Mostrar mensagens com a etiqueta Fogo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fogo. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 2 de março de 2021

Tarot - O Liber Mundi: Arcanos Menores - Paus/Fogo

 


Textos acerca de cada um dos Arcanos Menores de Paus, Elemento Fogo.

#tarot #arcano #arcanosmenores #paus #fogo #RMdFConsultas
#RMdFAstrologiaeTarot #RodolfoMigueldeFigueiredo

domingo, 24 de setembro de 2017

Entre o Rio e o Fogo - Pensar Heraclito

Tintoretto, O Pilar de Fogo, 1577-8.
Veneza: Scuola Grande di San Rocco.


   A principal tese de Heraclito, segundo Platão e Aristóteles, é que todas as coisas estão em movimento e que existe na realidade um eterno fluxo (pantha rhei), todavia a análise dos fragmentos permite que se conclua que essa tese resulta apenas de dois desses fragmentos (DK 22 B 12 e 91), os quais se apresentam de forma enigmática e, no mínimo, na acepção que lhes querem atribuir, inconclusiva. Quando Heraclito diz que "Enquanto entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles passam" (DK 22 B 12), não está a ser admitida uma doutrina de eterno fluxo das coisas, o que se está a pressupor é a passagem do tempo. Para aqueles que entram no mesmo rio, em momentos diferentes, as águas que por eles passam não são as mesmas, pois o rio não pára de correr. O tempo passa e as águas também. O rio avança porque existe no tempo e dele necessita para correr e existir. No entanto, o fluxo do rio não ameaça nem a unidade, nem a constância. Mudam as águas, mas o rio é o mesmo.

   O sentido deste fragmento pode criar uma afinidade electiva com a seguinte afirmação de Górgias: "a lei mais divina e universal: falar e calar, fazer e deixar fazer o que se deve no momento devido" (Górgias: 37, Frag. 6). É o kaíros, o momento certo, que determina a valorização da presente, a entrada inaugural nessas águas únicas. O momento é uma unidade no tempo, é passageiro e efémero, mas quando eleito é único e distinto. A mudança das águas do rio adequa-se melhor à dimensão temporal, linear e sequencial, que ao eterno devir. Por outro lado, se o fragmento for interpretado como expressão da mudança, do devir, então também não se poderá afirmar que tudo muda e nada permanece, pois a concepção heraclitiana do Logos e da união dos contrários implica um sentido de unidade. Heraclito  diz que "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo" (DK 22 B 60), ou seja, apesar do conflito (Pólemos) entre os opostos e da sua alternância, existe um princípio de identidade e harmonia entre eles que lhes confere uma unidade radical, sem que para isso se anule a oposição, a razão da existência.

   Bruno Snell apresenta uma outra interpretação para este fragmento: "Nesta imagem, não é o movimento físico da água o que se pretende sublinhar, nem a actividade de quem entra no rio, mas estão de modo idêntico englobados o homem e o mundo exterior, o sujeito e o objecto. A imagem revela a correlação activa e viva entre o movimento da água e o homem que a sente" (Snell: 278). Este sentido remete-nos para o seguinte fragmento: "As coisas que se podem ver, ouvir e conhecer por experiência, essas são as que eu prefiro" (DK 22 B 55). A interpretação de Bruno Snell conduz-nos à relação entre o humano e o mundo, à experiência como forma de conhecimento. O rio e humano interagem, unem-se na vida e permitem uma apreensão nítida, semelhante ao espelho que é a água, de que a existência tem de aceitar a passagem, o tempo que muda e que segue o seu curso.

   O outro fragmento é ainda menos conclusivo: primeiro pelo facto de ser uma paráfrase e segundo pela sua própria estrutura. O filósofo disse: "Dispersam-se e reúnem-se; juntas vêm e separadas vão; aproximam-se e afastam-se" (DK 22 B 91). O primeiro aspecto a considerar-se neste fragmento é a oposição entre união e separação, já que os seis verbos utilizados opõem-se em pares dois. Destes, três indicam o processo de união e outros três o de separação. Este fragmento, seguindo esta interpretação, poderia remeter-nos para o fragmento em que Heraclito diz que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). Este processo de união e separação torna-se assim um indicador da conciliação entre unidade e multiplicidade.

