sexta-feira, 30 de março de 2018

A Roda da Fortuna ou o Fuso da Necessidade

A Roda da Fortuna
Tarot Rider-Waite

A Roda da Fortuna é o símbolo régio do poder que não promove a sorte, mas sim a justa medida da necessidade.

A Roda da Fortuna é a imagem da máxima do Efésio que diz que o carácter do ser humano é o seu destino.

A Roda da Fortuna é a revelação do enigma do tempo que reúne num e no mesmo o caminho a subir e a descer.

A Roda da Fortuna é o círculo da evolução que, girando no fuso da necessidade, determina a queda e a salvação.

A Roda da Fortuna é a representação de um processo natural no qual a divindade e a natureza se unem num só sentido.

A Roda da Fortuna é o conhecimento da realidade que decreta que a evolução da alma é também um processo de selecção.

A Roda da Fortuna é o símbolo de tudo o que diz e esconde, do que sugere e oculta, é o Eterno Feminino que nos atrai ao centro.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Para uma Introdução à Obra Astrológica de Ibn Ezra



     Abraham ben Meir ibn Ezra foi um rabi e um sábio que terá nascido por volta de 1089, em Tuleda, e vivido uma parte da sua vida na Espanha Árabe. Nesse período, pôde receber a herança da Idade de Ouro Muçulmana, a qual teve como símbolo máximo a Casa da Sabedoria de Bagdade. Ibn Ezra viveu até cerca dos seus cinquenta anos sobretudo da poesia e da sua facilidade em estabelecer relações pluriculturais. Porém, deixou Espanha antes de se iniciar  a perseguição aos judeus, em 1149, pelo novo regime político Almóada. A partir desse momento, teve uma vida itinerante. Ora é nesse período que produziu a sua obra astrológica, a par da exegese e comentário do Pentateuco e das obras de gramática e poesia. Da obra poética, temos de destacar Tikun Leil Tet Be' Av Kinah, cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal, tendo pertencido a António Ribeiro dos Santos e anteriormente a Frei Manuel do Cenáculo. Das noventa e seis elegias que constam no manuscrito, a última dedica-se à Tomada de Lisboa, em 1147, por Afonso Henriques. 

     Em termos filosóficos, que aliás serviram a sua obra astrológica, a universalidade de Ibn Ezra foi um dos principais eixos do seu pensamento, permitindo-lhe a conciliação entre tradição hebraica, árabe e cristã, sem que isso comprometesse a sua religiosidade. Ibn Ezra, embora tenho sido colocado por alguns como antecessor de Maimónides na tradição aristotélica judaica, a maioria tende a defini-lo como neoplatónico. Em alguns dos seus livros, encontramos uma influência pitagórica. Contudo, a sua obra não inclui textos estritamente filosóficos. As obras que se podem considerar mais filosóficas são duas composições poéticas, a primeira das quais uma alegoria: Hayy ben Meqitz e Arugat ha-Bosem. Porém, é na obra Yesod Mora que encontramos uma noção inovadora no pensamento teológico de Ibn Ezra: a salvação é um processo individual e não dependente da eleição de um povo. O individualismo escatológico de Ibn Ezra serve na só o seu pensamento transcultural, mas também o seu sistema astrológico. É esse aspecto que o leva defender que a prática astrológica é concordante com a vontade de Deus.

     A vida itinerante de Ibn Ezra levou-o à Terra Santa, ao Norte África, nomeadamente ao Egipto, a Roma, Lucca, Mântua, Verona, ao Sul de França, Narbonne e Béziers, no Norte, a Rouen, a Inglaterra, Londres e Oxford e, no fim da sua vida, de volta a Espanha, a Calahorra, na fronteira entre Navarra e a Catalunha. Foi nessas viagens que produziu a sua obra, em particular, a sua obra astrológica que foi concluída em Béziers, em 1148. Ora é devido à sua vida de sábio errante que nos chegaram vários manuscritos. A sua obra astrológica constituiria um conjunto enciclopédico que serviria de súmula de toda a arte. Desta forma, as nove obras que constituem o corpus astrologicum seriam entregues a pedido e daí existirem várias versões da mesma obra, tanto em hebraico como em latim. Essas obras foram traduzidas, destacando-se as traduções em francês antigo. 

     Ibn Ezra tinha como proposta astrológica a recuperação do sistema astronómico e astrológico de Ptolomeu. De facto, o Almagesto e o Tetrabiblos são como um espelho de fundo nos seus textos, todavia, em Ibn Ezra não temos um acesso directo a esses textos (sobre a recepção do Tetrabiblos leia-se os parágrafos iniciais do Comentário de Acerca dos Signos Masculinos e Femininos segundo Ptolomeu). A doutrina astrológica chega a ele por via da astrologia árabe, em especial, através dos textos de Abū Ma'shar e de Al Bīrūnī. Nos textos de Ibn Ezra, pelo facto de não enunciar a precedência de muitas das suas afirmações, sendo até uma parte significativa excertos de obras não assinaladas, não é fácil concluir o alcance das suas leituras. Por outro lado, devido à finalidade dos textos, Ibn Ezra opta por formulações sintéticas. A grande excepção é a relação entre Sefer Reshit Hokhmah e Sefer ha Te'amim, pois o primeiro serve de introdução e o segundo de justificação.

