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domingo, 24 de setembro de 2017

Entre o Rio e o Fogo - Pensar Heraclito

Tintoretto, O Pilar de Fogo, 1577-8.
Veneza: Scuola Grande di San Rocco.


   A principal tese de Heraclito, segundo Platão e Aristóteles, é que todas as coisas estão em movimento e que existe na realidade um eterno fluxo (pantha rhei), todavia a análise dos fragmentos permite que se conclua que essa tese resulta apenas de dois desses fragmentos (DK 22 B 12 e 91), os quais se apresentam de forma enigmática e, no mínimo, na acepção que lhes querem atribuir, inconclusiva. Quando Heraclito diz que "Enquanto entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles passam" (DK 22 B 12), não está a ser admitida uma doutrina de eterno fluxo das coisas, o que se está a pressupor é a passagem do tempo. Para aqueles que entram no mesmo rio, em momentos diferentes, as águas que por eles passam não são as mesmas, pois o rio não pára de correr. O tempo passa e as águas também. O rio avança porque existe no tempo e dele necessita para correr e existir. No entanto, o fluxo do rio não ameaça nem a unidade, nem a constância. Mudam as águas, mas o rio é o mesmo.

   O sentido deste fragmento pode criar uma afinidade electiva com a seguinte afirmação de Górgias: "a lei mais divina e universal: falar e calar, fazer e deixar fazer o que se deve no momento devido" (Górgias: 37, Frag. 6). É o kaíros, o momento certo, que determina a valorização da presente, a entrada inaugural nessas águas únicas. O momento é uma unidade no tempo, é passageiro e efémero, mas quando eleito é único e distinto. A mudança das águas do rio adequa-se melhor à dimensão temporal, linear e sequencial, que ao eterno devir. Por outro lado, se o fragmento for interpretado como expressão da mudança, do devir, então também não se poderá afirmar que tudo muda e nada permanece, pois a concepção heraclitiana do Logos e da união dos contrários implica um sentido de unidade. Heraclito  diz que "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo" (DK 22 B 60), ou seja, apesar do conflito (Pólemos) entre os opostos e da sua alternância, existe um princípio de identidade e harmonia entre eles que lhes confere uma unidade radical, sem que para isso se anule a oposição, a razão da existência.

   Bruno Snell apresenta uma outra interpretação para este fragmento: "Nesta imagem, não é o movimento físico da água o que se pretende sublinhar, nem a actividade de quem entra no rio, mas estão de modo idêntico englobados o homem e o mundo exterior, o sujeito e o objecto. A imagem revela a correlação activa e viva entre o movimento da água e o homem que a sente" (Snell: 278). Este sentido remete-nos para o seguinte fragmento: "As coisas que se podem ver, ouvir e conhecer por experiência, essas são as que eu prefiro" (DK 22 B 55). A interpretação de Bruno Snell conduz-nos à relação entre o humano e o mundo, à experiência como forma de conhecimento. O rio e humano interagem, unem-se na vida e permitem uma apreensão nítida, semelhante ao espelho que é a água, de que a existência tem de aceitar a passagem, o tempo que muda e que segue o seu curso.

   O outro fragmento é ainda menos conclusivo: primeiro pelo facto de ser uma paráfrase e segundo pela sua própria estrutura. O filósofo disse: "Dispersam-se e reúnem-se; juntas vêm e separadas vão; aproximam-se e afastam-se" (DK 22 B 91). O primeiro aspecto a considerar-se neste fragmento é a oposição entre união e separação, já que os seis verbos utilizados opõem-se em pares dois. Destes, três indicam o processo de união e outros três o de separação. Este fragmento, seguindo esta interpretação, poderia remeter-nos para o fragmento em que Heraclito diz que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). Este processo de união e separação torna-se assim um indicador da conciliação entre unidade e multiplicidade.