   Por outro lado, seguindo a ideia de Charles Kahn de que o fragmento 91 se assemelha mais a uma paráfrase que a uma citação (Kahn: 168), a concepção de Platão teria um outro sentido. No Crátilo, Sócrates afirma o seguinte: "Dizia Heraclito que «todas as coisas se deslocam e nada permanece» e, comparando os seres à corrente de um rio, afirma que «não se pode entrar duas vezes no mesmo rio»" (Crátilo: 402a). Ora o que parece mais provável é que o fragmento 91, tal como a passagem do Crátilo, não sejam mais que uma reformulação do fragmento anterior (12). A dificuldade de interpretação do livro de Heraclito, bem como a necessidade de Platão de se servir dele para apresentar as suas próprias teorias, levou a que a paráfrase possa não corresponder à ideia original. Logo, conclui-se que é bem provável que a fórmula de que tudo está em movimento e nada permanece não seja do próprio Heraclito, mas sim uma atribuição posterior. No entanto, a referência à mudança existe, pois a alternância dos opostos e a transformação de uns elementos em outros são formas de mudança.

   Jorge Luis Borges, no poema São os rios, faz também referência a este tema: "Somos o tempo. Somos a famosa/ parábola de Heraclito, o Obscuro./ Somos a água, não diamante duro,/ a que se perde, não a que repousa./ Somos o rio e somos esse grego/ a olhar-se no rio. A sua imagem/ muda na água do espelho entre as margens,/ no vidro que varia, fogo cego" (Borges III: 488, 1-8). Neste poema existe, por um lado, a associação entre o rio e o tempo e, por outro, a relação entre o rio e a vida humana, no sentido que as experiências passam, muitas se perdem, e a imagem que delas temos é como as águas do rio. Esta visão vai no mesmo sentido da afirmação de Cornford, quando diz que "A vida que anima o mundo é indiferente aos nossos valores humanos; estes não são mais absolutamente válidos do que a nossa aversão pela água do mar, que os peixes acham saudável, ou pela lama, onde os porcos preferem lavar-se" (Cornford: 243). Uma vez mais, o significado remete-nos o para a oposição entre os contrários e para uma certa dissonância entre a realidade e o seu valor.

   Nietzsche interpreta o devir em Heraclito dizendo que "O dever único e eterno, a inconsistência total de todo o real, que somente age e flui incessantemente, sem alguma vez ser, é, como Heraclito ensina, uma ideia terrível e atordoadora (…) Heraclito chegou a este ponto graças a uma observação do verdadeiro curso do devir e da destruição, que ele concebeu sob a forma da polaridade, como a disjunção de uma mesma força em que duas actividades qualitativamente diferentes, opostas, e que tendem de novo a unir-se" (Nietzsche: 42). Para Nietzsche, não existe uma fixação ontológica do Ser, ele não é, vai sendo, opera segundo os ditames do devir e da destruição. A dimensão do Ser na realidade é medida pelo poder da guerra. O vencedor fixa o ser e, numa nova guerra, pois esta não cessa, aquele que vencer procederá de igual forma. 