     A obra astrológica de Ibn Ezra é constituída por nove livros, oito dos quais formariam uma enciclopédia, a qual tinha por propósito cobrir todas os temas e segmentos astrológicos da época:
  • Sefer Mishpetei ha-Mazzalot (Livro dos Julgamentos dos Signos do Zodíaco) - Este é o único livro que não foi redigido com os restantes, precedendo-os na ordem do tempo. É uma introdução à astrologia, contudo apresenta-se de um modo menos sistemático que Reshid Hokhmah. A justificação pode dever-se ao facto ou de Ibn Ezra ter incluído interpolações ou por um erro dos copistas. No entanto, aborda alguns temas que não são tratados em Reshid Hokhmah, como, por exemplo, a Trutina Hermetis e a Distribuição dos Planetas pelos Meses de Gestação. E lista também outros de forma mais completa, como os Regentes dos Decanatos, os Regentes dos Termos e seus graus respectivos e as Triplicidades por Segmento Diurno e Nocturno. Desenvolve também a Melothesia que é mais sintética em Reshid Hokhmah.
  • Sefer Reshit Hokhmah (Livro do Princípio da Sabedoria) - Existem duas versões. É também uma introdução à astrologia, que, juntamente com o texto anterior, foi especialmente influenciada pelo Kitāb al-mudkhal al-Kabīr de Abū Ma'shar. Dedica-se a temas comuns a Mishpetei ha-Mazzalot como os Signos, os Planetas, os Aspectos, os Quadrantes e as Casa. Existem outros temas que desenvolve de forma mais exaustiva como as Constelações, as Dignidades Planetárias, as Partes, a Dodecatemoria e as Nove Partes. Por fim, aborda alguns temas que não são  tratados em Mishpetei ha-Mazzalot como a Paranetellonta, a Natureza dos Signos enquanto Ascendentes, as Estrelas Fixas e a Divisão dos Graus de acordo com a sua Natureza.
  • Sefer ha-Te'amim (Livro das Razões) - Existem duas versões. Este livro formaria um conjunto com Reshit Hokhmah, pois é uma explicitação dos aspectos enunciados no anterior, dividindo-se também em dez capítulos. No entanto, este apresenta um quadro justificativo de alguns temas abordados em Mishpetei ha-Mazzalot. A noção de razão relativa ou referente tem aqui um alcance maior que a mera continuação de Reshit Hokhmah. Te'amim começa com uma descrição do universo, das constelações, dos signos na oitava esfera, da posição e órbita dos planetas e da natureza física das estrelas fixas e dos planetas. As temáticas seguintes são semelhantes às de Mishpetei ha-Mazzalot e de Reshit Hokhmah, embora inclua alguns temas sobre as natividades, tais o Ascendente, o Hyl'eg e as Revoluções. Contudo, o capítulo décimo destaca-se ao incluir as técnicas para o cálculo dos aspectos, das direcções e das casas mundanas, bem como a análise dos períodos astrológicos, que não constam dos outros dois tratados. Convém também referir-se que ordem temática é diferente nas duas versões.
  • Sefer ha-Moladot (Livro das Natividades) - Dedica-se à astrologia natal. Existem duas versões, a segunda das quais em latim (Liber Nativitatum). Existe também um tratado intitulado Liber Nativitatibus, que aborda a mesma temática, mas pode ser um tratado hebraico perdido de Ibn Ezra ou um em que este teve uma participação activa. Este texto aguarda edição crítica, mas é citado em amiúde nas edições de Shlomo Sela (2007-2017). Ibn Ezra começa esboçando os oito pontos da debilidade da astrologia natal e, embora faça a sua defesa, coloca uma precedência nos julgamentos colectivos sobre os individuais. Procura também mostrar-se como pioneiro na astrologia hebraica, algo semelhante ao que fez em Sefer Keli ha-Nehoshet, a respeito do astrolábio e da sua utilidade científica. De seguida, dedicada a segunda parte do tratado à rectificação da natividade, refutando o modelo de Ptolomeu e corrigindo a Balança de Enoch ou Trutina Hermetis, que fora enunciada em Mishpetei ha-Mazzalot. A terceira parte é dedicada às natividades propriamente ditas. Por fim, a quarta parte trata das revoluções ou da horoscopia contínua. Aborda os modelos de cálculo e os seus antecedentes históricos. A sua análise é boa parte baseada no Tahāwīl sinī al-mawālī de Abū Ma'shar. Termina com uma abordagem introdutória à doutrina das eleições.
  • Sefer ha-Tequfah (Livro das Revoluções) - Aborda sobretudo as revoluções e continua muitos dos temas abordados na quarta parte de Moladot. Neste tratado, Ibn Ezra já não desvaloriza a astrologia natal, pelo contrário, tenta recuperar algum argumentário de Ptolomeu em defesa das natividades e revoluções individuais. No entanto, as técnicas provêm sobretudo da astrologia árabe. O texto inicia-se com o método e proposta de cálculo das revoluções. De seguida, avalia as posições das direcções dos regentes das casas, bem como dos signos em relação à posição natal dos planetas. Ibn Ezra dedica-se depois ao tema, que já havia sido introduzido em Moladot, dos Signos e Casas Terminais. Na verdade, este método é similar ao das Profecções. Na segunda versão de Te'amim, Ibn Ezra define casa terminal como o lugar a que a revolução chega no fim de ano, considerando que a cada mês são atribuídos dois graus e meio. Nesse mesmo sentido, um signo terminal é o signo que se alcança numa revolução, ou seja, um signo (30°) corresponde a um ano. O texto continua depois com a firdaria (al-fardār) e com a avaliação do regente do ascendente na revolução e com regente da hora. Por fim, desenvolve as revoluções do mês, semana, dia e hora, já iniciada em Moladot.
  • Sefer ha-Mivharim (Livro das Eleições) - Existem três versões deste texto, sendo, a terceira fragmentária, apesar de constituída por um fragmento longo. Trata da astrologia electiva, ou seja, a análise do tempo oportuno para determinada acção ou acontecimento, o kaíros grego. Ibn Ezra inicia o tratado com a problemática da aparente oposição entre livre arbítrio e determinismo astrológico, defendendo que o ser humano pode escapar aos desígnios das estrelas porque a sua alma foi criada num lugar superior a estas, assim, pelo recurso à inteligência, pode reduzir a sua má fortuna. Porém, no que às eleições diz respeito, Ibn Ezra reafirma algum determinismo, pois uma eleição não pode contrariar o decreto de uma natividade. Pode, contudo, minorar o seu alcance ou intensidade, ou seja, a eleição pode reduzir os desígnios das estrelas. O tratado avança depois com a exposição de dois métodos de eleição: o primeiro depende do mapa natal, colocando o lugar/casa do tema electivo como ascendente (este é um modelo similar ao que encontramos em Doroteu de Sidon ou em Vétio Valente) e o segundo, na ausência dos dados temporais do nascimento, consiste na escolha de um planeta e na procura da sua melhor posição. Ibn Ezra considera o primeiro mais preciso que o segundo. A organização do texto, que é comum a outros tratados, nomeadamente a Se'elot, segue as doze casas. Neste caso, cada capítulo apresenta as eleições que concernem a cada casa.
  • Sefer ha-Se'elot (Livro das Interrogações) - Existem três versões, sendo a terceira fragmentária. A doutrina das Interrogações trata do que hoje definimos como astrologia horária. Ora, tanto em Mivharim como em Se'elot, levanta-se, até pelas referências textuais, a questão das fontes, ou seja, quem foram os mestres Ibn Ezra em matéria de Eleições ou Interrogações. Quando se refere aos antigos ou aos cientistas egípcios, Ibn Ezra reporta-se à tradição dos textos herméticos, em particular aos se dedicam à astrologia, atribuindo a Hermes o nome de Enoch, e a Ptolomeu. Da antiguidade, em matéria de Eleições e Interrogações, as fontes de Ibn Ezra seriam sobretudo Doroteu de Sidon, especial o livro V do Carmen Astrologicum, e Ptolomeu. No entanto, Ptolomeu não explora estas temáticas no Tetrabiblos. A sua fonte seria o Centiloquium, conhecido por Ibn Ezra como Sefer ha-Peri. Esta obra é atribuída a Ptolomeu, mas é uma criação da alta idade média. Na astrologia árabe, é conhecido por Kitāb al-Tamara e acredita-se ser uma criação de Ahmad Ibn Yūsuf, que no século X fez um comentário a esta obra. As outras fontes de Ibn Ezra são Al-Kindī e Māshā-allāh, cientistas indianos, Andarzagor ibn Sādān Farruh, um cientista persa, e Sahl Ibn Bishr al-Yahūdī, de origem judaica, e Abū Ma'shar. O papel das fontes é fundamental, pois mostra como Ibn Ezra recuperou as tradições antigas e transportou-as para a Europa cristã. Se'elot segue a estrutura de Mivharim e divide as Interrogações pelas doze casas. Ibn Ezra mostra, logo no início, as suas dúvidas em relação a este método, apresentando os seus limites. Refere também que a sinceridade de quem coloca as questões limita a resposta. Porém, apesar das suas ressalvas, explana com rigor todo um leque de questões e a metodologia para se encontrar a resposta. 
  • Sefer ha-Me'orot (Livro dos Luminares) - Existem duas versões. Este é único tratado astrológico de Ibn Ezra cujo título não aponta para o seu objecto. No entanto, ao ler-se o tratado compreende-se que existe uma condição necessária entre a natureza e qualidade da luz e os estados de saúde ou doença. Ibn Ezra aborda a astrologia médica a partir da Teoria dos Dias Críticos. A principal fonte de Ibn Ezra é Galeno, que deve ter chegado até ele pela tradução de Ishaq al-'Ibādi, Kitāb' ayyām al-buhrān (Sobre os Dias Críticos), bem como a partir da tradição médica árabe, com nomes como al-Rāzī, Haly Abbas e Ibn Sīnā. Do ponto de vista astrológico, as suas fontes foram a tradição hermética, Doroteu de Sidon, que no livro V do Carmen Astrologicum alude a essa teoria, sendo este anterior a Galeno, Ptolomeu  (Pseudo), que no Centiloquium (Aforismo 60) refere a teoria e Teófilo de Edessa, que, a partir de Hermes, concilia a Melothesia e a Doutrina da Localização da Dor. Ora a Teoria dos Dias Críticos defende que os dias 7, 14, 20/21 e 27/28, desde do início da doença, podem ser dias de crises, seguindo, como é perceptível, o ciclo da Lua. Doroteu acrescenta os dias 9 e 18, pois formam trígonos. As crises, segundo a teoria, ocorreriam nas quadraturas e oposição, porém nem sempre assim, como indica o próprio Ibn Ezra. A sua justificação para algumas discrepâncias deve-se a excentricidades no movimento da Lua. Outro factor que também refere é a diferente reacção de dois pacientes com o mesmo posicionamento astrológico. Segundo Ezra, deve-se ter em consideração as nove complexões de Galeno, ou seja, a natureza do paciente. O texto de Me'orot divide-se em quatro partes. A primeira inicia-se com exposição da natureza dos luminares e da Teoria dos Dias Críticos. De seguida, elenca quatro aspectos que devem ser considerados: o Sol e Lua encontrarem-se nas suas casas, nas casas de exaltação ou nas casas de dejecção; existirem eclipses lunares ou solares; avaliar-se a posição do Sol e da Lua e posição relativa com os pontos solsticiais e equinociais; e distinguir-se a qualidade da luz lunar (crescente ou minguante) e avaliar-se se a doença se deve a um excesso ou défice de humor. Na segunda parte, apresenta-se os aspecto da Lua (conjunção, quadratura e oposição) e relação com os pontos cardeais, bem como a importância de se fazer um mapa do início da doença. Na terceira parte, são abordadas as conjunções da Lua com um planeta ou vários e com as estrelas fixas. Por fim, na quarta parte, avaliam-se as condições para se verificar a teoria proposta e procede à distinção entre doença aguda, avaliada num mês pela Lua, e doença crónica, avaliada pelo ciclo anual do Sol.
  • Sefer ha-'Olam (Livro do Mundo) - Existem duas versões. Este tratado dedica-se à astrologia mundana, ou seja, o seu objecto é o conjunto de factores políticos e sociais dignos de análise astrológica. Nesta abordagem, inclui-se também a investigação meteorológica. Em suma, a astrologia aplicada ao mundo dedica-se ao que concerne à humanidade, ao colectivo, seja a guerra ou a paz, a fome ou a abundância, a chuva ou a seca. Ibn Ezra inicia o texto com a apresentação do tema que vai ocupar quase todo o tratado: a Grande Conjunção. Parte do livro de Abū Ma'shar Kitāb al-dalālāt alā al-ittisālāt wa-qirānāt al-kawākib, na versão latina De magnis coniuctionibus, para concluir que existem cento e vinte conjunções. Ora destas, seguindo a tradição anterior, destaca a conjugação de Júpiter e Saturno, pois sendo mais pesados, são mais lentos. Logo, para Ibn Ezra, indicam os assuntos gerais, visto que os pormenores são próprios dos que são mais leves e mais rápidos. A Grande Conjunção é aquela que une Júpiter e Saturno em Carneiro, no seu início, por este ser o primeiro signo. Segundo Ibn Ezra e Abū Ma'shar, ela ocorre a cada 1000 anos. De seguida, indica como, depois de ocorrer a Grande Conjunção, esta segue a triplicidade do fogo, assim, 20 mais tarde, dá-se em Sagitário e, 20 anos depois, ocorre em Leão. Depois de Leão, 20 anos mais tarde, volta a Carneiro, mas não no mesmo grau. Ibn Ezra continua a sequência, demonstrando que repete a conjugação entre doze a treze vezes, perfazendo 240 a 260 anos. De seguida, passa para a triplicidade de Terra, para a do Ar e, por último, para a de Água para, por fim, regressar ao Fogo. De forma a avaliar este grande ciclo, Ibn Ezra recomenda que se faça um mapa para a Revolução do Ano, ou seja, iniciando-se em Carneiro. Esta necessidade leva a que tratado avance para a discussão da Progressão dos Equinócios e da inclinação do eixo. Segundo Ibn Ezra, Ptolomeu afirma que deve estar entre os 23°45' e os 23°51', mas para Hiparco está a 23°51' e para Abū Mansūr e Al-Zarquālī está a 23°33'. Recomenda também que, para a precisão da Revolução do Ano, se deve considerar os eclipses, de modo a chegar ao cálculo exacto do ascendente. O tratado dedica -se, de seguida, a um conjunto de recomendações de análise, tanto para a Grande Conjunção como para todo o mapa da Revolução do Ano (movimento directo ou retrógrado, posição face à latitude, regentes, etc). Neste ponto, Ibn Ezra segue as propostas de análise de Ptolomeu, incluindo o Centiloquium, de Doroteu, de Enoch (Hermes), de Abū Ma'shar e Māshā'allāh. Este último diz, por exemplo, que se Saturno estiver  em oposição ou conjunção a Marte ou se o regente do signo estiver combusto, trará um grande mal para a nação em causa, ou seja, a que é regida pelo signo onde se encontra. O cálculo e a análise das nações seguem os dados (listas) de Enoch (Hermes), de Al-Kindī e de Abū Ma'shar, onde, por exemplo, Carneiro e Júpiter regem as terras do Iraque e o reino da Pérsia e Jerusalém estão no grau 6 de Capricórnio. De seguida, o tratado avalia, a partir das 28 Mansões da Lua, as condições astrológicas para a chuva e para a seca. E termina com as recomendações de Al-Andruzgar para análise da Revolução do Ano. 
     A importância de Ibn Ezra para a astrologia não assenta tanto em estruturas conceptuais por si criadas, mas sim na sistematização, também ela criativa, das tradições astrológicas da Antiguidade, de Bizâncio, do mundo árabe, judaico e cristão. Ibn Ezra foi sobretudo um importante modelo de passagem, tal como foi, por exemplo, Teófilo de Edessa na ligação entre a astrologia antiga e a astrologia árabe. Ibn Ezra morreu por volta de 1161 e deixou-nos um conjunto de tratados que são uma referência incontornável para qualquer astrólogo.