   Por outro lado, seguindo a ideia de Charles Kahn de que o fragmento 91 se assemelha mais a uma paráfrase que a uma citação (Kahn: 168), a concepção de Platão teria um outro sentido. No Crátilo, Sócrates afirma o seguinte: "Dizia Heraclito que «todas as coisas se deslocam e nada permanece» e, comparando os seres à corrente de um rio, afirma que «não se pode entrar duas vezes no mesmo rio»" (Crátilo: 402a). Ora o que parece mais provável é que o fragmento 91, tal como a passagem do Crátilo, não sejam mais que uma reformulação do fragmento anterior (12). A dificuldade de interpretação do livro de Heraclito, bem como a necessidade de Platão de se servir dele para apresentar as suas próprias teorias, levou a que a paráfrase possa não corresponder à ideia original. Logo, conclui-se que é bem provável que a fórmula de que tudo está em movimento e nada permanece não seja do próprio Heraclito, mas sim uma atribuição posterior. No entanto, a referência à mudança existe, pois a alternância dos opostos e a transformação de uns elementos em outros são formas de mudança.

   Jorge Luis Borges, no poema São os rios, faz também referência a este tema: "Somos o tempo. Somos a famosa/ parábola de Heraclito, o Obscuro./ Somos a água, não diamante duro,/ a que se perde, não a que repousa./ Somos o rio e somos esse grego/ a olhar-se no rio. A sua imagem/ muda na água do espelho entre as margens,/ no vidro que varia, fogo cego" (Borges III: 488, 1-8). Neste poema existe, por um lado, a associação entre o rio e o tempo e, por outro, a relação entre o rio e a vida humana, no sentido que as experiências passam, muitas se perdem, e a imagem que delas temos é como as águas do rio. Esta visão vai no mesmo sentido da afirmação de Cornford, quando diz que "A vida que anima o mundo é indiferente aos nossos valores humanos; estes não são mais absolutamente válidos do que a nossa aversão pela água do mar, que os peixes acham saudável, ou pela lama, onde os porcos preferem lavar-se" (Cornford: 243). Uma vez mais, o significado remete-nos o para a oposição entre os contrários e para uma certa dissonância entre a realidade e o seu valor.

   Nietzsche interpreta o devir em Heraclito dizendo que "O dever único e eterno, a inconsistência total de todo o real, que somente age e flui incessantemente, sem alguma vez ser, é, como Heraclito ensina, uma ideia terrível e atordoadora (…) Heraclito chegou a este ponto graças a uma observação do verdadeiro curso do devir e da destruição, que ele concebeu sob a forma da polaridade, como a disjunção de uma mesma força em que duas actividades qualitativamente diferentes, opostas, e que tendem de novo a unir-se" (Nietzsche: 42). Para Nietzsche, não existe uma fixação ontológica do Ser, ele não é, vai sendo, opera segundo os ditames do devir e da destruição. A dimensão do Ser na realidade é medida pelo poder da guerra. O vencedor fixa o ser e, numa nova guerra, pois esta não cessa, aquele que vencer procederá de igual forma. 

   Nietzsche baseia-se fundamentalmente nos aspectos que dizem respeito à guerra e ao devir, esquecendo ou passando para segundo plano o ponto que diz respeito à identidade que existe nas forças opostas. Assim, quando fala numa "disjunção de uma mesma força", expressa essa força na relação essencial entre A1 e A2, sendo o A a força unida em si mesma e o 1 e o 2 a oposição que se gera, tal como o quente e o frio, o inverno e o verão. Porém, o outro lado dessa relação é que A1 é A2 e A2 é A1. A constância de A é uma disjunção que se anula na identidade, ou seja, a polaridade é uma máscara da unidade (DK 22 B 67 e 60). De facto, Nietzsche acaba por confirmar essa acepção, dizendo que "permanentemente esses contrários tendem de novo um para o outro" (Nietzsche: 42). No entanto, o valor unitário reside na guerra, na oposição que se une na ímpeto de se superar e vencer. É importante também referir que a recepção nietzchiana de Heraclito resulta de uma visão íntima, de uma apropriação pessoal de um autor para o outro. Este intimidade no pensar comum leva a que Nietzsche utilize Heraclito da forma que mais lhe convém, com o objectivo de atingir o fim a que se destina a sua obra, a transmutação de todos os valores.