   Nietzsche baseia-se fundamentalmente nos aspectos que dizem respeito à guerra e ao devir, esquecendo ou passando para segundo plano o ponto que diz respeito à identidade que existe nas forças opostas. Assim, quando fala numa "disjunção de uma mesma força", expressa essa força na relação essencial entre A1 e A2, sendo o A a força unida em si mesma e o 1 e o 2 a oposição que se gera, tal como o quente e o frio, o inverno e o verão. Porém, o outro lado dessa relação é que A1 é A2 e A2 é A1. A constância de A é uma disjunção que se anula na identidade, ou seja, a polaridade é uma máscara da unidade (DK 22 B 67 e 60). De facto, Nietzsche acaba por confirmar essa acepção, dizendo que "permanentemente esses contrários tendem de novo um para o outro" (Nietzsche: 42). No entanto, o valor unitário reside na guerra, na oposição que se une na ímpeto de se superar e vencer. É importante também referir que a recepção nietzchiana de Heraclito resulta de uma visão íntima, de uma apropriação pessoal de um autor para o outro. Este intimidade no pensar comum leva a que Nietzsche utilize Heraclito da forma que mais lhe convém, com o objectivo de atingir o fim a que se destina a sua obra, a transmutação de todos os valores.

   Pico della Mirandola indica também o valor da luta dos opostos quando diz que "A filosofia natural acalmará os conflitos da opinião e os dissídios que atormentam, dividem e dilaceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma-los-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disse Heraclito é gerada pela guerra e, por isso, chamada por Homero luta."(Mirandola: 62-3). Segundo este, a filosofia natural acalma a alma inquieta dizendo que a natureza é gerada pela guerra. Ora Jaeger reforça essa ideia ao dizer que "Os homens ganharam consciência da eterna luta entre o Ser e o devir. Agora, levanta-se com imensa violência o problema de saber como é que o Homem se impõe no meio daquela luta. (…) É impossível exprimir a volta da filosofia ao Homem de modo mais grandioso do que aquele que aparece em Heraclito."(Jaeger: 224). Heraclito liberta-se dos Milésios e funda a antropologia filosófica. São os olhos, a experiência humana, que captam a realidade, o devir, a mudança, mas o ser humano só se conhece a si e ao mundo através do Logos, cuja expressão é a unidade do ser, é ele que tudo governa e tudo ordena. O Logos une em si mesmo a multiplicidade do devir, não num plano metafísico, mas na própria realidade, onde estão presentes a unidade e a multiplicidade, o Ser e o Devir. 

   Não existe em Heraclito uma separação entre o mundo físico e o mundo metafísico, como bem aponta Maria José Vaz Pinto, quando diz que "Segundo Heraclito, o devir nasce da luta dos contrários mas nessa luta é uma modalidade da boa Eris de Hesíodo, transformada em princípio cósmico. A justificação do devir liga-se à negação da dualidade do mundo físico e do mundo metafísico, respectivamente o das qualidades definidas e o do indefinido."(Vaz Pinto: 39-40). Desta forma, o problema do devir em Heraclito encontra uma síntese  nas palavras de Kirk: "A conclusão que se pode tirar daqui é que a mudança constante não é uma ideia que Heraclito defendesse em particular. O que ele defendeu sem dúvida, acima de todas as coisas, foi a sua descoberta da unidade que subsiste nos contrários."(Kirk: 189).

   A questão do devir, do rio e das suas águas encaminha-se naturalmente para a questão do fogo, pois este é o primeiro princípio do cosmos, a partir do qual tudo adquire a sua forma. A mudança passa assim pelo fogo, tal como o fogo passa por toda a realidade. Essa é a ideia que encontramos nos fragmentos: "Para as almas a morte é tornarem-se água, para a água a morte é tornar-se terra; a água nasce da terra, e a alma da água." (DK 22 B 36) e "A morte do fogo é a origem do ar e a morte do ar é a origem da água" (DK 22 B 72). Existe pois uma sequência de mudança, de continuidade na transformação, entre os elementos: do fogo passa-se para o ar, do ar para água, da água para a terra. Esta passagem assume uma estrutura hierárquica entre os elementos: a origem de um é a morte do outro. No entanto, "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo." (DK 22 B 60), ou seja, a gradação é tanto descendente como ascendente. Quando se chega à terra esta irá expelir vapores húmidos e impuros que geram a água e água há de gerar o ar, o qual, por sua vez, vai tornar-se fogo. Conclui-se portanto que o fogo é tanto a origem como a morte de todos os outros elementos. Dele saem e para ele retornam. Heraclito indica essa ideia ao dizer que "Todas as coisas são uma troca pelo fogo e o fogo por todas as coisas, tal como as mercadorias pelo ouro e o ouro pelas mercadorias." (DK 22 B 90). 