Bibliografia

Langermann, T., 2016, "Abraham Ibn Ezra", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
<https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/ibn-ezra/>. (Acedido em 15/02/2018).

Levy, R., 1927, The Astrological Works of Abraham Ibn Ezra - A literary and linguistic study with special reference to the Old French translation of Hagin. The Johns Hopkins University Press. Paris: Presses Universitaire de France.

Sela, S., 2007, Abraham Ibn Ezra: The Book of Reasons - A Parallel Hebrew-English Crirical Edition of the Two Versions of the Text. Leiden and Boston: Brill.  
 - - 2010, The Book of the world - A Parallel Hebrew-English Critical Edition of the Two Versions of the Text. Leiden and Boston: Brill.
 - - 2011, Abraham Ibn Ezra on Elections, Interrogations, and Medical Astrology - A Parallel Hebrew-English Critical Edition of the Book of Elections (3 Versions), the Book of Interrogations (3 Versions), and the Book of the Luminaries. Leiden and Boston: Brill.
 - - 2013, Abraham Ibn Ezra on Nativities and Continuous Horoscopy - A Parallel Hebrew-English Critical Edition of the Book of Nativities and the Book of Revolution. Leiden and Boston: Brill.
 - - 2017, Abraham Ibn Ezra’s Introductions to Astrology - A Parallel Hebrew-English Critical Edition of the Book of the Beginning of Wisdom and the Book of the Judgments of the Zodiacal Signs. Leiden and Boston: Brill

Smithuis, R., 2006, "Abraham Ibn Ezra's Astrological Works in Hebrew and Latin: New Discoveries and Exhaustive Listing" in Aleph: Historical Studies in Science and Judaism, Volume 6, 2006, pp. 239-338. Published by Indiana University Press DOI: 10.1353/ale.2006.0007

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O Espírito que move a Força

A Força
Tarot Rider-Waite


A Força é aquele elemento natural que transcende a própria natureza, iluminando-a, conferindo-lhe um carácter que fixa a sua justa medida.

A Força é o espírito que coloca o olhar da vontade nos sentidos da percepção, pois somente o espírito deve reger a vontade.

A Força é aquele olhar que se firma no mundo e bifurcado se transforma, sendo ora instinto e ilusão, ora uma revolução da vontade.

