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terça-feira, 2 de abril de 2019

Do Amor-Próprio à Vida Eterna: João 12:25

Antolinez, José, Assunção de Maria Madalena, s/d.
 Madrid: Museu do Prado.


Do Amor-Próprio à Vida Eterna
João 12:25


            Quando entregamos à alma a disponibilidade de ler, de nos deixarmos deslumbrar, por uma passagem de um qualquer texto sagrado, sem dogmatismo, sem os grilhões de uma leitura condicionada, podemos encontrar uma luz textuante que nos eleva para uma realidade onde o divino se torna palavra. Essa disponibilidade adquire um profundo carácter de transformação se o espectro textual se tornar universal, ou seja, todos os textos, de todos os tempos, de todas as religiões ou civilizações, adquirem um elemento de gravidade existencial.

            O versículo 25 do capítulo 12 do Evangelho de São João é um bom exemplo dessa leitura. Uma visão crítica, focada apenas na letra do texto, permite uma vasta apreensão da palavra sagrada. Se compararmos o texto grego com a vulgata e com algumas das principais traduções portuguesas, percebemos que as variantes, em vez de adulterarem o sentido primordial, aprofundam esse sentido. Ora o texto grego diz:

̉Ο φιλῶν τὴν ψυχὴν αὐτοῦ, ἀπολλύει αὐτήν, καὶ ὁ μισῶν τὴν ψυχὴν αὐτοῦ ἐν τῷ κόσμῳ τούτῳ, εἰς ζωὴν αἰώνιον φυλάξει αὐτήν.

E, por seu lado, a vulgata de São Jerónimo diz:

Ipsum solum manet si autem mortuum fuerit multum fructum adfert qui amat animam suam perdet eam et qui odit animam suam in hoc mundo in vitam aeternam custodit eam.

Nas traduções portuguesas, destacamos três: a de João Ferreira de Almeida; a Nova Bíblia dos Capuchinhos e a Bíblia de Jerusalém. Na tradução de Ferreira de Almeida, encontramos a seguinte versão:

Quem ama a sua vida, perdê-la-á; e quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna.

A Bíblia dos Capuchinhos, que é aquela que mais difere das restantes, diz:

Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna.

E, por fim, a Bíblia de Jerusalém diz:

Quem ama sua vida a perde e quem odeia sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna.
Quando abordamos as traduções da Bíblia é impossível não cotejar também a King James, que, neste caso, não difere da maioria das traduções portuguesas:

He that loveth his life shall lose it; and he that hateth his life in this world shall keep it unto life eternal.

            Estes périplos textuais não procuram, de modo algum, a erudição exegética, mas sim a compreensão do texto enquanto matéria viva, criatura vivente e em contínuo processo transformativo. Contrariamente ao que se possa pensar, só o texto que não é lido é que permanece morto, fechado em si mesmo. A palavra possui um carácter de passagem. É um demiurgo que, de corpo em corpo, de leitor em leitor, se transforma.

            O versículo de João permite diferentes leituras, sem que por isso sejam dissonantes. As questões interpretativas resultam essencialmente da polissemia textual. A primeira delas, e que surge logo no texto grego, é a de como devemos ler a palavra ψυχή. A tradução mais comum, aquela que encontramos em Ferreira de Almeida, na Bíblia de Jerusalém e na King James, opta pelo termo vida. Na vulgata, encontramos o termo anima, que, apesar de conservar a dimensão de sopro de vida, não tem o alcance de ψυχή. No entanto, é na vulgata que encontramos uma pista para a tradução da Bíblia dos Capuchinhos. O texto diz: ipsum solum manet. Ora o acto de permanecer apenas em si é o amor-próprio dessa tradução e está em total harmonia com a ψυχή grega, que tem também a acepção de si mesmo ou de consciência de si.