   Pico della Mirandola indica também o valor da luta dos opostos quando diz que "A filosofia natural acalmará os conflitos da opinião e os dissídios que atormentam, dividem e dilaceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma-los-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disse Heraclito é gerada pela guerra e, por isso, chamada por Homero luta."(Mirandola: 62-3). Segundo este, a filosofia natural acalma a alma inquieta dizendo que a natureza é gerada pela guerra. Ora Jaeger reforça essa ideia ao dizer que "Os homens ganharam consciência da eterna luta entre o Ser e o devir. Agora, levanta-se com imensa violência o problema de saber como é que o Homem se impõe no meio daquela luta. (…) É impossível exprimir a volta da filosofia ao Homem de modo mais grandioso do que aquele que aparece em Heraclito."(Jaeger: 224). Heraclito liberta-se dos Milésios e funda a antropologia filosófica. São os olhos, a experiência humana, que captam a realidade, o devir, a mudança, mas o ser humano só se conhece a si e ao mundo através do Logos, cuja expressão é a unidade do ser, é ele que tudo governa e tudo ordena. O Logos une em si mesmo a multiplicidade do devir, não num plano metafísico, mas na própria realidade, onde estão presentes a unidade e a multiplicidade, o Ser e o Devir. 

   Não existe em Heraclito uma separação entre o mundo físico e o mundo metafísico, como bem aponta Maria José Vaz Pinto, quando diz que "Segundo Heraclito, o devir nasce da luta dos contrários mas nessa luta é uma modalidade da boa Eris de Hesíodo, transformada em princípio cósmico. A justificação do devir liga-se à negação da dualidade do mundo físico e do mundo metafísico, respectivamente o das qualidades definidas e o do indefinido."(Vaz Pinto: 39-40). Desta forma, o problema do devir em Heraclito encontra uma síntese  nas palavras de Kirk: "A conclusão que se pode tirar daqui é que a mudança constante não é uma ideia que Heraclito defendesse em particular. O que ele defendeu sem dúvida, acima de todas as coisas, foi a sua descoberta da unidade que subsiste nos contrários."(Kirk: 189).

   A questão do devir, do rio e das suas águas encaminha-se naturalmente para a questão do fogo, pois este é o primeiro princípio do cosmos, a partir do qual tudo adquire a sua forma. A mudança passa assim pelo fogo, tal como o fogo passa por toda a realidade. Essa é a ideia que encontramos nos fragmentos: "Para as almas a morte é tornarem-se água, para a água a morte é tornar-se terra; a água nasce da terra, e a alma da água." (DK 22 B 36) e "A morte do fogo é a origem do ar e a morte do ar é a origem da água" (DK 22 B 72). Existe pois uma sequência de mudança, de continuidade na transformação, entre os elementos: do fogo passa-se para o ar, do ar para água, da água para a terra. Esta passagem assume uma estrutura hierárquica entre os elementos: a origem de um é a morte do outro. No entanto, "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo." (DK 22 B 60), ou seja, a gradação é tanto descendente como ascendente. Quando se chega à terra esta irá expelir vapores húmidos e impuros que geram a água e água há de gerar o ar, o qual, por sua vez, vai tornar-se fogo. Conclui-se portanto que o fogo é tanto a origem como a morte de todos os outros elementos. Dele saem e para ele retornam. Heraclito indica essa ideia ao dizer que "Todas as coisas são uma troca pelo fogo e o fogo por todas as coisas, tal como as mercadorias pelo ouro e o ouro pelas mercadorias." (DK 22 B 90). 