A Força é o movimento, e não o princípio, que se estabelece entre os opostos e se torna tanto conflito e tensão como harmonia e união.

A Força é aquele ritmo que vive no tempo, podendo ser instante ou eternidade, e que, quando consciente de si mesmo, se apresenta como poder.

A Força é o poder que sem força se torna poderoso, ou seja, é a vontade de poder que, abnegada, medeia a consciência e a manifestação.

A Força é aquela energia que anima a vida e renova o viver, é a fertilidade do espírito e o progresso da consciência, é o regresso do Feminino.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

As Órbitas de Júpiter e Saturno e os Ciclos de Vida



  As órbitas de Júpiter e de Saturno, tanto na astrologia tradicional como na astrologia moderna ou contemporânea, são porventura as que melhor definem o ser humano e os seus ciclos de vida, pois numa análise do tempo são aquelas que melhor se relacionam com a extensão da vida. As órbitas de Mercúrio, de Vénus e Marte determinam mais o quotidiano que os ciclos de vida e as órbitas de Úrano, de Neptuno e Plutão apontam para uma análise que ultrapassa os limites de uma vida, sendo portanto mais relevantes para uma astrologia aplicada à história que a uma astrologia individual. Porém, estes planetas contribuem de forma parcelar para ideia de ciclos de vida.

  Úrano completa o seu retorno em cerca de 84 anos. Dessa forma, teremos uma oposição de Úrano aos 42 anos, um sextil aos 14 e aos 70, uma quadratura aos 21 e aos 63 e um trígono aos 28 e aos 56. Nos casos de Neptuno e de Plutão, já não consideramos um ciclo completo, mas sim alguns segmentos da sua órbita. No caso de Neptuno, podemos avaliar um sextil aos 27 anos, uma quadratura, aos 41, um trígono, aos 54 e uma oposição, aos 82. Já Plutão apresenta um sextil, aos 41, uma quadratura, aos 62 e um trígono, aos 82. Naturalmente, o aumento da esperança média de vida leva a que, por vezes, tenha de se ampliar a escala de tempo avaliada. De fora, fica a Lua e o Sol, pois o seu movimento, real e aparente, traduz, mais que um ciclo de vida, uma condição de possibilidade para a própria vida, daí que sejam designados como luminares. O Sol e a Lua, na relação entre o tempo e a vida, representam a medida e o valor da luz e é dessa forma que devem ser estudados. 

  O espaço e o tempo são as categorias expressas por Júpiter e Saturno e pelas suas órbitas. A posição relativa destes planetas no sistema solar aponta para esse carácter intermédio ou demiúrgico. Existe assim um valor de passagem nestes dois astros, pois indicam o espaço e o tempo que medeiam os dois segmentos: aquele constituído por Mercúrio, Vénus e Marte e aquele formado por Úrano, Neptuno e Plutão. Exclui-se a Terra, a Lua e o Sol pelas razões acima indicadas e pelo de facto de uns serem o espelho dos outros, pois Mercúrio une-se a Úrano, Vénus, a Neptuno e Marte, a Plutão. Por outro lado, a órbita de Júpiter, medida em 4.331,572 dias (11 anos, 10 meses e 10 dias), ou seja, cerca de 12 anos, e a órbita de Saturno, medida em 10.759,22 dias (29 anos, 5 meses e 14 dias), introduzem uma unidade simbólica com o Sol e a Lua.

  A relação entre o Sol e Júpiter é facilmente compreensível, tanto de forma empírica como matemática, pois se dividirmos a órbita de Júpiter pelo período sideral do Sol (365 dias, 6 horas, 9 minutos e 9,8 segundos) encontramos um número que arredondado dá 12. O doze expressa a segmentação do Sol e de Júpiter: um, em meses e o outro, em anos. Por outro lado, se dividirmos a órbita de Saturno pelo período sinódico da Lua (29,530589 dias) chegamos ao resultado de 364, um número muito próximo da unidade do ano solar. Neste caso, também se pode relacionar, de modo imediato, a órbita de Saturno, de cerca de 29 anos e 5 meses, com o movimento orbital aparente de 29,5 dias da Lua. Esta relação foi vertida na mitologia, pois Saturno (Cronos) assume um carácter ctónico, próximo do feminino e da Lua, e Júpiter (Zeus) declara sua natureza olímpica e solar. Segundo a lição de Nietzsche, Saturno e a Lua estão para dionisíaco como Júpiter e o Sol estão para apolíneo. 

  As tabelas apresentadas resumem as órbitas de Júpiter e Saturno e traduzem a sua afinidade com os ciclos de vida. No entanto, o modelo indicado representa um sistema-padrão que, por essa mesma razão, não pode contemplar algumas especificidades. A primeira resulta da divisão aritmética da órbita sem considerar a sua natureza elíptica, a qual, embora seja a real, não introduz o simbolismo do círculo que é tão caro à linguagem astrológica. A segunda, e que conduz a uma diferença quantitativa no cálculo astrológico, resulta do facto de a órbita considerada ser a sideral e não aquela que é representada na eclíptica, daí que entre o valor dos ciclos e aquele expresso pelo trânsito astrológico possa existir uma pequena discrepância. Contudo, existe uma relação dinâmica, uma representação de tempo e vida, entre a posição orbital de um astro em torno do Sol e a posição simbólica desse mesmo astro na eclíptica. 

  Devemos considerar portanto os períodos de tempo entre uma e outra como uma linguagem de vida, não apenas aquela que a biologia determina, mas sim aquela que se torna uma génese de sentido. Nem o astrólogo se pode fechar no mapa astrológico, gerado por um software, nem o astrónomo se pode cingir aos cálculos, é importante conservar um certo deslumbramento. O olhar o céu deve preservar um espanto inaugural. Por fim, as tabelas, por  se firmarem no movimento destes astros em torno do Sol, não referem os períodos de retrogradação. Estes, à semelhança das cartas invertidas no Tarot, fixam-se numa noção de perspectiva e sentido, contrário ao valor do real, mas sem que por isso percam o seu significado. Revelam a dicotomia elementar que persiste na natureza. 

  Em suma, deve-se tecer uma afinidade electiva entre os períodos de tempo resultantes da órbita destes astros e os que resultam do sistema astrológica. A esse tempo singular, expresso por ciclos de vida, atribui-se um carácter de transformação.



segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Logos e Revelação - O Enigma de Heraclito

Turner, Joseph Mallord William, The Angel Standing in the Sun, 1846.
Londres: Tate Gallery.


  O processo de cair em si ou a consciência de que somos um enigma constitui o primeiro momento de todo o acto filosófico, de todo o acto criativo. O enigma surge como um desafio. A sua presença suspende o curso da vida. É portanto necessário sobreviver ao enigma, pois a passagem pelo enigma indica e inicia uma outra vida, uma outra consciência. Ora essa sobrevivência depende do discernimento e da acção. O enigma apresenta-se como a origem de uma inquietude, ou seja, resume todas as disposições afectivas numa só e a partir dela perturba a realidade anterior. A inquietação torna-se assim a plena consciência do enigma e dos limites que ele impõe. O enigma suspende o mundo enquanto extensão do eu e anula o próprio eu até se alcançar a sua revelação. O Logos é para Heraclito a revelação do enigma, ele é o princípio unificador e o portador da candeia do sentido. 

  Antero de Quental (308-9, vv. 1-4), num soneto intitulado "Logos", expressa a mesma ideia que observamos em Heraclito: 
                                       Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
                                       E, o que é mais, dentro de mim - que me rodeias
                                       Com um nimbo de afectos e de ideias,
                                       Que são o meu princípio, meio e fim…
Estes versos, logo quando dizem "Tu, que não vejo, e estás ao pé de mim", indicam a impossibilidade dos sentidos apreenderem o Logos. Essa determinação aponta para o fragmento do Efésio: "Más testemunhas são para os seres humanos os olhos e os ouvidos, se tiverem almas que não compreendam a sua linguagem" (DK 22 B 107). A linguagem, o Logos, torna-se assim a cifra e a chave do enigma. Por outro lado, Antero de Quental, ao dizer "estás ao pé de mim" e "me rodeias", demonstra a presença suprasensorial do Logos. Este está presente em todas as coisas, é o seu "princípio, meio e fim". 

