terça-feira, 18 de dezembro de 2018

A Humanidade em Tempos Sombrios (Poesia)

Yáñez de La Almedina, Fernando, Santa Catarina, 1505-10. 
Madrid: Museu do Prado.
A Humanidade em Tempos Sombrios

À minha filha Maria Madalena.

Quando o ódio galgar o humano
Pratica a nobre arte da contenção
Mede a palavra cultiva o pensar
Não dês lume ao fogo ignorante

Quando a ética for apenas nome
Palavra perdida num livro morto
Sê somente o melhor de ti mesma
E não deixes nunca que a sombra
Do passado te devore o amanhã

Quando tudo for líquido superficial
Efémero como a espuma da vaidade
Firma a gravidade no que é eterno
E acredita que sozinha serás o humano

Quando a sombra se estender em ti
Ergue a candeia no obscurantismo
E diante do mal comum ou universal
Sê o colosso da nossa humanidade
Um baluarte de bondade e concórdia

Quando a ignorância semear caminho
Concede o sal à terra e sê a fertilidade
De uma sábia via deixando à história
Às páginas revisitadas a lição do futuro

Quando os tempos forem sombrios
Permite ao Sol a luz da humanidade
E se tudo estiver perdido tombado
Sobre a profundidade do seu abismo
Não te percas tu permanece sempre
Humanamente humana e acredita

RMdF 15/11/2018

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O Mistério da Morte

A Morte
Tarot Rider-Waite

A Morte é aquele elemento de passagem que parece destruição, mas, na verdade, é apenas desaparecer do olhar.

A Morte é o dom do esquecimento, o processo de purgar o superficial e de chamar a si o que dá profundidade à alma.

A Morte é aquela presença que, no universo, se funda na dualidade e que, com o Amor, reunida e separada, cria e destrói.

A Morte é a mudança, o eterno fluxo de um rio que corre, que, com a Vida, alternadamente governa e é governada.

A Morte é aquela sábia lição que nos adverte que o amanhã pode ser seu, devemos portanto colher os frutos do agora.

A Morte é o aviso constante que relembra que na dança da morte todos vão participar, relativizando pois todas as acções.

A Morte é a representação do reinado do Senhor do Tempo, aquele que num momento dá e noutro tira, levando consigo reis e plebeus.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Coração Divinamente Inquieto (Poesia)


Coração Divinamente Inquieto
Bartolomeo, Fra, God the Father with
Sts Catherine of Siena and Mary Magdalena, 1509.
Lucca: Museo Nazionale di Palazzo Mansi.



Como podes ser um estranho
E ser um mistério também
Porque se és um estranho
Não podes ser um mistério
Todo o mistério traz consigo
A intimidade que transcende
Os limites de um pensamento
E se és estranho és o outro
Um outro que nem o amor
Que une em si a terra e o céu
Ou aquela primeva harmonia
Dos opostos dos contrários
Pode na sua solidão enlaçar
É o tempo esse tempo meu
Que é memória e afinidade
Que me conta sussurrando
Que não podes ser estranho
Porque vives firme em mim
Como o fogo da minha alma
O sopro eterno do meu espírito
Mas sendo esse tempo vivente
És também um eterno mistério


RMdF 30/10/2018

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Decanatos: A Divisão por Divindades segundo Cosme de Jerusalém


Decanatos: A Divisão por Triplicidades e Signos


Decanatos: A Divisão de Manílio


Decanatos: Faces por Triplicidade


Decanatos: Faces segundo a Ordem Caldaica


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Biblioteca II: Eduardo Gamaglia - Astrologia Hermetica


  Apresento aqui algumas sugestões para uma biblioteca astrológica. Contudo, como critério de coerência, não irei apresentar nenhum livro que não tenha lido. O objectivo é sobretudo apresentar títulos que permitam aprofundar os conhecimentos astrológicos e que, por norma, não sejam os mais comuns. Um dos piores erros em que pode cair um astrólogo é cingir-se ao superficial e cair no lugar-comum e na frase-feita. Deve-se portanto procurar como se nunca nada se encontrasse. Um livro lido deve assim servir de ponte para o seguinte.



Gramaglia, Eduardo, Astrologia Hermetica: Recobrando el Sistema Helenistico.
Buenos Aires: Editorial Kier, 2007
ISBN: 9789501741131
Páginas: 400
Preço: 39€


Comentário

  O livro de Eduardo Gramaglia apresenta um outro lado, não menos importante, no estudo da Astrologia Helenística: a aplicação contemporânea das técnicas antigas. Neste livro, encontramos uma renovada práxis do sistema astrológico helenista, nomeadamente o de matriz hermética, ou seja, este é um texto que, sem ignorar a abordagem teórica, foca-se na utilização astrológica dos princípios antigos. Gramaglia mostra assim, através de exemplos, como as técnicas astrológicas, expressas pelos vários autores antigos, podem e devem continuar a ser experimentadas.