   Nietzsche interpreta a concepção heraclitiana do fogo da seguinte maneira: "Heraclito que, como físico, se sujeitou à autoridade de Anaximandro, interpreta esta teoria do quente segundo Anaximandro como o sopro, o hálito quente, os vapores secos, em sumo, o elemento ardente; acerca deste fogo, diz o que Tales e Anaximandro tinham dito da água: que percorre em inúmeras metamorfoses a senda do devir, sobretudo nos três estados principais, que são o quente, o húmido e o sólido" (Nietzsche: 47). Estes principais estados permitem a passagem de uns elementos para os outros, o quente percorre o caminho do fogo para o ar, o húmido, do ar para a água e o sólido, da água para a terra. No que ao fogo diz respeito, é importante ter em conta, como aliás Nietzsche o teve, que Heraclito segue, em parte, a escola que o antecedeu. A preocupação dos pensadores de Mileto com a archê está também presente em Heraclito, todavia, este supera os seus antecessores ao identificar o fogo com o Logos. O carácter do fogo unido ao Logos transcende o sentido do ar para Anaxímenes ou da água para Tales, e nem o apeiron de Anaximandro adquire o potencial deste união.

   Quando Heraclito diz que "A ordem do mundo (kósmos), a mesma para todos, nem os deuses, nem os homens a criaram, mas sempre existiu, existe e há de existir: um fogo sempre vivo que se acende por medida e por medida se apaga" (DK 22 B 30) expressa aquilo que o comentário de Kirk, Raven e Schofield tão bem sintetizou: "O fogo é a forma arquetípica da matéria. A ordem do mundo como um todo pode ser descrita como um fogo, de que certas porções estão a extinguir-se, ao passo que porções equivalentes estão a reacender-se; nem todo o fogo está a arder ao mesmo tempo" (Kirk, Raven e Schofield: 205). O acender e o apagar do fogo, através de uma medida, de uma justa medida, é um sinal de ordem, do princípio regulador a que está sujeito: o Logos. Com o fragmento "O raio governa todas as coisas"(DK 22 B 64), Heraclito faz ligação entre o plano cosmológico e o plano mitológico, ou teológico, pois o raio é tanto uma expressão do fogo como um atributo de Zeus, ou seja, existe uma ligação, uma harmonia original, entre o Fogo, Zeus e o Logos. Estes são os primeiros e os últimos princípios e são para Heraclito a sua matriz conceptual. Ora Heraclito indica essa união quando diz que "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus." (DK 22 B 32). Aqui o nome, para além de indicar a oposição entre nomeação e inominável, revela que a sabedoria, a verdadeiro conhecimento das coisas, reside em Zeus, sobretudo se tivermos em conta que Zeus alcançou o poder porque bebeu a deusa Métis sob a forma de gota de água. Desta forma, o fogo do raio, o Logos filho de Métis e Zeus como deus supremo resumem o princípio de unidade em Heraclito.

   Nietzsche vai ainda referir um aspecto do fogo que é pouco claro nos fragmentos. O mesmo fogo que deu a luz ao mundo, que proporcionou a sua existência, há de um dia o consumir. A destruição é própria do fogo. Nietzsche afirma "ele acredita, como este último, num colapso do mundo, que se repete periodicamente, e no surgimento sempre novo de um outro, nascido da conflagração cósmica que tudo aniquila."(Nietzsche: 48). Este aspecto parece ser mais próprio de Empédocles que de Heraclito, pelo facto que em Empédocles o ciclo de avanços e recuos do Amor e da Discórdia permitem mais facilmente essa gradação de criação, destruição e renovação. Em Heraclito, essa acção não é explícita, pois os fragmentos não a indicam directamente. Talvez Nietzsche estivesse aqui a ultrapassar o rigor hermenêutico, atribuindo a Heraclito uma doutrina de renovação e recriação do mundo que lhe seria conveniente para os seus projectos. No entanto, se considerarmos o poder do fogo, devemos assumir que o seu poder de destruição é parte integrante da realidade. O fogo concede a si mesmo essa dicotomia radical, essa luta de contrários. O fogo cria e destrói, extingue-se e reacende-se.