  A ideia de presença universal surge também quando Heraclito diz que "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, estende-se a toda realidade e participa dela enquanto elemento activo, pois todas as coisas existem de acordo com o seus ditames (DK 22 B 1). Contudo, a maioria não segue esse Logos que é comum, prefere, por seu lado, uma sabedoria particular, que, na verdade, não é sabedoria alguma, porque a sabedoria não pode ser particular. A sabedoria tem de ser sempre uma experiência da totalidade.

  O soneto refere ainda "E, o que é mais, dentro de mim", ou seja, o Logos existe no humano. Heraclito afirma algo idêntico quando diz que "À alma corresponde um Logos que cresce por si só." (DK 22 B 115). Porém, convém referir que este Logo não existe apenas na alma, ele cresce, logo opera de forma dinâmica e estabelece um processo criativo. Na alma, o Logos tem a possibilidade de se auto-superar, de "crescer por si só". Bruno Snell comenta este fragmento da seguinte maneira: "Seja qual for o significado peculiar que tal frase possa ter, Heraclito atribui aqui à alma um logos que pode, a partir de si mesmo, estender-se e crescer. Por conseguinte, considera-se a alma como ponto de partida para determinados desenvolvimentos, ao passo que não teria sentido atribuir ao olho ou à mão um logos, que a si mesmo se amplia" (Snell: 44). 

  O Logos, enquanto revelação do enigma, não o anula, mas estende-se sim como uma síntese dos planos antropológico, cosmológico e teológico. O humano preserva em si essa qualidade essencial de enigma, pois o desenvolvimento do Logos, enquanto revelação constante do enigma, existe em si. Contudo, por mais que cresça, "Perante a divindade, o homem é considerado infantil, tal como a criança face ao homem" (DK 22 B 79; Cf. Fränkel: 214-28). O humano não pode superar os limites que lhe foram determinados, o seu valor sapiencial é nulo face à divindade, pois "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus" (DK 22 B 32). Jaeger diz que "Heraclito é o primeiro pensador que não deseja conhecer apenas a verdade, visto que sustem também que este conhecimento renovará a vida dos homens. Na sua imagem dos que estão acordados e dos que estão a dormir deixa ver o que espera do seu logos. Não tem nenhum desejo de ser outro Prometeu, ensinando aos homens novos e más engenhosos os métodos para alcançar os fins últimos; mas espera torná-los capazes de dirigir as suas vidas totalmente despertos e conscientes do logos segundo o qual ocorrem todas as coisas" (Jaeger: 115). 

  A filosofia de Heraclito não é meramente cosmológica, a sua grande finalidade é antropológica, a sua preocupação é o humano, daí que diga "Tentei decifrar-me a mim mesmo" (DK 22 B 101). O Filósofo Obscuro assume-se como um enigma e, por extensão, prolonga essa qualidade de enigma a toda a humanidade. A alma carece assim de uma revelação. O plano divino permanece eterno, uno e indiferente à realidade humana, daí que Heraclito diga que "A natureza humana (ethos) não possui nenhum instrumento para se conhecer, mas a divina possui" (DK 22 B 78). Ao ser humano, falta-lhe a chave para ultrapassar o portão fechado do enigma, visto que, uma vez colocado o enigma, é impossível virar-lhe as costas. Nietzsche expressa essa via de sentido único quando diz: "Segues o teu caminho para a grandeza: aqui ninguém deve seguir-te furtivamente! O teu próprio pé apagou o caminho atrás de ti, e sobre ele está escrito: 'Impossibilidade' " (Nietzsche 5: 176). Édipo escolheu o seu caminho. Era-lhe impossível voltar as costas à esfinge, pois a sua vida dependia da resolução do enigma.

  Em Nietzsche, o enigma oculta-se nas imagens de Apolo e revela-se no êxtase de Diónysos, daí que diga: "É a vós, que buscais, que tentais com ousadia, e a quem alguma vez embarcou com ardilosas velas em mares terríveis, é a vós, ébrios de enigmas, rejubilantes com o lusco-fusco, cuja alma é atraída ao som das flautas para todos os abismos labirínticos, pois não quereis seguir o fio, tacteando-o com mão timorata, e detestais deduzir, quando podeis adivinhar, é unicamente a vós que eu conto o enigma que vi - a visão do mais solitário" (Nietzsche 5: 179). O enigma existe num plano que não é dedutivo, mas sim intuitivo, senão mesmo instintivo. Apolo cria "os abismos labirínticos" e Diónysos, a atracção pelo "som das flautas", que eleva a alma à visão do enigma e a sua revelação. É nesse sentido que afirma que "Temos aqui diante dos nossos olhos, numa suprema simbologia artística, aquele mundo apolíneo de beleza e o seu subsolo, a terrível sabedoria de Sileno, e entendemos por intuição a sua mútua necessidade" (Nietzsche 1: 39).

  O enigma é terrível, pois é ele que inicia a experiência da queda, o cair em si, esse choque inicial de toda a pulsão criativa. O dom de criar é assustador, pois provém do assombro que é a totalidade, do absoluto que o humano rejeita. Nessa estrada de muitos caminhos, a escolha torna-se imperativa. Porém, a sabedoria do enigma é mediada pela intuição e, segundo Nietzsche, Heraclito alcançou-a na perfeição: "O dom real de Heraclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação que se efectiva em conceitos e combinações lógicas" (Nietzsche 6: 40). Ora é com base no princípio de representação intuitiva que Heraclito diz: "O saber de muitas coisas não ensina a intuição. Se assim fosse teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, e também Xenófanes e Hecateu" (DK 22 B 40; Cf. Mansfield: 442-48). O saber deve ser orientado para um fim e não se deve dispersar, senão a intuição não é alcançada. Não se chega ao Logos, que está presente em todas as coisas, sem uma visão teleológica de totalidade, daí que Heraclito afirme que "É mais necessário extinguir a desmedida que um incêndio" (DK 22 B 43). A não aceitação dos limites e a sua transgressão implica a prática de um crime, que deve ser severamente castigado. As Erínias hão-de perseguir os infractores, obrigando-os a pagar com a sua própria vida. Esse é o preço de seguir a outra via, pois, sem a visão de totalidade, é tudo destruição e morte.

  É a consciência dos limites que permite a apreensão do enigma e da sua revelação. No entanto, para ser a humano, o conhecimento dos limites implica o conhecimento da finitide e da morte, o que, tendo em conta a sua arrogância, a sua predisposição para ignorância e a sua incapacidade de acolher o dom do nascimento, não é fácil de alcançar. Nesse mesmo sentido, Heraclito diz que "É difícil combater contra a paixão; o que ela quiser, está disposta a pagá-lo com a alma" (DK 22 B 85). A alma descontrolada que se deixa mergulhar no sonho e na paixão enche-se de vapores húmidos e torna-se molhada e, segundo o Efésio, "A alma seca é mais sábia e melhor" (DK 22 B 118), pois o ar está mais próximo de se tornar fogo do que a água e é o fogo sempre vivo que governa todas as coisas. Encontramos assim em Heraclito a primeira doutrina dos elementos, não numa concepção cosmológica, mas sim como fundamento de uma teoria da alma e como modelo de sabedoria.

  Giorgio Colli afirma que "o enigma é a manifestação na palavra daquilo que é divino, oculto, uma interioridade indizível" (Colli: 49). Heraclito revela isso mesmo no célebre fragmento: "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 40; Cf. Nietzsche 7: 203-5; Hölscher: 229-30). A palavra sugerida, qual canto oracular, possui um carácter demiúrgico, um valor de passagem entre o humano e o divino. Neste sentido, a sugestão torna-se superior à revelação, pois esta define e indica o fim, a outra abre caminhos, desbrava as florestas ignotas. Existe também na sugestão um sentido didáctico, uma vez que, na maior parte dos casos, o ser humano é incapaz de compreender o alcance da revelação, desse Logos comum, mas desconhecido, e assim a única solução é sugerir essa realidade, é indicar os sinais, as luzes que guiam na sombra. 

