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quarta-feira, 31 de março de 2021

A Alma do Mundo, o Todo e as Partes: Exemplo Textual


Jean-Baptiste Gourinat, J.-B., 2020, "Apospasma: The World Soul and its individual parts in Stoicism" in World Soul - Anima Mundi: On the Origins and Fortunes of a Fundamental Idea, ed. C. Helmig, 167-8

According to various Stoic texts and sources, our souls are parts of the World Soul; they are merê or apospasmata of the World Soul. What does this mean exactly? Not only does this have consequences regarding the relationship between the World Soul and the individual souls, but it also has consequences concerning the nature of both souls. A meros seems to designate a part belonging to a whole. This would mean that the World Soul is divided between the individual souls it is composed of, so that, in a way, the World Soul is composed or constituted of the individual souls. Therefore, the perceptions, reasonings, and will of the World Soul would be the sum or the result of the perceptions, reasonings, and wills of the individual souls. There would be no difference or conflict between them. This, however, hardly seems to be a consequence that the Stoics are willing to endorse. On the other hand, an apospasma seems to be a detached portion of the World Soul. In that case, the individual souls are autonomous parts of the World Soul. This is the most likely version of the relationship between the individual souls and the World soul, and this seems to be the version endorsed, at the end of the history of Stoicism, by Marcus Aurelius when he said that each individual human being’s soul is a ‘fragment’ (ἀπόσπασμα) of himself, which ‘Zeus has given to each man to guard and guide him’ (5.27). However, this version of the relationship appears syncretic, since Marcus described this guardian soul as a daimôn, a ‘god-like entity’, and this appears to be a notion borrowed, among others, from Plato’s Republic by the Stoics. Such a conception of the soul as a god-like entity seems to pertain mainly to the ‘divine’ part of the soul, not to the animal soul which, in the Stoic tradition, appears at birth by the transformation of a physical plant-like breath to an ensouled breath: in this version, the soul does not come from God from the outside, it is nothing else than the transformation of the qualities and properties of the breath, and it is not detached from God and does not supervene from the outside. In that case, the World Soul and the individual souls are simply analogous. Again, this is clearly not what the Stoics have in mind: the relationship between the World Soul and the individual souls is not an analogy, it rather seems to be a whole-parts relationship. Moreover, the Stoics seem to maintain both that the individual souls are generated by a transformation of the inner plant-like breath of the embryo and that it results from an exhalation of the Word Soul. They combine a medical theory of soul-formation with a cosmological, Heraclitean-like view of the formation of the individual souls from the World Soul, in a rather puzzling manner. To put it in a nutshell: the Stoics seem to endorse the cosmological view that the individual souls are parts and emanations of the World Soul, but this seems to conflict with their more medical description of the process of soul-formation, and, in addition, this creates difficulties concerning the kind of relationship between the parts and the whole. In order to address these issues, the present paper will first describe the Stoic conception of the World Soul and then proceed to the different accounts of the formation of the individual souls and their relation to the whole. 



Jean-Baptiste Gourinat, J.-B., 2020, "Apospasma: The World Soul and its individual parts in Stoicism" in World Soul - Anima Mundi: On the Origins and Fortunes of a Fundamental Idea, ed. C. Helmig, 167-87. Berlim/ Boston: Walter de Gruyter.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Biblioteca II: Eduardo Gamaglia - Astrologia Hermetica


  Apresento aqui algumas sugestões para uma biblioteca astrológica. Contudo, como critério de coerência, não irei apresentar nenhum livro que não tenha lido. O objectivo é sobretudo apresentar títulos que permitam aprofundar os conhecimentos astrológicos e que, por norma, não sejam os mais comuns. Um dos piores erros em que pode cair um astrólogo é cingir-se ao superficial e cair no lugar-comum e na frase-feita. Deve-se portanto procurar como se nunca nada se encontrasse. Um livro lido deve assim servir de ponte para o seguinte.