   Em suma, uma vez mais, a unidade e a multiplicidade apresentam-se como duas faces da mesma moeda. Se o devir se conjuga com a multiplicidade, o fogo, apesar de mudar, permanece o mesmo, tornando-se um exemplo da unidade. O fogo é assim esse elemento sempre vivo, pois quando arde consume o que existe e quando se apaga torna-se a origem do que é criado. Porém, é quando se reacende, qual fénix renascida, que reúne em si a alternância do que se move e muda e a unidade do que permanece. Existe pois uma ligação entre a mudança e o fogo, daí que Heraclito diga que "O Sol é novo todos os dias." (DK 22 B 6). O Sol, tal como o fogo, renasce e renova-se, sem que por isso deixe de ser o que é, ou seja, sendo novo, permanece o mesmo. A filosofia de Heraclito encontra-se assim entre o rio e o fogo. 


Bibliografia

Borges III - Borges, Jorge Luis, "São os rios" in Os Conjurados (1985), Obras Completas, Trad. Fernando Pinto Amaral, Vol. III, p. 488, vv. 1-8. Lisboa; Editorial Teorema; 1998.

Cornford - Cornford, F.M., Principium Sapientiae - As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.

Crátilo - Platão, Crátilo, Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa, Instituto Piaget, 2001.

Górgias - Górgias, Testemunhos e Fragmentos,Trad. Manuel Barbosa e Inês de Ornellas e Castro. Lisboa: Edições Colibri, 1993.

Kahn - Kahn, Charles H., The Art and Thought of Heraclitus - An Edition of the Fragments with Translation and Comentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995(1986).

Kirk - Kirk, G.S., "Natural Change in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical Essays, Org. Alexander P. D. Mourelatos, pp. 189-196. Princeton (New Jersey): Princeton University Press, 1993 (1974).

Kirk, Raven e Schofield - Kirk, G.S., J.E. Raven e M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, 4 Edição, Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

Mirandola - Mirandola, Giovanni Pico della, Discurso sobre a Dignidade do Homem, Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa; Edições 70; 1998.

Nietzsche - Nietzsche, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873). Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

Vaz Pinto - Vaz Pinto, Maria José, "A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos: Da Sabedoria dos Filósofos Trágicos à Inversão do Socratismo" in Nietzsche: Cem Anos após o Projecto "Vontade de Poder - Transmutação de Todos os Valores", Org. António Marques, pp. 33-49. Lisboa: Vega, 1989.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Unidade e Multiplicidade em Heraclito e Nietzsche

Ender, Johann, Das Trevas, a Luz, 1831.
Budapeste: Academia Húngara das Ciências.


  O problema da relação entre a unidade e a multiplicidade é, no questionamento filosófico, primordial e fundamental, uma vez que a sua síntese constitui a génese do cosmos, resume a variedade de coisas existentes num princípio único que as reúne e que lhes confere sentido. Em Heraclito e em Nietzsche, este problema constitui uma gradação que ora é crescente, ora decrescente, ou seja, unidade, dualidade, multiplicidade e o seu movimento inverso. A diversidade das coisas existentes resume-se numa oposição entre dois princípios em conflito, que se sintetizam na expressão última e una da realidade. No entanto, estes três planos não se apresentam sobre uma estrutura hierárquica, eles cruzam-se num único plano que é o real, só o modo como a eles se acede é que diverge. Para a multiplicidade e para dualidade, o acesso dá-se pelos sentidos, pela experiência, enquanto a apreensão da unidade pressupõe um esforço intuitivo, daí que Heraclito diga: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). Desta forma, o sentido que ele expressa ultrapassa-o, vai para além do particular. O Logos que deve ser ouvido é a expressão última do cosmos, que diz que todas as coisas são uma e que indica a existência de uma unidade subjacente à multiplicidade das coisas. Ora, a partir deste fragmento, conclui-se que, no plano do real, a unidade e a multiplicidade coexistem devido à natureza do Logos, enquanto princípio unificador.