   Nietzsche interpreta a concepção heraclitiana do fogo da seguinte maneira: "Heraclito que, como físico, se sujeitou à autoridade de Anaximandro, interpreta esta teoria do quente segundo Anaximandro como o sopro, o hálito quente, os vapores secos, em sumo, o elemento ardente; acerca deste fogo, diz o que Tales e Anaximandro tinham dito da água: que percorre em inúmeras metamorfoses a senda do devir, sobretudo nos três estados principais, que são o quente, o húmido e o sólido" (Nietzsche: 47). Estes principais estados permitem a passagem de uns elementos para os outros, o quente percorre o caminho do fogo para o ar, o húmido, do ar para a água e o sólido, da água para a terra. No que ao fogo diz respeito, é importante ter em conta, como aliás Nietzsche o teve, que Heraclito segue, em parte, a escola que o antecedeu. A preocupação dos pensadores de Mileto com a archê está também presente em Heraclito, todavia, este supera os seus antecessores ao identificar o fogo com o Logos. O carácter do fogo unido ao Logos transcende o sentido do ar para Anaxímenes ou da água para Tales, e nem o apeiron de Anaximandro adquire o potencial deste união.

   Quando Heraclito diz que "A ordem do mundo (kósmos), a mesma para todos, nem os deuses, nem os homens a criaram, mas sempre existiu, existe e há de existir: um fogo sempre vivo que se acende por medida e por medida se apaga" (DK 22 B 30) expressa aquilo que o comentário de Kirk, Raven e Schofield tão bem sintetizou: "O fogo é a forma arquetípica da matéria. A ordem do mundo como um todo pode ser descrita como um fogo, de que certas porções estão a extinguir-se, ao passo que porções equivalentes estão a reacender-se; nem todo o fogo está a arder ao mesmo tempo" (Kirk, Raven e Schofield: 205). O acender e o apagar do fogo, através de uma medida, de uma justa medida, é um sinal de ordem, do princípio regulador a que está sujeito: o Logos. Com o fragmento "O raio governa todas as coisas"(DK 22 B 64), Heraclito faz ligação entre o plano cosmológico e o plano mitológico, ou teológico, pois o raio é tanto uma expressão do fogo como um atributo de Zeus, ou seja, existe uma ligação, uma harmonia original, entre o Fogo, Zeus e o Logos. Estes são os primeiros e os últimos princípios e são para Heraclito a sua matriz conceptual. Ora Heraclito indica essa união quando diz que "Sábio é só um, que não consente e consente ser chamado pelo nome de Zeus." (DK 22 B 32). Aqui o nome, para além de indicar a oposição entre nomeação e inominável, revela que a sabedoria, a verdadeiro conhecimento das coisas, reside em Zeus, sobretudo se tivermos em conta que Zeus alcançou o poder porque bebeu a deusa Métis sob a forma de gota de água. Desta forma, o fogo do raio, o Logos filho de Métis e Zeus como deus supremo resumem o princípio de unidade em Heraclito.

   Nietzsche vai ainda referir um aspecto do fogo que é pouco claro nos fragmentos. O mesmo fogo que deu a luz ao mundo, que proporcionou a sua existência, há de um dia o consumir. A destruição é própria do fogo. Nietzsche afirma "ele acredita, como este último, num colapso do mundo, que se repete periodicamente, e no surgimento sempre novo de um outro, nascido da conflagração cósmica que tudo aniquila."(Nietzsche: 48). Este aspecto parece ser mais próprio de Empédocles que de Heraclito, pelo facto que em Empédocles o ciclo de avanços e recuos do Amor e da Discórdia permitem mais facilmente essa gradação de criação, destruição e renovação. Em Heraclito, essa acção não é explícita, pois os fragmentos não a indicam directamente. Talvez Nietzsche estivesse aqui a ultrapassar o rigor hermenêutico, atribuindo a Heraclito uma doutrina de renovação e recriação do mundo que lhe seria conveniente para os seus projectos. No entanto, se considerarmos o poder do fogo, devemos assumir que o seu poder de destruição é parte integrante da realidade. O fogo concede a si mesmo essa dicotomia radical, essa luta de contrários. O fogo cria e destrói, extingue-se e reacende-se.