Gramaglia, Eduardo, Astrologia Hermetica: Recobrando el Sistema Helenistico.
Buenos Aires: Editorial Kier, 2007
ISBN: 9789501741131
Páginas: 400
Preço: 39€


Comentário

  O livro de Eduardo Gramaglia apresenta um outro lado, não menos importante, no estudo da Astrologia Helenística: a aplicação contemporânea das técnicas antigas. Neste livro, encontramos uma renovada práxis do sistema astrológico helenista, nomeadamente o de matriz hermética, ou seja, este é um texto que, sem ignorar a abordagem teórica, foca-se na utilização astrológica dos princípios antigos. Gramaglia mostra assim, através de exemplos, como as técnicas astrológicas, expressas pelos vários autores antigos, podem e devem continuar a ser experimentadas.

  A principal fonte de Gramaglia é a Antologia de Vétio Valente. Ora esta opção define a vertente hermética do texto e contrasta com o modelo exotérico de Ptolomeu. Esta distinção, que já abordámos em Para uma Leitura dos Textos Astrológicos Gregos e Latinos, apresenta aquela que seria a principal tradição astrológica na Antiguidade e a que marcou a revolução horoscópica do sistema greco-egípcio face à astromancia mesopotâmica. Foi a passagem de um sistema de manteía para um lógos astrológico que permitiu que hoje se defenda que a astrologia é uma forma de linguagem, uma representação do humano e do universo, e não uma técnica oracular. No entanto, como o próprio Gramaglia afirma, referindo-se a uma mesma opinião de Robert Schimdt, a astrologia não se desenvolveu através de séculos de observações empíricas, mas essa integridade e coerência foi obra de um  homem ou de uma escola de homens (p. 16). Naturalmente, estão-se a referir a Hermes e à escola hermética. Gramaglia diz também que, no século IV AEC, o corpus astrológico já se apresentava como um sistema organizado (p.17). 

  Estes aspectos levantam, todavia, algumas dúvidas. Por um lado, não podemos falar de uma creatio ex nihilo, pois existem diversos factores que colaboraram para a génese da astrologia horoscópica e genetlíacal, nomeadamente, o multiculturalismo do império de Alexandre, as tradições astronómicas e mitológicas e a permeabilidade ao contexto filosófico, especialmente, ao estoicismo, platonismo e pitagorismo e, por lado outro, fixar, no século IV AEC, essa estabilidade textual e sistemática parece algo forçado, pois seria mais prudente colocar esse processo entre os séculos III AEC e I EC. No entanto, a tese principal deveria ser comummente aceite, pois tudo indica que a génese astrológica provenha de uma escola hermética. A referência constante aos antigos ou aos antigos egípcios como autoridade prova, de facto, esse mesmo legado. 

  No século I EC, nomes como Critodemo, Teucro ou Trasilo revelam-se, através dos testemunhos e fragmentos, como continuadores desse linhagem, que, por sua vez, passará para Vétio Valento, Fírmico Materno e Paulo de Alexandria. No entanto, depois do legado de Hermes, encontramos, entre o fim do século II e o início do I AEC, os principais transmissores dessa tradição hermética. Nechepso e Petosíris, um faraó e um sacerdote egípcios, são, depois da fundação da astrologia, a base dessa linhagem. Gramaglia, embora force um pouco a tese de uma completa formação astrológica no século IV AEC, é fiel a esta linhagem e ao sentido profundo que ela indica. 