            O texto grego pode não incluir literalmente o ipsum solum manet da vulgata, todavia o elemento vivo que anima o texto é o mesmo. A tradução da Bíblia dos Capuchinhos da primeira parte do versículo é portanto a que melhor traduz o espírito de  ̉Ο φιλῶν τὴν ψυχὴν αὐτοῦ, ἀπολλύει αὐτήν. Nos dias de hoje, com uma desenfreada propaganda a um individualismo solipsista, que na maior parte vezes se aproxima de um narcisismo patológico, este Quem se ama a si mesmo, perde-se pode parecer estranho, mas, na verdade, deveria servir de fundação a toda psicologia futura. O amor-próprio pode, e deve, cimentar uma vida psicologicamente saudável, contudo quando a justa medida é excedida, transforma-se numa forma de alienação. Nesse sentido, aquele que apenas se ama a si mesmo perde tanto o amor por si como a própria vida - conjugando-se aqui as duas acepções de ψυχή -, pois não existe valor numa vida apenas centrada em si.
 
            O versículo pode ter, porém, uma outra leitura. A chave dessa leitura encontra-se na relação entre as várias formas verbais. Os verbos φιλόω, ἀπολλύμι, μισέω e φυλάσσω vão indicar a presença ou a ausência de um elemento passagem, de um princípio de transformação. Ora aquele que se ama, perde-se e aquele que se odeia, guarda-se. Esta pode parecer uma equação algo bizarra, todavia, é a presença ou a ausência de um elemento de passagem que clarifica a formulação. E esse elemento é Jesus. A passagem do amor-próprio, centrado em si mesmo, para um amor universal, liberto das amarras do excesso de si, é mediada por Jesus. Nesse sentido, a vida eterna que se ganha, mantém ou defende (φυλάσσω), e que é expressa pela palavra ζωή, que indica sobretudo a vida biológica, resulta não de um acto de se amar a si mesmo (φιλόω) que conduz ao processo de perda, destruição ou morte (ἀπολλύμι), mas sim de um acto de negação, recusa ou rejeição (μισέω).

            O verbo μισέω, cuja raiz etimológica encontramos hoje em palavras como misantropia ou misoginia, surge aqui como indicador da acção que permite ou concede a vida eterna. Ao abandonarmos o amor-próprio e ao entregarmo-nos ao amor universal, estamos a aceitar o sacrifício como dádiva. O acto de odiar (μισέω) a própria vida ou essa desmedida de um amor voltado para si apresenta-se sob a forma de renúncia, de negação. Embora uma interpretação mais condicionada possa conduzir a alma a uma disponibilidade para o sacrifício, para o martírio, a proposta de Jesus assenta sobretudo na necessidade de se renunciar ao excesso de si, ao eu que não quer ver a dádiva da vida eterna, nem amar o outro como a si mesmo. Jesus concede neste versículo a possibilidade de darmos ao mundo, não o amor-próprio, fechado em si mesmo, mas o amor de Deus. A máxima de Deus é Amor torna-se assim, não um mote espiritual, mas a própria vida e esse Amor transforma a consciência de si, a ψυχή, e dá-lhe o dom da totalidade.

           João 12:25 é um bom exemplo da importância de uma leitura crítica, pois a leitura de uma única tradução levar-nos-ia a perder todo um leque de sentidos. A vitalidade do texto transcende aqui o original, embora este seja a matéria-prima de toda análise, uma vez que encontramos também nas traduções uma paleta interpretativa que potencia o seu valor textual. Por outro lado, uma leitura crítica sustentada na palavra revela igualmente a actualidade de um texto. Desta forma, depois de cotejadas as palavras, João 12:25 manifesta uma profundidade que é tanto espiritual como existencial.   



Bibliografia

Bíblia Português, Edição em linha com texto interlinear grego-português e várias traduções. Acedida em 30 de Março de 2019: https://bibliaportugues.com/john/12-25.htm

Novo Testamento Interlinear – Grego-Português, Ed. V. Scholz e R. G. Bratcher. Barueri (SP, Brasil): Sociedade Biblíca do Brasil, 2007.

Vulgata Latina, Edição em linha. Acedida em 30 de Março de 2019: https://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina/evangelium-secundum-ioannem/12/ .

Bíblia Sagrada, Ed. João Ferreira de Almeida. Lisboa: Sociedade Bíblica, 1994.