  O fragmento "Tentei decifrar-me a mim mesmo" não constitui um solipsismo radical. Heraclito não rejeita o mundo, mas nega a compreensão que a maioria julga ter. O filósofo não deixa de brincar com as crianças no templo de Ártemis (Diógenes Laércio: IX, 3; Marco Aurélio: VI, 42), pois existe na infância a mesma simplicidade e reconhecimento do Deus que joga aos dados. Nietzsche diz que o "«Conhece-te a ti mesmo», é toda a ciência - Só depois de conhecer todas as coisas o homem se conhecerá. Pois as coisas são simplesmente as fronteiras do homem." (Nietzsche 8: 44, §48). Heraclito tentou conhecer essas fronteiras, esse limiar que separe e une o cume e o abismo. A doutrina do Logos, a noção de harmonia e de guerra e a concepção de uma divindade una que assimila todos os contrários são a prova desse esforço gnoseológico. Em Heraclito, tudo aponta para a revelação do enigma.

  O Logos é o elemento central no pensamento de Heraclito, daí que Guthrie diga que "Heraclito acredita primeiro e acima de tudo no Logos" (Guthrie: 419). Existe portanto uma universalidade do Logos, todavia o Logos, sendo acessível a todos, mas não é partilhado por todos. Nietzsche afirma que "Nós veneramos tudo o que é tranquilo, frio, nobre, longínquo, passado, tudo aquilo cujo aspecto não obrigue a alma a defender-se e guarnecer-se, tudo aquilo a que se pode falar; sem elevar a voz." (Nietzsche 4: 109). A visão do Logos é sublime, ela traz paz à alma, pois é o seu "princípio, meio e fim". A alma não se defende dele porque ele é o seu motor, nela ele cresce por si só. Já Aristóteles defende, pelo contrário, que "Para Heraclito o princípio consiste na própria alma, em virtude de ela ser aquela emanação quente pela qual todos seres são criados. Trata-se, por conseguinte, de uma realidade incorpórea e em mutação contínua: conhece-se o movimento consoante mais se movimenta, sendo sua opinião (e também a de muitos outros) a circunstância de todos os seres se encontrarem em movimento" (De Anima, 405 a 25-30). Porém, não compreende que este movimento da alma é regulado por um princípio único e universal, o Logos.

  O estilo oracular de Heraclito não é um mero artifício de linguagem, mas sim uma metodologia do Logos, uma imagem sibilina da revelação do enigma. Nesse sentido, Nietzsche diz que "Nos escritos de um eremita nota-se sempre também algo do eco do deserto, algo do ciciar e do tímido olhar da solidão; das suas palavras mais fortes, mesmo do seu grito, ressoa ainda uma espécie nova e mais perigosa de silêncio, de mutismo. Quem esteve sentado durante anos, dia e noite, só com a sua alma em discussões e diálogos íntimos, quem na sua caverna - seja ela um labirinto ou uma mina de ouro - se tornou um urso ou um pesquisador ou guarda de tesouros, um dragão: as suas ideias acabam por adquirir um tom de meia-luz, um odor de profundidade e de decomposição, algo de incomunicável e de repugnante que lança um bafo frio aos que passam" (Nietzsche 3: 213, §289). Existe portanto uma impossibilidade hermenêutica de compreensão dos escritos de um eremita. Foi face a esse limite de interpretação que Heraclito colocou o seu livro no templo de Ártemis. Os seus escritos estavam ao alcance de todos, mas só os eleitos, os iniciados na sabedoria do Logos, os podiam ler. O elitismo de Heraclito resulta assim do valor do enigma e do sentido da sua revelação.

  Heraclito compreendeu que a maioria, o vulgo, era incapaz de compreender a verdade, pois estava preso à sua sabedoria particular, à incoerência das suas verdades, das suas opiniões. A ignorância parte sempre do particular, daquela negação individual, e só se torna colectiva quando, por vontade, o pensamento deixa de ser uma harmonia concordante e se torna uma comum discórdia. Nietzsche aponta para esse caminho quando afirma que "O filósofo grego atravessava a existência com o sentimento secreto de que havia muito mais escravos do que se pensava: quem quer que não fosse filósofo, era escravo do seu ponto de vista" (Nietzsche 2: 53, §18). No entanto, se não existisse uma esperança de que alguns seriam capazes de ler o seu livro, Heraclito teria-o destruído, mas ele não o fez, deixou-o à mercê da interpretação, daqueles que o procurassem.

  Heraclito não era apenas um filósofo, era um poeta, com a necessidade e o dever de cantar a Verdade. Aos seus olhos, tudo era nítido, não existia nem dúvida, nem hesitação, pois, como diz Dodds, "o poeta não pede para ser 'possuído', mas apenas para servir de intérprete para a Musa possuída." (Dodds, 82). Heraclito foi sobretudo um intérprete do Logos e é ele que o afirma: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). O Efésio surge com uma voz oracular que não é sua, mas sim do Logos. Nietzsche compreendeu na perfeição o valor da revelação de Heraclito, a obra a que ele se propunha, e expressa-o através de Zaratustra. O respeito por este filósofo é tão grande que o leva a afirmar que "o mundo precisa eternamente da verdade, precisa, portanto, eternamente de Heraclito: embora ele não precise do mundo." (Nietzsche 6: 55). 

  Heraclito decifrou-se a ele mesmo como um enigma e atingiu a revelação máxima do ser humano, do mundo e de deus. Foi essa transformação, aquela que estabelece a passagem entre o enigma e a revelação, que o tornou, não um filósofo, mas sim um sábio. O pensamento do Obscuro é o enigma, a sabedoria que, embora não ouvida, persiste como verdade e caminho.


Bibliografia

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Jaeger - Jaeger, Werner, La Teologia de los Primeros Filosofos Griegos, Trad. José Gaos. México, Madrid, Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica; 1982. 

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Marco Aurélio - Marco Aurélio, Pensamentos, Trad. João Maia. Lisboa: Relógio D'Água, 1995.

Nietzsche 1 - Nietzsche, Friedrich, O Nascimento da Tragédia. Tradução Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.

Nietzsche 2 - Nietzsche, Friedrich, Gaia Ciência, 2a. Edição. Tradução Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores; 1977.

Nietzsche 3 - Nietzsche, Friedrich, Para Além do Bem e do Mal, Trad. Hermann Peluger; Lisboa: Guimarães Editores; 1978; p. 213 (§289).

Nietzsche 4 - Nietzsche, Friedrich, Genealogia da Moral, Trad. Carlos José de Meneses. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.

Nietzsche 5 - Nietzsche, Friedrich, Assim Falava Zaratustra - Um Livro para Todos e Ninguém. Tradução Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D' Água, 1998.

Nietzsche 6 - Nietzsche, Friedrich, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Nietzsche 7 - Nietzsche, Friedrich, Considerações Intempestivas, Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p. 203-205.

Nietzsche 8 - Nietzsche, Friedrich, Aurora, Trad. Rui Magalhães. Porto: Rés Editora Lda., 1977, p. 44 (§48).

SnellSnell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

domingo, 24 de setembro de 2017

Entre o Rio e o Fogo - Pensar Heraclito

Tintoretto, O Pilar de Fogo, 1577-8.
Veneza: Scuola Grande di San Rocco.