  A principal fonte de Gramaglia é a Antologia de Vétio Valente. Ora esta opção define a vertente hermética do texto e contrasta com o modelo exotérico de Ptolomeu. Esta distinção, que já abordámos em Para uma Leitura dos Textos Astrológicos Gregos e Latinos, apresenta aquela que seria a principal tradição astrológica na Antiguidade e a que marcou a revolução horoscópica do sistema greco-egípcio face à astromancia mesopotâmica. Foi a passagem de um sistema de manteía para um lógos astrológico que permitiu que hoje se defenda que a astrologia é uma forma de linguagem, uma representação do humano e do universo, e não uma técnica oracular. No entanto, como o próprio Gramaglia afirma, referindo-se a uma mesma opinião de Robert Schimdt, a astrologia não se desenvolveu através de séculos de observações empíricas, mas essa integridade e coerência foi obra de um  homem ou de uma escola de homens (p. 16). Naturalmente, estão-se a referir a Hermes e à escola hermética. Gramaglia diz também que, no século IV AEC, o corpus astrológico já se apresentava como um sistema organizado (p.17). 

  Estes aspectos levantam, todavia, algumas dúvidas. Por um lado, não podemos falar de uma creatio ex nihilo, pois existem diversos factores que colaboraram para a génese da astrologia horoscópica e genetlíacal, nomeadamente, o multiculturalismo do império de Alexandre, as tradições astronómicas e mitológicas e a permeabilidade ao contexto filosófico, especialmente, ao estoicismo, platonismo e pitagorismo e, por lado outro, fixar, no século IV AEC, essa estabilidade textual e sistemática parece algo forçado, pois seria mais prudente colocar esse processo entre os séculos III AEC e I EC. No entanto, a tese principal deveria ser comummente aceite, pois tudo indica que a génese astrológica provenha de uma escola hermética. A referência constante aos antigos ou aos antigos egípcios como autoridade prova, de facto, esse mesmo legado. 

  No século I EC, nomes como Critodemo, Teucro ou Trasilo revelam-se, através dos testemunhos e fragmentos, como continuadores desse linhagem, que, por sua vez, passará para Vétio Valento, Fírmico Materno e Paulo de Alexandria. No entanto, depois do legado de Hermes, encontramos, entre o fim do século II e o início do I AEC, os principais transmissores dessa tradição hermética. Nechepso e Petosíris, um faraó e um sacerdote egípcios, são, depois da fundação da astrologia, a base dessa linhagem. Gramaglia, embora force um pouco a tese de uma completa formação astrológica no século IV AEC, é fiel a esta linhagem e ao sentido profundo que ela indica. 

  O livro está dividido essencialmente em duas partes: a primeira é uma introdução à astrologia helenística, aos seus princípios, e a segunda, a maior, consiste na exposição das técnicas interpretativas e preditivas. No primeiro capítulo, que aborda os planetas e as suas significações, Gramaglia defende que a relação entre os planetas e os deuses foi, de um ponto vista filosófico, iniciada pelos pré-socráticos e continuada por Platão. Ora essa relação, que também podemos encontrar na Astronomica de Manílio, serve de alicerce conceptual - e também metafísico - de todo o sistema astrológico. A natureza dessa fundamentação, seguindo os princípios da astrologia helenística e hermética, leva a que os planetas trans-saturninos não tenham de ser excluídos por si só, pois seguem essa uniformidade significativa entre planetas e deuses, entre elementos físicos e ideias. Deve contudo ser contextualizada a sua acção tanto pela distância face à Terra como pela duração temporal dos seus ciclos. Esta posição, expressa por Gramaglia e tendo por base os princípios da astrologia de raiz hermética, difere da posição radical de alguma astrologia tradicional. 

