nietzsche 1: 89). Penteu não é mais que um socrático falsamente disfarçado de apolíneo, o seu moralismo não provém de Delfos, mas sim de uma época e cultura que, segundo Nietzsche, está em decadência, que já não é nem ctónica, nem olímpica. 

   É forçoso concluir-se que "Tendo chegado portanto ao ponto de reconhecer que Eurípides não conseguiu de maneira alguma fundamentar o drama apenas no elemento apolíneo e que, pelo contrário, a sua tendência não dionisíaca se desviou para um domínio naturalista e não artístico, poderemos agora aproximar-nos da essência do socratismo estético, cuja lei suprema diz mais ou menos o seguinte: 'Tudo tem de ser inteligível para ser belo', como sentença paralela à lei socrática, segundo a qual 'só é virtuoso quem sabe'" (Nietzsche 1: 91). Eurípides repeliu o elemento dionisíaco e tentou sustentar-se no carácter apolíneo, todavia, segundo Nietzsche, o que conseguiu foi uma interpretação errónea dos desígnios de Apolo, tendo acabado por cair na decadência do socratismo. Ao anular a oposição que se estabelecia entre os dois irmãos, anulou toda a criação artística, deixando a arte limitada à estética socrática. Em suma, podemos afirmar que Penteu é a máscara do próprio Eurípides. Na trama das Bacantes, ele é Penteu, é ele que luta contra Diónysos, é ele que no fim sai derrotado. É o deus que vence e Eurípides sabia disso, daí que no fim da sua vida tentasse redimir-se e abraçar Diónysos e o dionisíaco.



Bibliografia:

Bacantes - Eurípides, Bacantes. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Edições 70, 2011.

Colli - Colli, Giorgio, O Nascimento da Filosofia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d.

DK - Diels, Hermann e Walter Kranz (Ed.), Die Fragmente der Vorsokratikers, 15ª Edição, 1971. A Tradução dos três fragmentos apresentados é da responsabilidade do autor.

Nietzsche 1 - Nietzsche, O Nascimento da Tragédia. Tradução Helga Hoock Quadrado. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos ou Como se Filosofa com o Martelo. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona:Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Unidade e Multiplicidade em Heraclito e Nietzsche

Ender, Johann, Das Trevas, a Luz, 1831.
Budapeste: Academia Húngara das Ciências.


  O problema da relação entre a unidade e a multiplicidade é, no questionamento filosófico, primordial e fundamental, uma vez que a sua síntese constitui a génese do cosmos, resume a variedade de coisas existentes num princípio único que as reúne e que lhes confere sentido. Em Heraclito e em Nietzsche, este problema constitui uma gradação que ora é crescente, ora decrescente, ou seja, unidade, dualidade, multiplicidade e o seu movimento inverso. A diversidade das coisas existentes resume-se numa oposição entre dois princípios em conflito, que se sintetizam na expressão última e una da realidade. No entanto, estes três planos não se apresentam sobre uma estrutura hierárquica, eles cruzam-se num único plano que é o real, só o modo como a eles se acede é que diverge. Para a multiplicidade e para dualidade, o acesso dá-se pelos sentidos, pela experiência, enquanto a apreensão da unidade pressupõe um esforço intuitivo, daí que Heraclito diga: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). Desta forma, o sentido que ele expressa ultrapassa-o, vai para além do particular. O Logos que deve ser ouvido é a expressão última do cosmos, que diz que todas as coisas são uma e que indica a existência de uma unidade subjacente à multiplicidade das coisas. Ora, a partir deste fragmento, conclui-se que, no plano do real, a unidade e a multiplicidade coexistem devido à natureza do Logos, enquanto princípio unificador.

   É o Logos que permite que se compreenda a relação entre unidade, dualidade e multiplicidade. Heraclito indica essa compreensão quando diz "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar, do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, ele confere unidade, pois, embora a maioria não o consiga apreender, ele está presente em todas as coisas. Charles Kahn interpreta este fragmento da seguinte forma: "Em suma, o logos é 'comum' por que ele é (ou expressa) a estrutura que caracteriza todas as coisas, é portanto do domínio público e, por princípio, está disponível a todos os homens" (Kahn: 101). Ou, como diz Bruno Snell, "Uma segunda qualidade do logos em Heraclito é que ele é um koinón, algo de «comum», isto é, penetra tudo, de modo que tudo participa dele. Este espírito está em todas as coisas" (Snell: 43).