   Em suma, uma vez mais, a unidade e a multiplicidade apresentam-se como duas faces da mesma moeda. Se o devir se conjuga com a multiplicidade, o fogo, apesar de mudar, permanece o mesmo, tornando-se um exemplo da unidade. O fogo é assim esse elemento sempre vivo, pois quando arde consume o que existe e quando se apaga torna-se a origem do que é criado. Porém, é quando se reacende, qual fénix renascida, que reúne em si a alternância do que se move e muda e a unidade do que permanece. Existe pois uma ligação entre a mudança e o fogo, daí que Heraclito diga que "O Sol é novo todos os dias." (DK 22 B 6). O Sol, tal como o fogo, renasce e renova-se, sem que por isso deixe de ser o que é, ou seja, sendo novo, permanece o mesmo. A filosofia de Heraclito encontra-se assim entre o rio e o fogo. 


Bibliografia

Borges III - Borges, Jorge Luis, "São os rios" in Os Conjurados (1985), Obras Completas, Trad. Fernando Pinto Amaral, Vol. III, p. 488, vv. 1-8. Lisboa; Editorial Teorema; 1998.

Cornford - Cornford, F.M., Principium Sapientiae - As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.

Crátilo - Platão, Crátilo, Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa, Instituto Piaget, 2001.

Górgias - Górgias, Testemunhos e Fragmentos,Trad. Manuel Barbosa e Inês de Ornellas e Castro. Lisboa: Edições Colibri, 1993.

Kahn - Kahn, Charles H., The Art and Thought of Heraclitus - An Edition of the Fragments with Translation and Comentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diels-Kranz.

Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995(1986).

Kirk - Kirk, G.S., "Natural Change in Heraclitus" in The Pre-Socratics - A Collection of Critical Essays, Org. Alexander P. D. Mourelatos, pp. 189-196. Princeton (New Jersey): Princeton University Press, 1993 (1974).

Kirk, Raven e Schofield - Kirk, G.S., J.E. Raven e M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, 4 Edição, Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

Mirandola - Mirandola, Giovanni Pico della, Discurso sobre a Dignidade do Homem, Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa; Edições 70; 1998.

Nietzsche - Nietzsche, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873). Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

Vaz Pinto - Vaz Pinto, Maria José, "A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos: Da Sabedoria dos Filósofos Trágicos à Inversão do Socratismo" in Nietzsche: Cem Anos após o Projecto "Vontade de Poder - Transmutação de Todos os Valores", Org. António Marques, pp. 33-49. Lisboa: Vega, 1989.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Algumas Reflexões Mitológicas acerca do Signo de Escorpião

Constelação de Escorpião

Escorpião é o oitavo signo do Zodíaco e forma com Touro o eixo que indica a oposição/complementaridade entre a Vida e a Morte. Na viagem da alma, o Eu conhece os mistérios da criação. O Bíos de Touros une-se ao Thánatos de Escorpião, expressando o sentido da própria natureza. O elemento estrutural da Terra funde-se ao elemento dinâmico que é a Água. 