Bíblia de Jerusalém, G. da Silva Gorgulho, I. Storniolo & A. F. Andersen. São Paulo (Brasil): Paulus, 2003.

Nova Bíblia dos Capuchinhos, Edição em linha. Acedida em 30 de Março de 2019: http://capuchinhos.org/biblia/index.php/Jo_12 .

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Sermão do Amor que Deus é

David, Gerard, O Casamento em Caná, c.1500.
Paris: Museu do Louvre.



o mè agathôn ouk égnô tòn theón, 
hóti o theòs agápê estín.

Primeira Epístola de São João, 4, 8.



  Deus é Amor e aquele que ama, para amar verdadeiramente, terá de destruir o muro alto que torna o outro em morte. A destruição que a morte produz é sempre esse outro que avança, sem rosto, até nós. Porém, se, como um dilúvio, transbordares para além de ti o Amor que Deus é, a morte deixa de existir. O Amor que Deus é vive permanentemente. 

  Não te deixes enganar e julgues que transbordar o Amor que Deus é se afirma como coisa fácil, pois não o é. Transbordar de Amor implica ir para além de ti próprio e, despojado, avançar pela força do Amor que Deus é para o reino que a morte governa. A cada passo que deres, nessa alameda amorosa, perderás uma parte de ti, não o lugar Deus habita, mas sim a superfície de todas as vaidades, as camadas profundas de ignorância, erro e ilusão. 

  Por vezes, existem passos que são dolorosos, onde caminharás, descalço, sobre pedras aguçadas, pois não queres perder aquilo que julgas que é teu. Como tens tantas superfícies vãs sobre a pele da tua alma, não sabes que aquilo que é verdadeiramente teu é tão pouco, que é o que basta. 

  Aquele pequeno lume, aquela chama que, escondida, ocultas entre as tuas mãos, guardada no abismo da tua existência, é tudo aquilo que és. Esse pequeno lume, pela força do Amor que Deus é, pode conflagrar o universo e consumir tudo o que permanece apartado, fechado na confusão das coisas. 

  O Amor que Deus é está em ti como uma estrela no firmamento. Tu és a tua própria constelação. E, com a liberdade que emana da Providência, poderás escolher a ilusão daquilo que pensas que és ou diluíres-te na imensidão do Amor que Deus é. Na verdade, aquilo que julgas que é uma escolha não passa de uma afirmação da vontade, não daquela que move as paixões e a ignorância, mas sim aquela que é uma e a mesma.

  A Vontade de Deus é também a tua vontade, mas para compreenderes esse mistério terás de te despir de todas as vaidades, da ilusão que alimenta a tua identidade, e avançar como um recém-nascido na senda do Nada, da anulação da ignorância. Quando compreenderes que o mal é apenas a força confusa da ignorância, poderás imergir na vastidão da Vontade, da Sabedoria e do Amor. Essa Trindade surge à humanidade como Pai, Mãe e Filho.

  O Amor que Deus é revela-se como um dos três caminhos, aquele que surge da síntese da Vontade e da Sabedoria e que conduz ao Divino Indeterminado, o Deus que não pode ser nem palavra, nem pensamento. Somente no Nada conhecerás a totalidade de Deus. Essa é a verdade que tanto vezes negas. Sê portanto o Amor que Deus é.


RMdF
04/09/2018

quarta-feira, 17 de maio de 2017

A Natureza da Imperatriz

A Imperatriz
Tarot Rider-Waite

A Imperatriz é o princípio do amor, a síntese dos contrários, o terceiro elemento que reune o que estava apartado.

A Imperatriz é a natureza criada e criadora, a criação com sentido e caminho.

A Imperatriz é a Estrela da Manhã, única no céu estrelado e distinta no seu ciclo de outra estrela, desenhada no seu percurso.

A Imperatriz é a colheita da semente da Sacerdotisa, o gérmen da sabedoria, é a bênção da terra, ofertada à vida e à morte.

A Imperatriz é filha do seu pai, irmã do seu amante e mãe do seu marido, é múltipla como o universo, é a mesma sob várias formas.