   Em Heraclito, a unidade é expressa também pelo facto dos contrários serem duas expressões de uma mesma coisa, sendo, no entanto, próprio da sua natureza manterem-se em oposição e luta constante. Este aspecto leva Heraclito a dizer que "O deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome, muda, tal como o fogo, quando é  misturado com incenso e designado conforme o seu aroma" (DK 22 B 67), bem como "Pólemos é o pai de todas as coisas e de todas elas é soberano, a uns apresenta-os como deuses, a outros como homens, a uns fá-los escravos, a outros homens livres" (DK 22 B 53). O primeiro fragmento mostra a relação entre unidade e dualidade. O deus é um conjunto de contrários, unidos em si mesmo, ou seja, dia e noite expressam as duas possibilidades de um dia, inverno e verão as duas faces do ano, a guerra e a paz as duas formas de estar da humanidade, a saciedade e a fome os dois estados do apetite. Em suma, é um único aspecto que exprime os contrários, respectivamente o dia, o ano, a humanidade e o apetite, e o deus é todos eles. A outra parte do fragmento introduz a alternância dos contrários e o devir, uma vez que compara o deus ao fogo, que, quando misturado com incenso, muda de nome conforme a fragrância do incenso. O segundo fragmento afirma o carácter universal de Pólemos, dizendo que este é o pai e soberano de todas as coisas, ou seja, a guerra, a discórdia, é a matriz da realidade. A guerra é também uma forma de alternância que apresenta uns como deuses, outros como homens, uns faz escravos, outros homens livres.

   O Efésio afirma que "É necessário saber que a guerra (Pólemos) é comum, e a justiça (Dikê) é discórdia (Éris), e que tudo acontece segundo a discórdia e a necessidade" (DK 22 B 80). Este fragmento pode ser dividido em três partes: na primeira, concluímos que a guerra é comum, está presente em todas as coisas, tal como o Logos; na segunda, que a justiça é discórdia, ou seja, ela surge a partir de um jogo de forças, de uma luta entre aspectos consonantes e dissonantes; e, na terceira, que tudo acontece segundo discórdia e necessidade, isto é, tudo resulta de um conflito entre elementos opostos e é a força da Necessidade que, como soberana, semelhante ao Logos, sobre esses elementos opera e governa. Werner Jaeger complementa esta ideia ao dizer que "Em Heraclito essa luta torna-se pura e simplesmente o 'pai de todas as coisas'. A dike só aparece na luta. (…) Aparecem em toda a natureza a abundância e a penúria, causas da guerra. Toda a natureza está repleta de violentos contrastes: o dia e a noite, o verão e o inverno, a guerra e a paz, a vida e a morte sucedem-se em eterna mudança. Todas as oposições da vida cósmica se transformam continuamente umas nas outras e reciprocamente se apagam os prejuízos que causam, para prosseguir com a imagem do processo jurídico. Todo o processo do mundo é uma troca (amoibê). A morte de uma vida é sempre a vida de outra. É eterno o caminho, ascendente e descendente" (Jaeger: 227). Esta é quiçá uma proposta de interpretação para o enigmático fragmento: "Imortais mortais, mortais imortais, que vivem a morte deles e morrem a sua vida" (DK 22 B 62). Nesta explicação de Jaeger, podemos encontrar dois aspectos complementares: por um lado, o valor atribuído a uma Justiça natural, que regula a acção dos opostos e a sua eterna luta, mas que só existe devido a existência deste conflito; e, por outro, a ideia que "Todo o processo do mundo é uma troca", troca esta que expressa a alternância dos contrários, a vitória de um é derrota do outro, todavia a vitória é efémera e quem estava hoje a perder amanhã será o vencedor.

   Nietzsche segue o caminho iniciado por Heraclito quando  diz que "Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põe termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna"(Nietzsche 5: 42). Logo, mais uma vez, toda a mudança tem a sua génese nessa alternância dos opostos e cuja dinâmica  primordial é expressa por uma luta constante.