  O livro está dividido essencialmente em duas partes: a primeira é uma introdução à astrologia helenística, aos seus princípios, e a segunda, a maior, consiste na exposição das técnicas interpretativas e preditivas. No primeiro capítulo, que aborda os planetas e as suas significações, Gramaglia defende que a relação entre os planetas e os deuses foi, de um ponto vista filosófico, iniciada pelos pré-socráticos e continuada por Platão. Ora essa relação, que também podemos encontrar na Astronomica de Manílio, serve de alicerce conceptual - e também metafísico - de todo o sistema astrológico. A natureza dessa fundamentação, seguindo os princípios da astrologia helenística e hermética, leva a que os planetas trans-saturninos não tenham de ser excluídos por si só, pois seguem essa uniformidade significativa entre planetas e deuses, entre elementos físicos e ideias. Deve contudo ser contextualizada a sua acção tanto pela distância face à Terra como pela duração temporal dos seus ciclos. Esta posição, expressa por Gramaglia e tendo por base os princípios da astrologia de raiz hermética, difere da posição radical de alguma astrologia tradicional. 

  No capítulo 2, que concerne aos signos zodiacais, Gramaglia mostra que o Zodíaco Tropical serviu mais de resumo de significados, unindo as constelações às divisões em dia e noite, estações do ano e idades do humano, do que uma adopção de um modelo alternativo e sobretudo exclusivo. Um exemplo que demonstra que a visão sideral dos astrólogos antigos era mais abrangente que o que se possa pensar é o recurso à paranatellonta. No capítulo 3, trata-se dos 5 modelos de regências: domicílio, exaltação, triplicidade, termo e decanato. Neste capítulo, faltou, no entanto, a regência por monomoiría. No quarto capítulo, estuda-se o sistema por segmento, haíresis, ou seja, a importância do dia e da noite, do Sol e da Lua, na análise das regências. Neste capítulo e no seguinte, acerca da herança babilónica e do ciclo das fases solares, Gramaglia demonstra a relevância das fases heliacais dos planetas, sobretudo as de Mercúrio e Vénus, no estudo de uma natividade, algo que hoje quase que deixou de ser utilizado, mas que serve, por exemplo, para determinar se Mercúrio assume um carácter masculino ou feminino. Os capítulos seguintes, 6, 7 e 8, apresentam, respectivamente, os aspectos, as casas e as partes. Neste último, encontramos a lista das partes utilizadas por Vétio Valente, mas também a divisão por dodekatemoira. A primeira parte termina com um capítulo sobre a Lua, que, devido à sua importância na Antiguidade, merece um tratamento mais aprofundado.

  A segunda parte é, porém, a mais relevante, pois é, ao longo dos seus três capítulos, 10, 11 e 12, que, de facto, a astrologia helenística de raiz hermética se revela um sistema actual e pragmático, tanto as técnicas de interpretação como as de previsão apresentam-se como modelos teóricos e conceptuais passíveis de contribuírem para uma melhor prática astrológica. O capítulo 10 define uma metodologia interpretativa do tema natal, para tal compara, em primeiro lugar, o método de Doroteu com o de Vétio Valente. A última parte do capítulo explora um método complementar de Valente baseado em quatro partes: a Parte da Fortuna, a Parte do Espírito, a Parte de Exaltação e a Parte da Base. O capítulo seguinte, aquele a que Gramaglia dedicou um maior número de páginas, é o mais complexo. No entanto, mediante o recurso a exemplos, a mapa natais específicos, o autor conseguiu, de uma forma acessível, transmitir ao leitor contemporâneo algumas das técnicas astrológicas mais complexas. O capítulo 11 é denominado de Pronoia: o Sistema Preditivo. Ora o termo grego  πρόνοια tem aqui tanto o sentido mais imediato de previsão como também o de providência. Este último aproxima, por exemplo, a astrologia da concepção estóica de destino. Gramaglia, no início do capítulo, introduz o problema clássico de conciliar o determinismo com a liberdade, referindo a opção dos astrólogos modernos em traçar tendências e não previsões. Contudo, essa alternativa depressa se torna artificial, pois a questão de fundo precisa necessariamente de uma abordagem filosófica.