A Imperatriz é o corpo da mulher, que é terra e mar, e é o trono de todos os soberanos, o primeiro poder, que é linha e vida.

A Imperatriz é magia e mistério, é o segredo que guarda a vida, a síntese de uma obra de passagem.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Portugal 2014: A Hora de Ser uma Mátria

"Mátria dos homens que levam no perfil
atravessada uma mulher de flores ao vento
como um olho dando para os intemporais
flancos que o Amor vai iluminando."

Natália Correia, "XIII - Fotões da cólera que a amorosa retina", vv. 5-8, Mátria (1968), Poesia Completa, p.299. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª Edição, 2007.


"Que mátria implica «uma ligação sentimental à terra», de acordo. Mas não só isso. Representa, em sentido mais lato, um elo afectivo com a natureza do homem. Uma relação estabelecida pelo afecto e não pela persona social, vinculada ao princípio patrista e pátrio."

Natália Correia, "Pátria ou Mátria?", A Estrela de Cada Um, p.107. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2004.


"Consumada que é a Pátria, falta dizer Mátria para que no tempo os amantes escrevam o nome da realidade unificante: Frátria."

Natália Correia, Espólio (D9), Biblioteca Nacional de Lisboa, citado em José Eduardo Franco e José Augusto Mourão, A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa - Escritos de Natália Correia sobre a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo, p.229. Lisboa: Roma Editora, 2005.

Lima de Freitas, O Milagre das Rosas, Acrílico sobre Madeira, 1987.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os Arcanos Menores - As Quatro Raízes

Ás de Ouros - Terra

Elemento Estrutural

PRINCÍPIO DA CRIAÇÃO - O Ás de Ouros representa a raiz da Criação. O elemento criador da Natureza tem neste arcano a sua génese. É a Natura Naturans, a essência activa da Natureza e da Criação. 

Ás de Espadas - Ar

Elemento Estrutural

PRINCÍPIO DA INTELIGÊNCIA - O Ás de Espadas representa a raiz noética da realidade. É o Pensamento enquanto agente estrutural de todas as coisas. Neste arcano, a Gnose é apresentada como caminho. 

Ás de Copas - Água

Elemento Dinâmico

PRINCÍPIO DO AMOR - O Ás de Copas representa a raiz do Amor. Este é o arcano do Amor Incondicional, do Amor de Deus. É a expressão dinâmica da Terceira Pessoa da Trindade, o Filho, o que une em si o Amor e o Logos.
 
Ás de Paus - Fogo

Elemento Dinâmico

PRINCÍPIO DO VONTADE - O Ás de Paus representa a génese da Vontade. É a actividade dinâmica da Vontade como elemento criador. É a expressão da Primeira Pessoa da Trindade, o Pai, o que oferece a Acção com Finalidade. 


NOTA: Dos três elementos da Trindade, Vontade, Sabedoria e Amor, Pai, Mãe e Filho, o único que não está representado nestas quatro raízes é a Segunda Pessoa. A Mãe é o Grande Arcano, o Mistério último do Tarot. É no seio da Sacerdotisa que repousa a Sabedoria. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Algumas Reflexões Mitológicas acerca do Signo de Escorpião

Constelação de Escorpião

Escorpião é o oitavo signo do Zodíaco e forma com Touro o eixo que indica a oposição/complementaridade entre a Vida e a Morte. Na viagem da alma, o Eu conhece os mistérios da criação. O Bíos de Touros une-se ao Thánatos de Escorpião, expressando o sentido da própria natureza. O elemento estrutural da Terra funde-se ao elemento dinâmico que é a Água. 