   A procura de sentido na  relação entre unidade e dualidade é contnuada por Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, os dois elementos, apolíneo e dionisíaco, opostos entre em si, constituem uma forma única de arte, a tragédia ática, isto é, de dois aspectos contraditórios surge uma estrutura única, um modelo plural, mas uno. Apolo e Diónysos tornam-se, não só nos dois elementos fundamentais da tragédia, como também nos dois princípios interpretativos da realidade. Ao primeiro corresponde o sonho, ao segundo o êxtase, um fala por imagens, o outro por altas intuições. Apolo representa a aparência, sendo também o criador da fantasia (Burkert: 285-294), segundo Dante uma "alta fantasia"(Paraíso, XXXIII, 142). A fantasia representa o carácter radical da poesia, da grande poesia. A afinidade entre Apolo e as Musas exemplifica esse ethos radical da fantasia e da poesia enquanto expressão da vida. Por outro lado, ao deus de Delfos, pertence também o principium individuationis, princípio este que possibilita toda a particularização e nascimento da individualidade. Já Diónysos representa o que está por detrás da aparência, ele promove o êxtase, a embriaguez, o entusiasmo de viver (Burkert: 318-328 e Rohde: 303-327). Ao deus que faz as Ménades dançar, pertence a superação do indivíduo, daí que Nietzsche diga que "Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro, também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano"(Nietzsche 1: 27-28). Face a esta expressão de êxtase, "Agora, no Evangelho da harmonia dos mundos, cada um sente-se não apenas unido, reconciliado, fundido com o seu próximo, mas como um ser único, como se o véu de Maya estivesse rasgado e já só esvoaçasse em farrapos perante o misterioso Uno primordial" (Nietzsche 1: 28).

   Gianni Vattimo interpreta este aspecto da seguinte maneira: "Esta relação entre apolíneo e dionisíaco é acima de tudo uma relação de forças no interior de cada homem, que no início da obra Nietzsche compara com os estados de sonho(o apolíneo) e da embriaguez (o dionisíaco); e que funciona no desenvolvimento da civilização como a dualidade dos sexos na conservação da espécie. Toda a cultura humana é fruto do jogo dialéctico destas duas pulsões (Triebe)"(Vattimo: 18). Neste aspecto, bem como em outros, o pensamento de Nietzsche revela uma grande simpatia pela filosofia de Heraclito, pois também entre estes elementos nietzschianos existe um luta, um Pólemos que, à semelhança dos opostos do Efésio, é também origem e fonte da civilização, da cultura, e, em especial, da arte. É através deste conflito que se atinge o fundo primordial das coisas, que se esconde por detrás do véu da aparência. Esse elemento oculto é como o Logos que, embora seja visível, não é visto por todos. A unidade esconde-se por detrás da multiplicidade, daí que Heraclito diga: "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). O apolíneo e o dionisíaco escondem o "misterioso Uno primordial". Um revela-o por sugestão e o outro, através do êxtase, por comunicação directa e intuitiva. Heraclito refere esse poder de sugestão de Apolo quando diz que "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 93). Este é um deus que fala por sinais, por imagens.

   No prólogo à Gaia Ciência, Nietzsche dedica a Heraclito um conjunto de versos, que intitula de Heraclitismo: "Toda a felicidade da terra/ Está na luta, amigos!/ Sim, para nos tornarmos amigos/ É necessário o fumo da poeira!/ Os amigos só são unos em três casos:/ Serem irmãos diante da miséria,/ Serem iguais diante do inimigo,/ Serem livres… diante da morte!" (Nietzsche 2: 25). A luta é, nestes versos,  o valor por excelência, pois é mediante a sua acção que se garante a felicidade terrena e a amizade, todavia, essa unidade que é a guerra está também presente na miséria, na união face ao inimigo e na morte. Apesar desta concórdia entre a filosofia de Heraclito e de Nietzsche, Gilles Deleuze salienta a inovação nietzschiana: "O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido; tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzschiana, ou a terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser, o múltiplo ao Uno(…). Pelo contrário, afirma-se a necessidade do acaso. Dioniso é jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um objecto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso; desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o lançamento dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno. Retornar é precisamente o ser do devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso"(Deleuze: 30). Porém, Heraclito não deixa de estar presente, uma vez que é essa ideia de jogo que é indicada no fragmento: "A vida é uma criança a brincar, movendo as peças do jogo: nele a criança é soberana" (DK 22 B 52). Por outro lado, esta ideia de união do uno do múltiplo, de um expressar o outro, de um ser a expressão fragmentada do outro é indicada pelo filósofo grego quando este afirma que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10).