  O capítulo 11 inicia a sua exposição dos métodos preditivos com a análise de um conceito fundamental para o desenvolvimento das técnicas em causa, o de Chronocrator, o regente do tempo. Este conceito resulta naturalmente de uma filosofia do tempo, de uma atribuição de valor a um determinado momento, o que conduz naturalmente a uma visão espiritual e esóterica. O tempo torna-se electivo e os gregos tinham um termo para esta consciência temporal: καιρός, o tempo certo ou o momento oportuno. Gramaglia analisa, de seguida, seis técnicas preditivas. Convém antes de mais fazer a mesma ressalva que faz o autor. Os trânsitos não são para o astrólogo antigo um método independente, mas sim o complemento de outras metodologias.  A razão prende-se ao facto de os trânsitos resultarem da acção dos ciclos planetários sobre a natividade e não de uma distribuição a partir dela. 

  A primeira técnica descrita é a profecção, cujo termo vem do latim proficiscor - avançar, marchar. Esta, bem como os outros métodos, sustenta-se numa ideia muito cara à astrologia helenista que é expressa pelo verbo grego έκβάλλω, ou seja, lançar ou liberar. No caso da profecção, por cada ano, uma determinada posição, seja ela a de um planeta, ponto na eclíptica ou parte, é lançada para o signo seguinte e não necessariamente para os 30° seguintes, pois esta fixa-se num sistema de divisão de casas de casa-signo, o que implica uma mudança de casa. O método seguinte é aquele que conjuga os ciclos planetários com os tempos de ascensão. Este, pela sua complexidade, é quiçá o método que melhor conjuga a astrologia com astronomia antiga, pois o cálculo dos tempos ascensão, baseados na obliquidade da eclíptica, mostra o quão próximas são as duas formas de conhecimento. 

  O terceiro método é o da aphesis e do cálculo do arco da vida. Esta técnica é a que mais mal-entendidos tem gerado, pois tem levantado questões éticas em relação a possibilidade do astrólogo calcular o termo da vida. Gramaglia defende que o fim do arco da vida ou a intercessão deste por um anareta, um destruidor, aponta mais para uma perda de vitalidade que para a morte do nativo. No entanto, a teoria afética tem uma aplicação mais abrangente que o mero cálculo da duração da vida e mesmo esta não deve ser desprezada com base num mero preconceito contemporâneo. O astrólogo não deve cair na tentação de dizer que é tudo bom, pois as crises, a destruição e a morte também fazem parte da vida.

  O quarto método é designado por Gramaglia de Diairesis: A Subdivisão dos Períodos Planetários. Ora o termo grego διαίρεσις tem o sentido de divisão, distribuição ou distinção e, neste caso, indica uma divisão e distribuição dos períodos planetários, em especial, dos períodos médios. Na análise deste quarto método, encontramos duas técnicas bastante interessantes: a circunvolução e a divisão do tempo a partir das partes da fortuna e do espírito. Esta última técnica, que Gramaglia apresenta em pormenor e com exemplos práticos, pode surpreender o astrólogo que a desconheça pelo seu potencial, tanto que deve ser conjugada com o tema da fortuna. O procedimento de fazer da Parte de Fortuna o Ascendente, o que aliás pode ser feito com qualquer parte, ponto ou astro, revela que a natividade era para a astrologia helenística - e em particular para a de tradição hermética - uma estrutura dinâmica.

  O quinto método, embora tenha a denominação medieval de Decénios (lat. decennium), ou seja, uma divisão em décadas, pode ser encontrado em Vétio Valente, Fírmico Materno e Heféstion de Tebas. É um método mais simples que os anteriores, mas com uma estrutura coerente e facilmente aplicável. O sexto e último método refere-se à Revolução Solar, que, na verdade, chega até nós por via da astrologia árabe, em especial, pelo contributo de Abū Ma'shar. No entanto, embora não tenhamos um texto antigo com uma metodologia para esta técnica, podemos encontrar nos textos várias indícios e referências, nomeadamente em Doroteu e em Vétio Valente.  O termo grego para este método é άντιγένεσις. A Antigénesis não é, todavia, um método que seja independente, ela surge, em particular, em combinação com a profecção. Valente descreve, por exemplo, a necessidade de se produzir a Antigénesis de forma observar-se a Revolução Lunar que ocorre no mês solar natal. Esta não é, porém, uma técnica tipicamente helenística.