Na atribuição dos Doze Trabalhos de Herácles a cada um dos signos, Escorpião é simbolizado pela destruição da Hidra de Lerno. A hidra, que, por vezes, é representada como uma serpente, nasceu da relação entre Tífon e Equidna, com corpo de cão e com nove cabeças, umas das quais era imortal. Hera criara este ser com a intenção de matar Herácles. O monstro ameaçava a fertilidade daquela terra e transformara o pântano que lá existia num lugar fétido. A destruição da Hidra tornou-se assim num imperativo, daí que Euristeu fizesse da sua morte um dos trabalhos do herói. Atena, ajudando Herácles, pondera sobre a melhor forma de matar a Hidra. Desta forma, seguindo os conselhos da deusa, Herácles fez com que o monstro deixasse o seu covil. Lançou-lhe flechas em chamas. A Hidra deixou, por fim, o seu refúgio e é nessa altura que o herói a deteve. Tentou feri-la com uma maça, mas em vão, pois sempre que lhe cortava uma cabeça cresciam outras três.
Guido Reni, Hércules derrotando a Hidra de Lerna, 1617-20. Paris: Museu do Louvre. 

Hera não estava satisfeita com a possível morte da criatura e tentou encontrar uma forma de a socorrer. "Um enorme caranguejo irrompeu do pântano para ir ajudar a Hidra, e mordeu os pés de Herácles que, furioso lhe esmagou a casca, gritando ao mesmo tempo por Iolau" (Graves, 476). O amigo do herói e seu companheiro de viagem ateou fogo ao bosque circundante, restringindo assim os movimentos da Hidra. Depois, começaram cauterizar as cabeças cortadas do monstro, impedindo assim que lhe nascessem outras. Héracles percebeu a sua vantagem e, munido da sua espada, cortou a cabeça imortal da Hidra e enterrou-a. Hera, apesar do desagrado, recompensou o caranguejo e colocou-o entre as estrelas, tornando-o o quarto signo do Zodíaco. Euristeu, contrariado pela ajuda de Iolau, deu o trabalho como cumprido.

Junito de Souza Brandão, na sua obra Mitologia Grega, considera que este mito simboliza, por um lado, um ritual aquático, baseando-se na natureza da Hidra, e, por outro, numa superação ou sublimação dos vícios que são representados pela natureza do pântano onde o monstro habitava. Alice A Bailey diz que "Hércules faz três coisas: ele reconhece a existência da hidra, procura pacientemente por ela, e finalmente a destrói. É necessário ter discriminação para reconhecer a sua existência; paciência para descobrir a sua toca; humildade para trazer lodosos fragmentos do subconsciente à superfície, e expô-los à luz da sabedoria." (140).

Em Carneiro, nasce a personalidade, em Leão, a individualidade, mas é em Escorpião que se dá a morte do Ego e o renascimento de um novo ser, um ser integrado num mundo, apto para se aproximar do véu da Sabedoria, condição esta que se dá em Sagitário. Este processo de integração e de realização vai atingir o fim de um ciclo em Peixes, quando se der a fusão do Eu com o plano divino. A individualidade entrega-se à cruz, a centelha une-se ao fogo divino, daí que, em termos elementais, se deva fazer a distinção entre elementos estruturais - Terra e Ar - e elementos dinâmicos - Água e Fogo. É na passagem entre os dois elementos dinâmicos que se operam as grandes transformações. A morte inicia-se na Água e o renascimento atinge o seu auge no Fogo. É nos signos de Água que o Eu encontra as três mortes: em Caranguejo, rompe-se o cordão umbilical da Natureza e nasce a Luz da individualidade; em Escorpião, perece o Ego e a vida instintiva e renasce um novo ser, um Humano preparado para conhecimento de Sophia; e, em Peixes, o Humano sacrifica a sua identidade, unindo-se à origem, e renasce uno com Deus.

A morte que ocorre em Escorpião está também intimamente ligada com a união sexual, daí que seja neste signo que o binómio Amor e Morte tenha a sua maior expressão. Em Touro, o amor é Vénus e, em Escorpião, é Marte. É importante fazer esta distinção, pois é através dela que se compreende a grande diferença nas pulsões sexuais. Escorpião é a sede do desejo e do instinto, é uma natureza sem rédeas, nem freios. O mito de Herácles e da Hidra refere também essa ligação à natureza através da inclusão de um caranguejo na sua história. Em Caranguejo, a Natureza opera em silêncio e cria a vida, já em Escorpião, a natureza apresenta-se na sua dimensão destruidora, ela é o vulcão que entra em erupção. A destruição e a morte que são próprios deste signo não são um fim em si mesmo, são sim uma condição de possibilidade, um processo de transformação.

