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sexta-feira, 31 de março de 2017

Do Baú III: Tu que és Sombra e Sombra vês

Tu que és Sombra e Sombra vês
2016/III/30
  
Caravaggio, David com a Cabeça de Golias, 1609-10.
Roma: Galleria Borghese.


            Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, expandiu o alcance do conceito de mal, fez com que descesse da sua dimensão extrema e contaminasse o ser humano comum. Um ser quase sem sentido como Eichmann não se revela imbuído de uma perfídia psicopatológica, mas sim de um espírito meramente executante que não pensa, nem questiona, e que, no entanto, estende o mal a uma banalidade quase universal. A prática inconsciente do mal pode parecer uma mera expressão de ignorância, porém atinge uma dimensão mais profunda, a da aceitação do mal como estado natural das coisas. O extermínio e a anulação do ser humano nos campos de concentração parecem uma forma normalizada e rectificada das coisas, tudo porque foram determinados pelo líder.  A confiança cega de que o foi decidido é o melhor é o veículo adequado para a banalização do mal.
Pensamos no mal como se descendo uma pirâmide. No topo, encontramos a génese do mal que se alastra para a parte mais larga da pirâmide, ou seja, partimos da personificação do mal, centrada numa pessoa ou aspecto, e descemos para o vulgo que se deixa corromper. Todavia, o movimento não é apenas descendente, nem centralizado. É a base da pirâmide que constrói e legitima o mal. Não existe senhor, sem súbditos. Os cultos de personalidade nascem de uma predisposição para o mal, têm a sua génese numa incompletude massificada que verte essa falta numa corrupção do mito do herói. Na ausência de uma fé profunda, que anularia esse desejo de participar na acção de um homem comum, marcado pela Providência, constrói-se uma imagem de salvação e redenção. Todas as esperanças de um povo estão agora nas mãos de um ser banal tornado deidade. Esta é uma pura construção do mal.
Quando o sentido da humanidade enfraquece e quando Deus desvanece na aparência dominical, aparecem deuses do momento que alentam os povos e que os elevam numa grandeza que não é sua. Os países que viveram em ditadura revelam uma predisposição, quase natural, para os cultos de personalidade. Em Portugal, essa fraqueza de espírito é deveras evidente. A nossa pequenez aspira sempre a tornar os feitos individuais numa glória colectiva. Veja-se o exemplo de Cristiano Ronaldo. O melhor jogador do mundo é português, logo Portugal é espectacular. Agora, criou-se, sobretudo na comunicação social, a ideia de um presidente que vai salvar os portugueses da bruma da sua própria história. Um homem providencial que anula as fragilidades humanas, as vicissitudes de um povo e que o transporta, aos ombros, para uma vida melhor.
Criámos uma constelação de deuses que não passam de homens comuns. Do alto do pedestal, estes ídolos caiem na sua própria humanidade. São os estão em baixo que operam esta construção do mal. Procura-se consolo numa imagem idílica de um ser perfeito. Será possível ver apenas um génio num Leonardo Da Vinci com resto de sopa na barba, como descreve o biógrafo? Ou ver o arauto da educação num Rousseau que abonou os cinco filhos? Ou um Marx que não pagava o salário à empregada e desprezava os trabalhadores? Um Gandhi, imagem da paz, que batia na mulher e tentava a castidade, dormindo com jovens, em especial, com a sobrinha? Shelley era um mau pagador que pedia dinheiro emprestado e nunca pagava. Tolstoi era um egocêntrico que se aproveitava sexual e emocionalmente dos outros. Leia-se Intelectuais de Paul Johnson e compreende-se a falácia do culto da personalidade. Em Portugal, encontramos também, por exemplo, um D. Pedro, imagem do amor, amante de D. Inês, que nutria afecto obsessivo pelo seu escudeiro, ou um Salazar, homem rectíssimo para muitos, com um fetiche por mulheres casadas.
O problema de prestar culto a seres humanos é o de serem humanos, falíveis, com debilidades morais e vivências na sombra. A aura quebra-se perante a sua própria humanidade, mas, mais uma vez, o erro está nos seus fiéis e é neste aspecto que o mal avança. Só vêem a luz quando o que existe é sombra. O valor deveria repousar na obra e não no indivíduo. Hannah Arendt, numa carta a Gershom Scholem, diz que o mal não tem uma dimensão demoníaca, mas espalha-se como um fungo. Os cultos de personalidade têm essa dimensão de fungo, pois espalham-se e fixam-se nos ideais, sem ideias, do comum dos mortais.
No Purgatório, Dante coloca Estácio diante de Virgílio e quando o primeiro tenta abraçá-lo, o segundo diz: "Frate, non far, ché tu se' ombra e ombra vedi". A noção de que somos sombra e sombras vemos é o que se pode reter. A luz do Bem tende esconder-se e a pessoa boa não pode ser objecto de culto. Veja-se a obra, ver-se-á o homem. O egocentrismo de uma sociedade é uma expressão do mal. A sabedoria pede a contenção e o silêncio, e essa é imagem do Bem.

Bibliografia:
Arendt, Hannah, Eichmann em Jerusalém. Coimbra: Tenacitas, 2003.
Dante Alighieri, A Divina Comédia. Venda Nova: Bertrand Editora, 2000.
Johnson, Paul, Intelectuais. Lisboa: Guerra e Paz, 2008.
Neiman, Susan, O Mal no Pensamento Moderno. Lisboa: Gradiva, 2005