Na atribuição dos Doze Trabalhos de Herácles a cada um dos signos, Escorpião é simbolizado pela destruição da Hidra de Lerno. A hidra, que, por vezes, é representada como uma serpente, nasceu da relação entre Tífon e Equidna, com corpo de cão e com nove cabeças, umas das quais era imortal. Hera criara este ser com a intenção de matar Herácles. O monstro ameaçava a fertilidade daquela terra e transformara o pântano que lá existia num lugar fétido. A destruição da Hidra tornou-se assim num imperativo, daí que Euristeu fizesse da sua morte um dos trabalhos do herói. Atena, ajudando Herácles, pondera sobre a melhor forma de matar a Hidra. Desta forma, seguindo os conselhos da deusa, Herácles fez com que o monstro deixasse o seu covil. Lançou-lhe flechas em chamas. A Hidra deixou, por fim, o seu refúgio e é nessa altura que o herói a deteve. Tentou feri-la com uma maça, mas em vão, pois sempre que lhe cortava uma cabeça cresciam outras três.
Guido Reni, Hércules derrotando a Hidra de Lerna, 1617-20. Paris: Museu do Louvre. 

Hera não estava satisfeita com a possível morte da criatura e tentou encontrar uma forma de a socorrer. "Um enorme caranguejo irrompeu do pântano para ir ajudar a Hidra, e mordeu os pés de Herácles que, furioso lhe esmagou a casca, gritando ao mesmo tempo por Iolau" (Graves, 476). O amigo do herói e seu companheiro de viagem ateou fogo ao bosque circundante, restringindo assim os movimentos da Hidra. Depois, começaram cauterizar as cabeças cortadas do monstro, impedindo assim que lhe nascessem outras. Héracles percebeu a sua vantagem e, munido da sua espada, cortou a cabeça imortal da Hidra e enterrou-a. Hera, apesar do desagrado, recompensou o caranguejo e colocou-o entre as estrelas, tornando-o o quarto signo do Zodíaco. Euristeu, contrariado pela ajuda de Iolau, deu o trabalho como cumprido.

Junito de Souza Brandão, na sua obra Mitologia Grega, considera que este mito simboliza, por um lado, um ritual aquático, baseando-se na natureza da Hidra, e, por outro, numa superação ou sublimação dos vícios que são representados pela natureza do pântano onde o monstro habitava. Alice A Bailey diz que "Hércules faz três coisas: ele reconhece a existência da hidra, procura pacientemente por ela, e finalmente a destrói. É necessário ter discriminação para reconhecer a sua existência; paciência para descobrir a sua toca; humildade para trazer lodosos fragmentos do subconsciente à superfície, e expô-los à luz da sabedoria." (140).

Em Carneiro, nasce a personalidade, em Leão, a individualidade, mas é em Escorpião que se dá a morte do Ego e o renascimento de um novo ser, um ser integrado num mundo, apto para se aproximar do véu da Sabedoria, condição esta que se dá em Sagitário. Este processo de integração e de realização vai atingir o fim de um ciclo em Peixes, quando se der a fusão do Eu com o plano divino. A individualidade entrega-se à cruz, a centelha une-se ao fogo divino, daí que, em termos elementais, se deva fazer a distinção entre elementos estruturais - Terra e Ar - e elementos dinâmicos - Água e Fogo. É na passagem entre os dois elementos dinâmicos que se operam as grandes transformações. A morte inicia-se na Água e o renascimento atinge o seu auge no Fogo. É nos signos de Água que o Eu encontra as três mortes: em Caranguejo, rompe-se o cordão umbilical da Natureza e nasce a Luz da individualidade; em Escorpião, perece o Ego e a vida instintiva e renasce um novo ser, um Humano preparado para conhecimento de Sophia; e, em Peixes, o Humano sacrifica a sua identidade, unindo-se à origem, e renasce uno com Deus.

A morte que ocorre em Escorpião está também intimamente ligada com a união sexual, daí que seja neste signo que o binómio Amor e Morte tenha a sua maior expressão. Em Touro, o amor é Vénus e, em Escorpião, é Marte. É importante fazer esta distinção, pois é através dela que se compreende a grande diferença nas pulsões sexuais. Escorpião é a sede do desejo e do instinto, é uma natureza sem rédeas, nem freios. O mito de Herácles e da Hidra refere também essa ligação à natureza através da inclusão de um caranguejo na sua história. Em Caranguejo, a Natureza opera em silêncio e cria a vida, já em Escorpião, a natureza apresenta-se na sua dimensão destruidora, ela é o vulcão que entra em erupção. A destruição e a morte que são próprios deste signo não são um fim em si mesmo, são sim uma condição de possibilidade, um processo de transformação.