Outro mito que é inseparável da natureza de Escorpião é o do Órion. Órion era um caçador da Híria, filho de Posídon e de Euríale, e um homem de beleza imensa. A certa altura, quando chegou à ilha de Quios, Órion apaixonou-se por Mérope, filha de Enópion e neta do deus Diónysos. Enópion disse que daria a mão da sua filha, se o famoso caçador matasse todas as feras que ameaçavam as redondezas. Órion cumpriu a tarefa. Porém, Enópion, que queria Mérope para si, argumentou, referindo que ainda existiam leões, ursos, lobos e outros animais perigosos. Órion sentiu-se desmotivado por uma  tarefa sem fim e, numa certa noite, depois de ter bebido demais, entrou no quarto de Mérope e forçou a união. Enópion, furioso, pediu a Diónysos que o vingasse. O deus do entusiasmo ordenou que um grupo de sátiros o embebedassem. Órion estava quase inconsciente e, nesse momento, Enópion abeirou-se do herói e arrancou-lhes os olhos e abandonou-o. Órion para recuperar a visão teria de viajar para este e vislumbrar Hélios de frente, teria de se deixar banhar pelo Sol nascente. O caçador assim o fez. Apolo, que tinha ciúmes do herói pela sua recente união com Eos, fez com que Gaia enviasse um escorpião gigante para o eliminar. Órion lutou com o perigosos animal, mas foi incapaz de o ferir. Teve, portante, de fugir, de lançar-se ao mar e nadar para longe. Apolo, temendo que a irmã Ártemis se apaixonasse por Órion, tal como acontecera com Eos, criou um embuste. Disse a Ártemis que aquele que nadava, lá ao longe, era o devasso que seduzira uma das suas sacerdotisas hiperbóreas, depois desafiou-a, perguntando-lhe se era capaz de o matar com uma seta certeira, desferida do seu arco preciso. Ártemis assim o fez. Quando percebeu o engano, lamentou a morte do herói e pediu a Asclépio para o ressuscitar, mas Zeus impediu-o. Desta forma, a única forma de recompensa foi colocá-lo no céu, entre as estrelas, juntamente com o escorpião que o perseguiu.    

Este dois mitos, aos quais ainda se podia juntar o de Orfeu e de Eurídice, têm elementos comuns que são fundamentais para compreensão do signo de Escorpião. O sexo, a violência, a luta, os desafios, a morte e o renascimento são características que se fundem e que, juntas, confirmam a natureza deste senhor do Zodíaco. 

O peregrino do Zodíaco, o Eu em viagem, enfrenta o grande desafio, a luta pela sua identidade. Para sair vitorioso, tem de perder o que trazia consigo. O medo, os vícios, as prisões do Ego têm de ser eliminadas. É então que o herói enfrenta a morte, a sua própria morte, só assim poderá renascer. E este renascimento, esta conquista da Luz só é possível com a ajuda da Deusa. O arquétipo feminino é a luz no caminho, a recompensa no termo da viagem.   



Bibliografia:
Bailey, Alice A., Os Trabalhos de Hércules. Tradução J. Treiger. Niterói (Rio de Janeiro - Brasil): Fundação Avatar, 2008.
Brandão, Junito de Souza, Mitologia Grega, 3 Volumes. Petrópolis (Brasil): Editora Vozes, 2007.
Graves, Robert, Os Mitos Gregos. Tradução Fernanda Branco. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª Edição, 2004.
Sicuteri, Roberto, Astrologia e Mito. Tradução Pier Luigi Cabra. São Paulo (Brasil): Editora Pensamento, 1994. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Uma Outra Teologia (Teosofia)