   A principal tese de Heraclito, segundo Platão e Aristóteles, é que todas as coisas estão em movimento e que existe na realidade um eterno fluxo (pantha rhei), todavia a análise dos fragmentos permite que se conclua que essa tese resulta apenas de dois desses fragmentos (DK 22 B 12 e 91), os quais se apresentam de forma enigmática e, no mínimo, na acepção que lhes querem atribuir, inconclusiva. Quando Heraclito diz que "Enquanto entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles passam" (DK 22 B 12), não está a ser admitida uma doutrina de eterno fluxo das coisas, o que se está a pressupor é a passagem do tempo. Para aqueles que entram no mesmo rio, em momentos diferentes, as águas que por eles passam não são as mesmas, pois o rio não pára de correr. O tempo passa e as águas também. O rio avança porque existe no tempo e dele necessita para correr e existir. No entanto, o fluxo do rio não ameaça nem a unidade, nem a constância. Mudam as águas, mas o rio é o mesmo.

   O sentido deste fragmento pode criar uma afinidade electiva com a seguinte afirmação de Górgias: "a lei mais divina e universal: falar e calar, fazer e deixar fazer o que se deve no momento devido" (Górgias: 37, Frag. 6). É o kaíros, o momento certo, que determina a valorização da presente, a entrada inaugural nessas águas únicas. O momento é uma unidade no tempo, é passageiro e efémero, mas quando eleito é único e distinto. A mudança das águas do rio adequa-se melhor à dimensão temporal, linear e sequencial, que ao eterno devir. Por outro lado, se o fragmento for interpretado como expressão da mudança, do devir, então também não se poderá afirmar que tudo muda e nada permanece, pois a concepção heraclitiana do Logos e da união dos contrários implica um sentido de unidade. Heraclito  diz que "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo" (DK 22 B 60), ou seja, apesar do conflito (Pólemos) entre os opostos e da sua alternância, existe um princípio de identidade e harmonia entre eles que lhes confere uma unidade radical, sem que para isso se anule a oposição, a razão da existência.

   Bruno Snell apresenta uma outra interpretação para este fragmento: "Nesta imagem, não é o movimento físico da água o que se pretende sublinhar, nem a actividade de quem entra no rio, mas estão de modo idêntico englobados o homem e o mundo exterior, o sujeito e o objecto. A imagem revela a correlação activa e viva entre o movimento da água e o homem que a sente" (Snell: 278). Este sentido remete-nos para o seguinte fragmento: "As coisas que se podem ver, ouvir e conhecer por experiência, essas são as que eu prefiro" (DK 22 B 55). A interpretação de Bruno Snell conduz-nos à relação entre o humano e o mundo, à experiência como forma de conhecimento. O rio e humano interagem, unem-se na vida e permitem uma apreensão nítida, semelhante ao espelho que é a água, de que a existência tem de aceitar a passagem, o tempo que muda e que segue o seu curso.

   O outro fragmento é ainda menos conclusivo: primeiro pelo facto de ser uma paráfrase e segundo pela sua própria estrutura. O filósofo disse: "Dispersam-se e reúnem-se; juntas vêm e separadas vão; aproximam-se e afastam-se" (DK 22 B 91). O primeiro aspecto a considerar-se neste fragmento é a oposição entre união e separação, já que os seis verbos utilizados opõem-se em pares dois. Destes, três indicam o processo de união e outros três o de separação. Este fragmento, seguindo esta interpretação, poderia remeter-nos para o fragmento em que Heraclito diz que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). Este processo de união e separação torna-se assim um indicador da conciliação entre unidade e multiplicidade.

   Por outro lado, seguindo a ideia de Charles Kahn de que o fragmento 91 se assemelha mais a uma paráfrase que a uma citação (Kahn: 168), a concepção de Platão teria um outro sentido. No Crátilo, Sócrates afirma o seguinte: "Dizia Heraclito que «todas as coisas se deslocam e nada permanece» e, comparando os seres à corrente de um rio, afirma que «não se pode entrar duas vezes no mesmo rio»" (Crátilo: 402a). Ora o que parece mais provável é que o fragmento 91, tal como a passagem do Crátilo, não sejam mais que uma reformulação do fragmento anterior (12). A dificuldade de interpretação do livro de Heraclito, bem como a necessidade de Platão de se servir dele para apresentar as suas próprias teorias, levou a que a paráfrase possa não corresponder à ideia original. Logo, conclui-se que é bem provável que a fórmula de que tudo está em movimento e nada permanece não seja do próprio Heraclito, mas sim uma atribuição posterior. No entanto, a referência à mudança existe, pois a alternância dos opostos e a transformação de uns elementos em outros são formas de mudança.

   Jorge Luis Borges, no poema São os rios, faz também referência a este tema: "Somos o tempo. Somos a famosa/ parábola de Heraclito, o Obscuro./ Somos a água, não diamante duro,/ a que se perde, não a que repousa./ Somos o rio e somos esse grego/ a olhar-se no rio. A sua imagem/ muda na água do espelho entre as margens,/ no vidro que varia, fogo cego" (Borges III: 488, 1-8). Neste poema existe, por um lado, a associação entre o rio e o tempo e, por outro, a relação entre o rio e a vida humana, no sentido que as experiências passam, muitas se perdem, e a imagem que delas temos é como as águas do rio. Esta visão vai no mesmo sentido da afirmação de Cornford, quando diz que "A vida que anima o mundo é indiferente aos nossos valores humanos; estes não são mais absolutamente válidos do que a nossa aversão pela água do mar, que os peixes acham saudável, ou pela lama, onde os porcos preferem lavar-se" (Cornford: 243). Uma vez mais, o significado remete-nos o para a oposição entre os contrários e para uma certa dissonância entre a realidade e o seu valor.

   Nietzsche interpreta o devir em Heraclito dizendo que "O dever único e eterno, a inconsistência total de todo o real, que somente age e flui incessantemente, sem alguma vez ser, é, como Heraclito ensina, uma ideia terrível e atordoadora (…) Heraclito chegou a este ponto graças a uma observação do verdadeiro curso do devir e da destruição, que ele concebeu sob a forma da polaridade, como a disjunção de uma mesma força em que duas actividades qualitativamente diferentes, opostas, e que tendem de novo a unir-se" (Nietzsche: 42). Para Nietzsche, não existe uma fixação ontológica do Ser, ele não é, vai sendo, opera segundo os ditames do devir e da destruição. A dimensão do Ser na realidade é medida pelo poder da guerra. O vencedor fixa o ser e, numa nova guerra, pois esta não cessa, aquele que vencer procederá de igual forma. 

   Nietzsche baseia-se fundamentalmente nos aspectos que dizem respeito à guerra e ao devir, esquecendo ou passando para segundo plano o ponto que diz respeito à identidade que existe nas forças opostas. Assim, quando fala numa "disjunção de uma mesma força", expressa essa força na relação essencial entre A1 e A2, sendo o A a força unida em si mesma e o 1 e o 2 a oposição que se gera, tal como o quente e o frio, o inverno e o verão. Porém, o outro lado dessa relação é que A1 é A2 e A2 é A1. A constância de A é uma disjunção que se anula na identidade, ou seja, a polaridade é uma máscara da unidade (DK 22 B 67 e 60). De facto, Nietzsche acaba por confirmar essa acepção, dizendo que "permanentemente esses contrários tendem de novo um para o outro" (Nietzsche: 42). No entanto, o valor unitário reside na guerra, na oposição que se une na ímpeto de se superar e vencer. É importante também referir que a recepção nietzchiana de Heraclito resulta de uma visão íntima, de uma apropriação pessoal de um autor para o outro. Este intimidade no pensar comum leva a que Nietzsche utilize Heraclito da forma que mais lhe convém, com o objectivo de atingir o fim a que se destina a sua obra, a transmutação de todos os valores.