   Deleuze introduz também a "terceira figura" do jogo: o eterno retorno. Sobre esta ideia, Nietzsche, no Ecce Homo, diz o seguinte: "A doutrina do «eterno retorno», ou seja, de um ciclo repetido, incondicionado e eterno, esta doutrina de Zaratustra poderia talvez já ter sido ensinada por Heraclito. Pelo menos a Stoa, que herdou de Heraclito quase todas as suas ideias, apresenta sinais dela" (Nietzsche 3: 102). Nietzsche admite a hipótese de esta ideia já ter sido afirmada por Heraclito. João Vila-Chã salienta um outro aspecto importante acerca do «eterno retorno», quando diz que "Podemos dizer, finalmente, ser o eterno retorno para Nietzsche uma realidade eminentemente selectiva, e isso numa dupla dimensão. Em primeiro lugar, porque constitui lei constitutiva da autonomia da vontade que se quer ver livre da moral: tudo aquilo que se quer deve ser querido de maneira a que com esse mesmo querer se queira também o seu eterno retorno. Por outro lado, a ideia de eterno retorno significa aqui também ser selectivo, já que, na realidade, apenas retorna aquilo que pode ser afirmado, ou que, por outras palavras, pode ser causa de alegria no ser. Tudo o que é negativo, tudo quanto deve ser negado, é simplesmente expulso pelo movimento do eterno retorno" (Vila-Chã: 23-24). O Eterno Retorno apresenta-se como uma filosofia da vontade e uma afirmação da vida. No Crepúsculo dos Ídolos, continua essa ideia ao afirmar: "O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade - eis o que eu chamo dionisíaco, eis o que adivinhei como a ponte para psicologia do poeta trágico"(Nietzsche 4: 119). A filosofia de Nietzsche é ela mesma um jogo de forças e de oposições, Pólemos é o pai, é a génese do seu pensamento, a semente que, com uma falsa harmonia de opostos, ilude e esconde. Heraclito é, no seu aspecto mais antigo, o pai espiritual de Nietzsche, tal como Schopenhauer é o seu pai moderno.

   Em suma, tanto em Nietzsche como em Heraclito, a unidade e a multiplicidade não estão separadas hierarquicamente, elas fundem-se no mesmo plano. A unidade expressa-se na oposição, na guerra dos contrários, tal como a multiplicidade esconde a unidade. O valor do pensamento destes dois filósofos reside numa explícita afirmação da vida e na recusa de uma metafísica inimiga da vida e das suas pulsões inaugurais.



Bibliografia:

Burkert - Burkert, Walter, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Tradução Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1993.

Dante - Dante, Divina Comédia, 5ª Edição. Tradução Vasco Graça Moura. Venda Nova, Bertrand Editora, 2000.

Deleuze - Deleuze, Gilles, Nietzsche e a Filosofia, 2ª Edição. Tradução António M. Magalhães. Lisboa: Rés Editora, 2001.

Kahn - Kahn, Charles H., The Art and Thought of Heraclitus - An Edition of the Fragments with Translation and Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995(1986).

Nietzsche 1 - Nietzsche, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Gaia Ciência, 2a. Edição. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores; 1977.

Nietzsche 3 - Nietzsche, Ecce Homo. Tradução José Marinho. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1952.

Nietzsche 4 - Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos ou Como se Filosofa com o Martelo. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

Nietzsche 5 - Nietzsche, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873). Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona: Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

Vattimo - Vattimo, Gianni, Introdução a Nietzsche. Tradução António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1990

Vila-Chã - Vila-Chã, João J., "Friedrich Nietzsche (1844-1900): Considerando Alguns Efeitos" in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVII, Fascículo 1, 2001, pp.3-28.