A Vontade, enquanto primeiro aspecto, pessoa, da Divindade apresenta-se como Deus em acto. O Silêncio que é a Mãe da Trindade é Deus em potência, pois é do Silêncio que nasce o Pai e a Mãe, ou seja, a Vontade e a Sabedoria. O Pai representa Deus em movimento, uma vez que é pela Vontade que o obra divina que se realiza. Já a Mãe representa Deus enquanto conhecimento de si mesmo, pois é pela consciência do Bem, da Justiça e da Beleza que a obra divina que se realiza, ou seja, a Sabedoria atribui uma finalidade ao projecto divino. O Pai e a Mãe geram a síntese da sua natureza, o Filho torna-se o Logos da Criação, o Amor que em tudo está presente. Sobre o Divino só não se falar do Indeterminado que é a Origem do Silêncio. A palavra fica aquém do entendimento.   

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Tarot: Um Itinerário Divino em Imagens

O Indeterminado
A Origem Incognoscível
O Inominável
(no plano humano, representa o Peregrino)

                                      
  O Pai Divino                                                      A Mãe Divina
 A Vontade                                                         A Sabedoria

O Amor Divino
A União do Pai e da Mãe
A Génese do Filho

O Filho Divino
O Logos
A Palavra Divina
O Amor Divino em Acto

O Ser Humano
A Centelha Divina

sábado, 12 de outubro de 2013

Do Amor


AMOR

"De todas as qualidades, o Amor é a mais importante, pois sendo bastante forte num homem, obriga-lhe a aquisição de todas as demais qualidades, que não bastariam sem o Amor. Frequentemente é expresso como um intenso desejo de se libertar da roda dos nascimentos e das mortes e de se unir a Deus. Entendê-lo, porém, desse modo, denota egoísmo e abrange apenas uma parte da sua significação. Não é tanto o desejo, como a vontade, a resolução, a determinação. Para produzir seus resultados, essa resolução deve encher de tal modo toda a tua natureza que não deixe lugar para qualquer outro sentimento. É, na verdade, a vontade de ser uno com Deus, não para escapares à fadiga e ao sofrimento, mas para que, pelo teu profundo amor por Ele, possas agir com Ele. E porque Ele é Amor, tu, se quiseres unir-te a Ele, deves encher-te de profundo desinteresse e de amor."

Krishnamurti (Alcione), Aos Pés do Mestre, pp. 30-1. São Paulo: Editora Pensamento/Cultrix, 2004.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Uma Oração a Ísis: O Burro de Ouro de Apuleio



- Rainha do céu - sejas tu a Ceres nutriz, mãe e criadora dos cereais, que, transbordante de alegria por teres encontrado a tu filha, puseste fim ao antigo e selvagem costume de comer bolotas, mostrando-nos como desfrutar de um tenro alimento, e agora cultivar os campos de Elêusis; sejas tu a Vénus celestial, que nos primeiros tempos do mundo uniste os sexos opostos, ao conceber o Amor, e garantiste a propagação do género humano através de um eterna renovação da sua descendência, sendo agora objecto de culto em Pafos, num templo circundando por ondas; sejas tu a irmã de Febo, que alivias com remédios calmantes as dores de parto, ajudando assim a criar multidões de povos, e és agora alvo de veneração nos ilustres santuários de Éfeso; sejas tu Prosérpina, que inspiras terror com os lamentos nocturnos e cuja face triforme detém o avanço dos espectros, ao manter encerrada a passagem para os superiores domínios terrestres, tu que andas errante por bosques diversos e és propiciada através de cultos vários. Com essa tua luz feminina, alumias todas as muralhas, e com esse calor húmido alimentas as férteis sementes e, em tuas solitárias circunvoluções, dispensas uma luminosidade incerta - seja qual for o nome, o rito, a aparência com que for lícito invocar-te: vem tu agora em meu auxílio, na meta extrema das minhas provações, fortalece tu a minha desfalecida fortuna, concede-me tu a paz e o sossego, no termo de tão cruéis desventuras; já basta de canseiras; já basta de perigos!  

Apuleio, O Burro de Ouro, 11, 2. Tradução de Delfim Leão. Lisboa: Livros Cotovia. 2007.