  No último capítulo, Gramaglia explora os temas mais comuns numa consulta astrológica, seguindo as técnicas enunciadas pela tradição hermética da astrologia helenística. O primeiro tema é o do casamento, no qual podemos encontrar, por exemplo, as partes do casamento de Vétio Valente e de Paulo de Alexandria e a relação entre os amores ocultos e as fases solares. O segundo tema é o dos filhos. Neste ponto, analisa sobretudo a metodologia de Paulo de Alexandria. O terceiro tema é o da vocação ou profissão, que explora separadamente as posições de Paulo de Alexandria, Heféstio de Tebas, com referências directas a Doroteu de Sidon, e Fírmico Materno. O último tema é o da espiritualidade e do estado interno do nativo. Gramaglia esforça-se - e bem - por mostrar que, contrariamente a uma visão mais estreita que tende a persistir, a astrologia antiga, em especial, a hermética, abarca a espiritualidade. O recurso, por exemplo,  à Parte do Espírito, às fases heliacais ou ao eclipse pré-natal pode revelar-se bastante elucidativo. 

  Em suma, o livro Astrologia Hermetica: Recobrando el Sistema Helenistico de Eduardo Gramaglia é um importante contributo para o estudo da astrologia, pois ajuda a desmistificar alguns preconceitos, mostrando, nomeadamente, que a astrologia dita tradicional não é toda igual e que o sistema hermético é aliás bastante actual e, por outro lado, torna acessível uma forma de astrologia que tende a ser considerada erudita e académica, quando, na verdade, está ao alcance de todos.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Biblioteca I: Dorian Gieseler Greenbaum, The Daimon in Hellenistic Astrology

Apresento aqui algumas sugestões para uma biblioteca astrológica. Contudo, como critério de coerência, não irei apresentar nenhum livro que não tenha lido. O objectivo é sobretudo apresentar títulos que permitam aprofundar os conhecimentos astrológicos e que, por norma, não sejam os mais comuns. Um dos piores erros em que pode cair um astrólogo é cingir-se ao superficial e cair no lugar-comum e na frase-feita. Deve-se portanto procurar como se nunca nada se encontrasse. Um livro lido deve assim servir de ponte para o seguinte.


Greenbaum, Dorian Gieseler, The Daimon in Hellenistic Astrology: Origins and Influence.
Leiden e Boston: Brill, 2015.
ISBN: 978-90-04-30621-9
Páginas: 574
Preço: 190.00 €


Comentário

Este livro reproduz a tese de doutoramento da autora, apresentada ao Instituto Warburg da Universidade de Londres. O conceito de daimon (daímōn) serve de base para toda a investigação. Ora este termo, bem como o de týchē, fortuna, como demonstra Greenbaum, estão na origem de alguns dos mais relevantes conceitos astrológicos, como por exemplo as casas V, VI, XI e XII e as partes da fortuna e do espírito. Greenbaum usa em epígrafe inicial o fragmento de Heraclito que serve de mote para toda a conceptualização em torno da palavra daimon: ēthosἦanthrópōi daímōn (O carácter é para o ser humano o seu destino). O termo daímōn surge aqui como indicador do destino, o que está em sintonia com seu significado primordial de demiurgo, de ser intermediário. 