Outro mito que é inseparável da natureza de Escorpião é o do Órion. Órion era um caçador da Híria, filho de Posídon e de Euríale, e um homem de beleza imensa. A certa altura, quando chegou à ilha de Quios, Órion apaixonou-se por Mérope, filha de Enópion e neta do deus Diónysos. Enópion disse que daria a mão da sua filha, se o famoso caçador matasse todas as feras que ameaçavam as redondezas. Órion cumpriu a tarefa. Porém, Enópion, que queria Mérope para si, argumentou, referindo que ainda existiam leões, ursos, lobos e outros animais perigosos. Órion sentiu-se desmotivado por uma  tarefa sem fim e, numa certa noite, depois de ter bebido demais, entrou no quarto de Mérope e forçou a união. Enópion, furioso, pediu a Diónysos que o vingasse. O deus do entusiasmo ordenou que um grupo de sátiros o embebedassem. Órion estava quase inconsciente e, nesse momento, Enópion abeirou-se do herói e arrancou-lhes os olhos e abandonou-o. Órion para recuperar a visão teria de viajar para este e vislumbrar Hélios de frente, teria de se deixar banhar pelo Sol nascente. O caçador assim o fez. Apolo, que tinha ciúmes do herói pela sua recente união com Eos, fez com que Gaia enviasse um escorpião gigante para o eliminar. Órion lutou com o perigosos animal, mas foi incapaz de o ferir. Teve, portante, de fugir, de lançar-se ao mar e nadar para longe. Apolo, temendo que a irmã Ártemis se apaixonasse por Órion, tal como acontecera com Eos, criou um embuste. Disse a Ártemis que aquele que nadava, lá ao longe, era o devasso que seduzira uma das suas sacerdotisas hiperbóreas, depois desafiou-a, perguntando-lhe se era capaz de o matar com uma seta certeira, desferida do seu arco preciso. Ártemis assim o fez. Quando percebeu o engano, lamentou a morte do herói e pediu a Asclépio para o ressuscitar, mas Zeus impediu-o. Desta forma, a única forma de recompensa foi colocá-lo no céu, entre as estrelas, juntamente com o escorpião que o perseguiu.    

Este dois mitos, aos quais ainda se podia juntar o de Orfeu e de Eurídice, têm elementos comuns que são fundamentais para compreensão do signo de Escorpião. O sexo, a violência, a luta, os desafios, a morte e o renascimento são características que se fundem e que, juntas, confirmam a natureza deste senhor do Zodíaco. 

O peregrino do Zodíaco, o Eu em viagem, enfrenta o grande desafio, a luta pela sua identidade. Para sair vitorioso, tem de perder o que trazia consigo. O medo, os vícios, as prisões do Ego têm de ser eliminadas. É então que o herói enfrenta a morte, a sua própria morte, só assim poderá renascer. E este renascimento, esta conquista da Luz só é possível com a ajuda da Deusa. O arquétipo feminino é a luz no caminho, a recompensa no termo da viagem.   



Bibliografia:
Bailey, Alice A., Os Trabalhos de Hércules. Tradução J. Treiger. Niterói (Rio de Janeiro - Brasil): Fundação Avatar, 2008.
Brandão, Junito de Souza, Mitologia Grega, 3 Volumes. Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 2007.
Graves, Robert, Os Mitos Gregos. Tradução Fernanda Branco. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª Edição, 2004.
Sicuteri, Roberto, Astrologia e Mito. Tradução Pier Luigi Cabra. São Paulo (Brasil): Editora Pensamento, 1994.