quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O Sacrifício do Dependurado

O Dependurado
Tarot Rider-Waite


O Dependurado é o repouso, o regresso ao silêncio inaugural, que confere gravidade ao fim de um ciclo.

O Dependurado é a expressão humana que conduz ao entendimento de que a queda é apenas a procura do centro. 

O Dependurado é aquele que entrega o medo de não ser quem julga que é ao sacrifício da sua própria vontade. 

O Dependurado é a tensão da solitude, o conflito interno de encontrar o lugar do humano entre a natureza e o divino. 

O Dependurado é a humana certeza, do ser espiritual, na derradeira finalidade da fé, na contemplativa esperança.

O Dependurado é aquele que, no verdadeiro caminho, não avança, nem recua, não age, nem reage, mas eleva-se, levita. 

O Dependurado é a síntese humana do ser zodiacal, a revelação do espectro solar e a acção da luz sobre a alma.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Sermão do Amor que Deus é

David, Gerard, O Casamento em Caná, c.1500.
Paris: Museu do Louvre.



o mè agathôn ouk égnô tòn theón, 
hóti o theòs agápê estín.

Primeira Epístola de São João, 4, 8.



  Deus é Amor e aquele que ama, para amar verdadeiramente, terá de destruir o muro alto que torna o outro em morte. A destruição que a morte produz é sempre esse outro que avança, sem rosto, até nós. Porém, se, como um dilúvio, transbordares para além de ti o Amor que Deus é, a morte deixa de existir. O Amor que Deus é vive permanentemente. 

  Não te deixes enganar e julgues que transbordar o Amor que Deus é se afirma como coisa fácil, pois não o é. Transbordar de Amor implica ir para além de ti próprio e, despojado, avançar pela força do Amor que Deus é para o reino que a morte governa. A cada passo que deres, nessa alameda amorosa, perderás uma parte de ti, não o lugar Deus habita, mas sim a superfície de todas as vaidades, as camadas profundas de ignorância, erro e ilusão. 

  Por vezes, existem passos que são dolorosos, onde caminharás, descalço, sobre pedras aguçadas, pois não queres perder aquilo que julgas que é teu. Como tens tantas superfícies vãs sobre a pele da tua alma, não sabes que aquilo que é verdadeiramente teu é tão pouco, que é o que basta. 

  Aquele pequeno lume, aquela chama que, escondida, ocultas entre as tuas mãos, guardada no abismo da tua existência, é tudo aquilo que és. Esse pequeno lume, pela força do Amor que Deus é, pode conflagrar o universo e consumir tudo o que permanece apartado, fechado na confusão das coisas. 

  O Amor que Deus é está em ti como uma estrela no firmamento. Tu és a tua própria constelação. E, com a liberdade que emana da Providência, poderás escolher a ilusão daquilo que pensas que és ou diluíres-te na imensidão do Amor que Deus é. Na verdade, aquilo que julgas que é uma escolha não passa de uma afirmação da vontade, não daquela que move as paixões e a ignorância, mas sim aquela que é uma e a mesma.

  A Vontade de Deus é também a tua vontade, mas para compreenderes esse mistério terás de te despir de todas as vaidades, da ilusão que alimenta a tua identidade, e avançar como um recém-nascido na senda do Nada, da anulação da ignorância. Quando compreenderes que o mal é apenas a força confusa da ignorância, poderás imergir na vastidão da Vontade, da Sabedoria e do Amor. Essa Trindade surge à humanidade como Pai, Mãe e Filho.

  O Amor que Deus é revela-se como um dos três caminhos, aquele que surge da síntese da Vontade e da Sabedoria e que conduz ao Divino Indeterminado, o Deus que não pode ser nem palavra, nem pensamento. Somente no Nada conhecerás a totalidade de Deus. Essa é a verdade que tanto vezes negas. Sê portanto o Amor que Deus é.


RMdF
04/09/2018

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Ekpyrosis da Alma (Poesia)


Cossiers, Jan, Prometheus Carrying Fire, 1637. 
Madrid: Museo del Prado.