   É o Logos que permite que se compreenda a relação entre unidade, dualidade e multiplicidade. Heraclito indica essa compreensão quando diz "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar, do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, ele confere unidade, pois, embora a maioria não o consiga apreender, ele está presente em todas as coisas. Charles Kahn interpreta este fragmento da seguinte forma: "Em suma, o logos é 'comum' por que ele é (ou expressa) a estrutura que caracteriza todas as coisas, é portanto do domínio público e, por princípio, está disponível a todos os homens" (Kahn: 101). Ou, como diz Bruno Snell, "Uma segunda qualidade do logos em Heraclito é que ele é um koinón, algo de «comum», isto é, penetra tudo, de modo que tudo participa dele. Este espírito está em todas as coisas" (Snell: 43).

   Em Heraclito, a unidade é expressa também pelo facto dos contrários serem duas expressões de uma mesma coisa, sendo, no entanto, próprio da sua natureza manterem-se em oposição e luta constante. Este aspecto leva Heraclito a dizer que "O deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome, muda, tal como o fogo, quando é  misturado com incenso e designado conforme o seu aroma" (DK 22 B 67), bem como "Pólemos é o pai de todas as coisas e de todas elas é soberano, a uns apresenta-os como deuses, a outros como homens, a uns fá-los escravos, a outros homens livres" (DK 22 B 53). O primeiro fragmento mostra a relação entre unidade e dualidade. O deus é um conjunto de contrários, unidos em si mesmo, ou seja, dia e noite expressam as duas possibilidades de um dia, inverno e verão as duas faces do ano, a guerra e a paz as duas formas de estar da humanidade, a saciedade e a fome os dois estados do apetite. Em suma, é um único aspecto que exprime os contrários, respectivamente o dia, o ano, a humanidade e o apetite, e o deus é todos eles. A outra parte do fragmento introduz a alternância dos contrários e o devir, uma vez que compara o deus ao fogo, que, quando misturado com incenso, muda de nome conforme a fragrância do incenso. O segundo fragmento afirma o carácter universal de Pólemos, dizendo que este é o pai e soberano de todas as coisas, ou seja, a guerra, a discórdia, é a matriz da realidade. A guerra é também uma forma de alternância que apresenta uns como deuses, outros como homens, uns faz escravos, outros homens livres.

   O Efésio afirma que "É necessário saber que a guerra (Pólemos) é comum, e a justiça (Dikê) é discórdia (Éris), e que tudo acontece segundo a discórdia e a necessidade" (DK 22 B 80). Este fragmento pode ser dividido em três partes: na primeira, concluímos que a guerra é comum, está presente em todas as coisas, tal como o Logos; na segunda, que a justiça é discórdia, ou seja, ela surge a partir de um jogo de forças, de uma luta entre aspectos consonantes e dissonantes; e, na terceira, que tudo acontece segundo discórdia e necessidade, isto é, tudo resulta de um conflito entre elementos opostos e é a força da Necessidade que, como soberana, semelhante ao Logos, sobre esses elementos opera e governa. Werner Jaeger complementa esta ideia ao dizer que "Em Heraclito essa luta torna-se pura e simplesmente o 'pai de todas as coisas'. A dike só aparece na luta. (…) Aparecem em toda a natureza a abundância e a penúria, causas da guerra. Toda a natureza está repleta de violentos contrastes: o dia e a noite, o verão e o inverno, a guerra e a paz, a vida e a morte sucedem-se em eterna mudança. Todas as oposições da vida cósmica se transformam continuamente umas nas outras e reciprocamente se apagam os prejuízos que causam, para prosseguir com a imagem do processo jurídico. Todo o processo do mundo é uma troca (amoibê). A morte de uma vida é sempre a vida de outra. É eterno o caminho, ascendente e descendente" (Jaeger: 227). Esta é quiçá uma proposta de interpretação para o enigmático fragmento: "Imortais mortais, mortais imortais, que vivem a morte deles e morrem a sua vida" (DK 22 B 62). Nesta explicação de Jaeger, podemos encontrar dois aspectos complementares: por um lado, o valor atribuído a uma Justiça natural, que regula a acção dos opostos e a sua eterna luta, mas que só existe devido a existência deste conflito; e, por outro, a ideia que "Todo o processo do mundo é uma troca", troca esta que expressa a alternância dos contrários, a vitória de um é derrota do outro, todavia a vitória é efémera e quem estava hoje a perder amanhã será o vencedor.