   Pico della Mirandola indica também o valor da luta dos opostos quando diz que "A filosofia natural acalmará os conflitos da opinião e os dissídios que atormentam, dividem e dilaceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma-los-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disse Heraclito é gerada pela guerra e, por isso, chamada por Homero luta."(Mirandola: 62-3). Segundo este, a filosofia natural acalma a alma inquieta dizendo que a natureza é gerada pela guerra. Ora Jaeger reforça essa ideia ao dizer que "Os homens ganharam consciência da eterna luta entre o Ser e o devir. Agora, levanta-se com imensa violência o problema de saber como é que o Homem se impõe no meio daquela luta. (…) É impossível exprimir a volta da filosofia ao Homem de modo mais grandioso do que aquele que aparece em Heraclito."(Jaeger: 224). Heraclito liberta-se dos Milésios e funda a antropologia filosófica. São os olhos, a experiência humana, que captam a realidade, o devir, a mudança, mas o ser humano só se conhece a si e ao mundo através do Logos, cuja expressão é a unidade do ser, é ele que tudo governa e tudo ordena. O Logos une em si mesmo a multiplicidade do devir, não num plano metafísico, mas na própria realidade, onde estão presentes a unidade e a multiplicidade, o Ser e o Devir. 

   Não existe em Heraclito uma separação entre o mundo físico e o mundo metafísico, como bem aponta Maria José Vaz Pinto, quando diz que "Segundo Heraclito, o devir nasce da luta dos contrários mas nessa luta é uma modalidade da boa Eris de Hesíodo, transformada em princípio cósmico. A justificação do devir liga-se à negação da dualidade do mundo físico e do mundo metafísico, respectivamente o das qualidades definidas e o do indefinido."(Vaz Pinto: 39-40). Desta forma, o problema do devir em Heraclito encontra uma síntese  nas palavras de Kirk: "A conclusão que se pode tirar daqui é que a mudança constante não é uma ideia que Heraclito defendesse em particular. O que ele defendeu sem dúvida, acima de todas as coisas, foi a sua descoberta da unidade que subsiste nos contrários."(Kirk: 189).

   A questão do devir, do rio e das suas águas encaminha-se naturalmente para a questão do fogo, pois este é o primeiro princípio do cosmos, a partir do qual tudo adquire a sua forma. A mudança passa assim pelo fogo, tal como o fogo passa por toda a realidade. Essa é a ideia que encontramos nos fragmentos: "Para as almas a morte é tornarem-se água, para a água a morte é tornar-se terra; a água nasce da terra, e a alma da água." (DK 22 B 36) e "A morte do fogo é a origem do ar e a morte do ar é a origem da água" (DK 22 B 72). Existe pois uma sequência de mudança, de continuidade na transformação, entre os elementos: do fogo passa-se para o ar, do ar para água, da água para a terra. Esta passagem assume uma estrutura hierárquica entre os elementos: a origem de um é a morte do outro. No entanto, "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo." (DK 22 B 60), ou seja, a gradação é tanto descendente como ascendente. Quando se chega à terra esta irá expelir vapores húmidos e impuros que geram a água e água há de gerar o ar, o qual, por sua vez, vai tornar-se fogo. Conclui-se portanto que o fogo é tanto a origem como a morte de todos os outros elementos. Dele saem e para ele retornam. Heraclito indica essa ideia ao dizer que "Todas as coisas são uma troca pelo fogo e o fogo por todas as coisas, tal como as mercadorias pelo ouro e o ouro pelas mercadorias." (DK 22 B 90). 

   Nietzsche interpreta a concepção heraclitiana do fogo da seguinte maneira: "Heraclito que, como físico, se sujeitou à autoridade de Anaximandro, interpreta esta teoria do quente segundo Anaximandro como o sopro, o hálito quente, os vapores secos, em sumo, o elemento ardente; acerca deste fogo, diz o que Tales e Anaximandro tinham dito da água: que percorre em inúmeras metamorfoses a senda do devir, sobretudo nos três estados principais, que são o quente, o húmido e o sólido" (Nietzsche: 47). Estes principais estados permitem a passagem de uns elementos para os outros, o quente percorre o caminho do fogo para o ar, o húmido, do ar para a água e o sólido, da água para a terra. No que ao fogo diz respeito, é importante ter em conta, como aliás Nietzsche o teve, que Heraclito segue, em parte, a escola que o antecedeu. A preocupação dos pensadores de Mileto com a archê está também presente em Heraclito, todavia, este supera os seus antecessores ao identificar o fogo com o Logos. O carácter do fogo unido ao Logos transcende o sentido do ar para Anaxímenes ou da água para Tales, e nem o apeiron de Anaximandro adquire o potencial deste união.

   Quando Heraclito diz que "A ordem do mundo (kósmos), a mesma para todos, nem os deuses, nem os homens a criaram, mas sempre existiu, existe e há de existir: um fogo sempre vivo que se acende por medida e por medida se apaga" (DK 22 B 30) expressa aquilo que o comentário de Kirk, Raven e Schofield tão bem sintetizou: "O fogo é a forma arquetípica da matéria. A ordem do mundo como um todo pode ser descrita como um fogo, de que certas porções estão a extinguir-se, ao passo que porções equivalentes estão a reacender-se; nem todo o fogo está a arder ao mesmo tempo" (Kirk, Raven e Schofield: 205). O acender e o apagar do fogo, através de uma medida, de uma justa medida, é um sinal de ordem, do princípio regulador a que está sujeito: o Logos. Com o fragmento "O raio governa todas as coisas"(DK 22 B 64), Heraclito faz ligação entre o plano cosmológico e o plano mitológico, ou teológico, pois o raio é tanto uma expressão do fogo como um atributo de Zeus, ou seja, existe uma ligação, uma harmonia original, entre o Fogo, Zeus e o Logos. Estes são os primeiros e os últimos princípios e são para Heraclito a sua matriz conceptual. Ora Heraclito indica essa união quando diz que "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus." (DK 22 B 32). Aqui o nome, para além de indicar a oposição entre nomeação e inominável, revela que a sabedoria, a verdadeiro conhecimento das coisas, reside em Zeus, sobretudo se tivermos em conta que Zeus alcançou o poder porque bebeu a deusa Métis sob a forma de gota de água. Desta forma, o fogo do raio, o Logos filho de Métis e Zeus como deus supremo resumem o princípio de unidade em Heraclito.

   Nietzsche vai ainda referir um aspecto do fogo que é pouco claro nos fragmentos. O mesmo fogo que deu a luz ao mundo, que proporcionou a sua existência, há de um dia o consumir. A destruição é própria do fogo. Nietzsche afirma "ele acredita, como este último, num colapso do mundo, que se repete periodicamente, e no surgimento sempre novo de um outro, nascido da conflagração cósmica que tudo aniquila."(Nietzsche: 48). Este aspecto parece ser mais próprio de Empédocles que de Heraclito, pelo facto que em Empédocles o ciclo de avanços e recuos do Amor e da Discórdia permitem mais facilmente essa gradação de criação, destruição e renovação. Em Heraclito, essa acção não é explícita, pois os fragmentos não a indicam directamente. Talvez Nietzsche estivesse aqui a ultrapassar o rigor hermenêutico, atribuindo a Heraclito uma doutrina de renovação e recriação do mundo que lhe seria conveniente para os seus projectos. No entanto, se considerarmos o poder do fogo, devemos assumir que o seu poder de destruição é parte integrante da realidade. O fogo concede a si mesmo essa dicotomia radical, essa luta de contrários. O fogo cria e destrói, extingue-se e reacende-se.

   Em suma, uma vez mais, a unidade e a multiplicidade apresentam-se como duas faces da mesma moeda. Se o devir se conjuga com a multiplicidade, o fogo, apesar de mudar, permanece o mesmo, tornando-se um exemplo da unidade. O fogo é assim esse elemento sempre vivo, pois quando arde consume o que existe e quando se apaga torna-se a origem do que é criado. Porém, é quando se reacende, qual fénix renascida, que reúne em si a alternância do que se move e muda e a unidade do que permanece. Existe pois uma ligação entre a mudança e o fogo, daí que Heraclito diga que "O Sol é novo todos os dias." (DK 22 B 6). O Sol, tal como o fogo, renasce e renova-se, sem que por isso deixe de ser o que é, ou seja, sendo novo, permanece o mesmo. A filosofia de Heraclito encontra-se assim entre o rio e o fogo. 


Bibliografia

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