Ekpyrosis da Alma



Se brilha a alma
Não sejas lume
Brando e manso


Sê o incêndio
Que conflagra
Terra e gente
De ignorância
Contaminada


Sê o fogo cósmico
Que cria e consome
Que nasce e renasce


Sê o abismo
E a montanha
A paz e a guerra


Sê água e fogo
Dilúvio imenso
Incêndio universal


RMdF 04/09/2018

A Sabedoria não tem Idade (Poesia)

Watteau, Jean-Antoine, A Dança, 1716-18.
Berlim: Staatliche Museen.

A Sabedoria não tem Idade

Vetusta criança 
Que antes de ser
Já de si o era
Que nos lábios
Colheu o passado
A secura do Letes

Doce pueril anciã 
Que do fio tecido
A memória guardou
E sem aquela sombra 
Da morte escura
Ou da vida olvidada
Todo o tempo velou

Venerável petiz
Por não ter anos
Mas sim idades
De ceifar a hora
Eleita e certa
Tornou-se a alma
Prudente e sábia
Negada e simples

Prístina menina
Que ao dançar
Muito recordas
De outras eras
Outras danças
Quando foste
Menina mãe
Viúva Trindade
Como o tempo


RMdF 03/09/2018

sábado, 22 de setembro de 2018

A Luz que o Eremita guarda

O Eremita
Tarot Rider-Waite


O Eremita é aquele que resume em si a gestação do espírito e que multiplica, na consciência, o mistério da Trindade.

O Eremita é a candeia da sabedoria, ignorada e rejeitada, e a voz do exílio que, na solidão, contempla a hora de ressurgir. 

O Eremita é aquele que guarda a chama sob o manto como se fosse a síntese da realidade, a inteligência que impera sobre as coisas.

O Eremita é o mestre dos sonhos e peregrino da imaginação que,  despojado, só com a força interior, oferece uma estrela à escuridão. 

O Eremita é aquele que transforma o som das gentes e o desespero da multidão no silêncio da alma e na paz do espírito.

O Eremita é um louco renascido, um caminhante que seguirá a via da noite, guiado pela luz Lua.

O Eremita é aquele que é um pastor da verdade sem rebanho e um senhor da vontade que é poder, pois ao amar domina a Sabedoria.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O Fado do Velho Príamo (Poesia)

Ivanov, Alexander, Príamo a pedir a devolução do Corpo de Heitor, 1824.
Moscovo: Galeria Tretyakov.

O Fado do Velho Príamo

Despojado de si
Crente em Apolo
Indiferente e ledo
Segue suplicante
De Tróia o rei Príamo

Roga ao meio deus
O corpo do filho morto
Ao belicoso carrasco
Implora o recto juízo 
Clama só a justa morte

Na noite da negra Nyx
Espera sem sorte ou arte
Uma prudente luz
Da luminar razão 
E sem nada almejar
Além da morte certa
Suplica a benevolência
De um cruel algoz

Áquiles surpreso decide
Sem puder recusar
Dar o corpo morto
Aos lúgubres lumes
Nem sempre a espada
Move a ilustre coragem
E pode a superna alma
Ter força de falange

Príamo o suplicante
Fez de glória vã
A vitória de Aquiles
E deu ao morto Heitor
A sombra da dignidade

E na noite avançou
Como vazio vulto 
Para a morte próxima
Pras perdidas ruínas 
Da sua nobre cidade

Assim seguiu despojado
De Tróia o rei Príamo

Assim pela morte vai
E à morte regressa

18/08/2018 RMdF

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Desenhar o Corpo Humano (Poesia)

Da Vinci, Leonardo, Estudo das Mãos, c. 1474.
Windsor: Royal Library.
Desenhar o Corpo Humano

Não nem lápis ou carvão
Nem pincel ou pigmento
Nem martelo ou cinzel
Virgem a tela despida
Frio o mármore casto
E apenas com o aparo
E aquele fluído índigo
Se cria a forma informe
Sugerida por símbolos
E conformados sinais
Com traços de alfabeto
E sombras de metáfora
Seguindo sós e textuantes
Esses sulcos de tinta
Na folha alba plantados
Sem rosto ou corpo
Da mão poética gerado
O desenho do corpo humano

08/07/2018 RMdF