   Nietzsche segue o caminho iniciado por Heraclito quando  diz que "Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põe termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna"(Nietzsche 5: 42). Logo, mais uma vez, toda a mudança tem a sua génese nessa alternância dos opostos e cuja dinâmica  primordial é expressa por uma luta constante.

   A procura de sentido na  relação entre unidade e dualidade é contnuada por Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, os dois elementos, apolíneo e dionisíaco, opostos entre em si, constituem uma forma única de arte, a tragédia ática, isto é, de dois aspectos contraditórios surge uma estrutura única, um modelo plural, mas uno. Apolo e Diónysos tornam-se, não só nos dois elementos fundamentais da tragédia, como também nos dois princípios interpretativos da realidade. Ao primeiro corresponde o sonho, ao segundo o êxtase, um fala por imagens, o outro por altas intuições. Apolo representa a aparência, sendo também o criador da fantasia (Burkert: 285-294), segundo Dante uma "alta fantasia"(Paraíso, XXXIII, 142). A fantasia representa o carácter radical da poesia, da grande poesia. A afinidade entre Apolo e as Musas exemplifica esse ethos radical da fantasia e da poesia enquanto expressão da vida. Por outro lado, ao deus de Delfos, pertence também o principium individuationis, princípio este que possibilita toda a particularização e nascimento da individualidade. Já Diónysos representa o que está por detrás da aparência, ele promove o êxtase, a embriaguez, o entusiasmo de viver (Burkert: 318-328 e Rohde: 303-327). Ao deus que faz as Ménades dançar, pertence a superação do indivíduo, daí que Nietzsche diga que "Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro, também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano"(Nietzsche 1: 27-28). Face a esta expressão de êxtase, "Agora, no Evangelho da harmonia dos mundos, cada um sente-se não apenas unido, reconciliado, fundido com o seu próximo, mas como um ser único, como se o véu de Maya estivesse rasgado e já só esvoaçasse em farrapos perante o misterioso Uno primordial" (Nietzsche 1: 28).

   Gianni Vattimo interpreta este aspecto da seguinte maneira: "Esta relação entre apolíneo e dionisíaco é acima de tudo uma relação de forças no interior de cada homem, que no início da obra Nietzsche compara com os estados de sonho(o apolíneo) e da embriaguez (o dionisíaco); e que funciona no desenvolvimento da civilização como a dualidade dos sexos na conservação da espécie. Toda a cultura humana é fruto do jogo dialéctico destas duas pulsões (Triebe)"(Vattimo: 18). Neste aspecto, bem como em outros, o pensamento de Nietzsche revela uma grande simpatia pela filosofia de Heraclito, pois também entre estes elementos nietzschianos existe um luta, um Pólemos que, à semelhança dos opostos do Efésio, é também origem e fonte da civilização, da cultura, e, em especial, da arte. É através deste conflito que se atinge o fundo primordial das coisas, que se esconde por detrás do véu da aparência. Esse elemento oculto é como o Logos que, embora seja visível, não é visto por todos. A unidade esconde-se por detrás da multiplicidade, daí que Heraclito diga: "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). O apolíneo e o dionisíaco escondem o "misterioso Uno primordial". Um revela-o por sugestão e o outro, através do êxtase, por comunicação directa e intuitiva. Heraclito refere esse poder de sugestão de Apolo quando diz que "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 93). Este é um deus que fala por sinais, por imagens.