Na primeira parte do livro, Greenbaum explora os conceitos de daímōn e de týchē enquanto representações culturais, religiosas e filosóficas e, recorrendo a um vasto número de fontes antigas, com especial destaque para Plutarco e Vétio Valente, analisa a relação entre os dois termos. Ora dessa relação nascem dois princípios duais: Agathós Daímōn e Agathē Týchē, de um lado, e Kakós Daímōn e Kakē Týchē, do outro. Estes princípios estão na génese das casas V e XI e VI e XII e da sua atribuição quer aos benéficos, Vénus e Júpiter, quer aos maléficos, Marte e Saturno. Estes dois conceitos, de extrema importância sobretudo no período helenista, foram como alicerces para a criação do sistema astrológico tal como o conhecemos. A astrologia foi sobretudo uma criação egípcia de matriz grega, tendo como suporte astronómico a evolução científica em torno da herança babilónica. A divisão da eclíptica, enquanto modelo conceptual, em casas, decanatos, termos, dodecatemoria ou monomoiria e as relações geométricas e simbólicas que resultam da presença dos planetas nesse modelo são um produto do helenismo alexandrino. As concepções filosóficas e religiosas em torno das ideias de daímōn e de týchē foram acolhidas pela astrologia que, por sua vez, renovou as suas significações.

Na segundo parte, é abordada a natureza do conceito de daimon enquanto mediador. A relação com a esfera divina traduz-se numa análise do neoplatonismo, do gnosticismo e mitraísmo, passado naturalmente pela noção do daimon pessoal. Nesta parte, aborda-se também a presença da ideia de daimon nos papiros mágicos e no corpus hermeticum ou hermetica. Aquando desta última fonte, Greenbaum firma nas estrelas  o nascimento dos daimones, o que está em estreita ligação com os últimos capítulos desta parte. O estudo em torno dos decanatos mostra o sentido profundo deste conceito astrológico que deve mais aos decanos egípcios que à ideia limitada de faces. Greenbaum analisa a forma como os vários autores antigos abordam este tema. A tradição que vai Teucro de Babilónia até Heféstion de Tebas, chegando até Cosme de Jerusalém, é fundamental para que a astrologia contemporânea construa uma teoria dos decanatos que se funde para além dos períodos de dez graus e das regências planetárias. Este parte termina com a análise da obra de Porfírio, em especial, no que à noção de oikeîos daímōn (daimon pessoal) concerne. Esta ideia permite o sentido astrológico que une a individualidade ao destino.

Na terceira parte, Greenbaum estuda a relação de daimon com as partes astrológicas, klēroi. Estas são, segundas as palavras da própria autora, uma das principais técnicas da astrologia helenista. Ao ler-se esta terceira parte, ninguém voltaria a designar as partes por partes arábicas. A parte da fortuna ou roda da fortuna,  como hoje a designamos, é em grego týchē e a parte do espírito é o daímōn. Estas duas partes, como representantes do Lua e do Sol, estão na origem do cálculo das outras partes, quer seja elas a pouco conhecida parte da base ou fundação (básis), as partes herméticas ou planetárias de Paulo de Alexandria ou as partes de Eros e da Necessidade de Vétio Valente. Segundo a tradição, as partes teriam sido criados por Hermes e passadas a Nechepso e Petosíris. A razão que origina as partes é mesma que se inscreve no procura da duração da vida. Greenbaum analisa, com erudição, os vários testemunhos e teorias sobre esta profunda relação entre as partes e a vida. O leitor pode, sem esforço, perceber que as partes são um importante legado da astrologia helenista e que têm uma aplicação mais integrada na linguagem astrológica que o uso que posteriormente lhe foi concedido. 

Nos apêndices, encontramos, numa primeira parte, uma síntese dos elementos da astrologia helenista e, numa segunda, a apresentação das principais fontes e das respectivas traduções. O livro de Greenbaum é um importante contributo para a dignidade da astrologia enquanto forma de conhecimento e é também a prova de que astrologia pode e deve ser estudada em meios académicos. Para o leitor menos familiarizado com a cultura clássica, a leitura pode ser um pouco densa, mas o que se ganha compensa o esforço. Este livro será sempre uma valiosa aquisição para uma biblioteca astrológica, seja ela física ou digital.