   No prólogo à Gaia Ciência, Nietzsche dedica a Heraclito um conjunto de versos, que intitula de Heraclitismo: "Toda a felicidade da terra/ Está na luta, amigos!/ Sim, para nos tornarmos amigos/ É necessário o fumo da poeira!/ Os amigos só são unos em três casos:/ Serem irmãos diante da miséria,/ Serem iguais diante do inimigo,/ Serem livres… diante da morte!" (Nietzsche 2: 25). A luta é, nestes versos,  o valor por excelência, pois é mediante a sua acção que se garante a felicidade terrena e a amizade, todavia, essa unidade que é a guerra está também presente na miséria, na união face ao inimigo e na morte. Apesar desta concórdia entre a filosofia de Heraclito e de Nietzsche, Gilles Deleuze salienta a inovação nietzschiana: "O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido; tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzschiana, ou a terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser, o múltiplo ao Uno(…). Pelo contrário, afirma-se a necessidade do acaso. Dioniso é jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um objecto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso; desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o lançamento dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno. Retornar é precisamente o ser do devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso"(Deleuze: 30). Porém, Heraclito não deixa de estar presente, uma vez que é essa ideia de jogo que é indicada no fragmento: "A vida é uma criança a brincar, movendo as peças do jogo: nele a criança é soberana" (DK 22 B 52). Por outro lado, esta ideia de união do uno do múltiplo, de um expressar o outro, de um ser a expressão fragmentada do outro é indicada pelo filósofo grego quando este afirma que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10).

   Deleuze introduz também a "terceira figura" do jogo: o eterno retorno. Sobre esta ideia, Nietzsche, no Ecce Homo, diz o seguinte: "A doutrina do «eterno retorno», ou seja, de um ciclo repetido, incondicionado e eterno, esta doutrina de Zaratustra poderia talvez já ter sido ensinada por Heraclito. Pelo menos a Stoa, que herdou de Heraclito quase todas as suas ideias, apresenta sinais dela" (Nietzsche 3: 102). Nietzsche admite a hipótese de esta ideia já ter sido afirmada por Heraclito. João Vila-Chã salienta um outro aspecto importante acerca do «eterno retorno», quando diz que "Podemos dizer, finalmente, ser o eterno retorno para Nietzsche uma realidade eminentemente selectiva, e isso numa dupla dimensão. Em primeiro lugar, porque constitui lei constitutiva da autonomia da vontade que se quer ver livre da moral: tudo aquilo que se quer deve ser querido de maneira a que com esse mesmo querer se queira também o seu eterno retorno. Por outro lado, a ideia de eterno retorno significa aqui também ser selectivo, já que, na realidade, apenas retorna aquilo que pode ser afirmado, ou que, por outras palavras, pode ser causa de alegria no ser. Tudo o que é negativo, tudo quanto deve ser negado, é simplesmente expulso pelo movimento do eterno retorno" (Vila-Chã: 23-24). O Eterno Retorno apresenta-se como uma filosofia da vontade e uma afirmação da vida. No Crepúsculo dos Ídolos, continua essa ideia ao afirmar: "O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade - eis o que eu chamo dionisíaco, eis o que adivinhei como a ponte para psicologia do poeta trágico"(Nietzsche 4: 119). A filosofia de Nietzsche é ela mesma um jogo de forças e de oposições, Pólemos é o pai, é a génese do seu pensamento, a semente que, com uma falsa harmonia de opostos, ilude e esconde. Heraclito é, no seu aspecto mais antigo, o pai espiritual de Nietzsche, tal como Schopenhauer é o seu pai moderno.

   Em suma, tanto em Nietzsche como em Heraclito, a unidade e a multiplicidade não estão separadas hierarquicamente, elas fundem-se no mesmo plano. A unidade expressa-se na oposição, na guerra dos contrários, tal como a multiplicidade esconde a unidade. O valor do pensamento destes dois filósofos reside numa explícita afirmação da vida e na recusa de uma metafísica inimiga da vida e das suas pulsões inaugurais.



Bibliografia:

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Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

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Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona: Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

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Vila-Chã - Vila-Chã, João J., "Friedrich Nietzsche (1844-1900): Considerando Alguns Efeitos" in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVII, Fascículo 1, 2001, pp.3-28.