  No capítulo 2, que concerne aos signos zodiacais, Gramaglia mostra que o Zodíaco Tropical serviu mais de resumo de significados, unindo as constelações às divisões em dia e noite, estações do ano e idades do humano, do que uma adopção de um modelo alternativo e sobretudo exclusivo. Um exemplo que demonstra que a visão sideral dos astrólogos antigos era mais abrangente que o que se possa pensar é o recurso à paranatellonta. No capítulo 3, trata-se dos 5 modelos de regências: domicílio, exaltação, triplicidade, termo e decanato. Neste capítulo, faltou, no entanto, a regência por monomoiría. No quarto capítulo, estuda-se o sistema por segmento, haíresis, ou seja, a importância do dia e da noite, do Sol e da Lua, na análise das regências. Neste capítulo e no seguinte, acerca da herança babilónica e do ciclo das fases solares, Gramaglia demonstra a relevância das fases heliacais dos planetas, sobretudo as de Mercúrio e Vénus, no estudo de uma natividade, algo que hoje quase que deixou de ser utilizado, mas que serve, por exemplo, para determinar se Mercúrio assume um carácter masculino ou feminino. Os capítulos seguintes, 6, 7 e 8, apresentam, respectivamente, os aspectos, as casas e as partes. Neste último, encontramos a lista das partes utilizadas por Vétio Valente, mas também a divisão por dodekatemoira. A primeira parte termina com um capítulo sobre a Lua, que, devido à sua importância na Antiguidade, merece um tratamento mais aprofundado.

  A segunda parte é, porém, a mais relevante, pois é, ao longo dos seus três capítulos, 10, 11 e 12, que, de facto, a astrologia helenística de raiz hermética se revela um sistema actual e pragmático, tanto as técnicas de interpretação como as de previsão apresentam-se como modelos teóricos e conceptuais passíveis de contribuírem para uma melhor prática astrológica. O capítulo 10 define uma metodologia interpretativa do tema natal, para tal compara, em primeiro lugar, o método de Doroteu com o de Vétio Valente. A última parte do capítulo explora um método complementar de Valente baseado em quatro partes: a Parte da Fortuna, a Parte do Espírito, a Parte de Exaltação e a Parte da Base. O capítulo seguinte, aquele a que Gramaglia dedicou um maior número de páginas, é o mais complexo. No entanto, mediante o recurso a exemplos, a mapa natais específicos, o autor conseguiu, de uma forma acessível, transmitir ao leitor contemporâneo algumas das técnicas astrológicas mais complexas. O capítulo 11 é denominado de Pronoia: o Sistema Preditivo. Ora o termo grego  πρόνοια tem aqui tanto o sentido mais imediato de previsão como também o de providência. Este último aproxima, por exemplo, a astrologia da concepção estóica de destino. Gramaglia, no início do capítulo, introduz o problema clássico de conciliar o determinismo com a liberdade, referindo a opção dos astrólogos modernos em traçar tendências e não previsões. Contudo, essa alternativa depressa se torna artificial, pois a questão de fundo precisa necessariamente de uma abordagem filosófica.

  O capítulo 11 inicia a sua exposição dos métodos preditivos com a análise de um conceito fundamental para o desenvolvimento das técnicas em causa, o de Chronocrator, o regente do tempo. Este conceito resulta naturalmente de uma filosofia do tempo, de uma atribuição de valor a um determinado momento, o que conduz naturalmente a uma visão espiritual e esóterica. O tempo torna-se electivo e os gregos tinham um termo para esta consciência temporal: καιρός, o tempo certo ou o momento oportuno. Gramaglia analisa, de seguida, seis técnicas preditivas. Convém antes de mais fazer a mesma ressalva que faz o autor. Os trânsitos não são para o astrólogo antigo um método independente, mas sim o complemento de outras metodologias.  A razão prende-se ao facto de os trânsitos resultarem da acção dos ciclos planetários sobre a natividade e não de uma distribuição a partir dela. 

  A primeira técnica descrita é a profecção, cujo termo vem do latim proficiscor - avançar, marchar. Esta, bem como os outros métodos, sustenta-se numa ideia muito cara à astrologia helenista que é expressa pelo verbo grego έκβάλλω, ou seja, lançar ou liberar. No caso da profecção, por cada ano, uma determinada posição, seja ela a de um planeta, ponto na eclíptica ou parte, é lançada para o signo seguinte e não necessariamente para os 30° seguintes, pois esta fixa-se num sistema de divisão de casas de casa-signo, o que implica uma mudança de casa. O método seguinte é aquele que conjuga os ciclos planetários com os tempos de ascensão. Este, pela sua complexidade, é quiçá o método que melhor conjuga a astrologia com astronomia antiga, pois o cálculo dos tempos ascensão, baseados na obliquidade da eclíptica, mostra o quão próximas são as duas formas de conhecimento. 

  O terceiro método é o da aphesis e do cálculo do arco da vida. Esta técnica é a que mais mal-entendidos tem gerado, pois tem levantado questões éticas em relação a possibilidade do astrólogo calcular o termo da vida. Gramaglia defende que o fim do arco da vida ou a intercessão deste por um anareta, um destruidor, aponta mais para uma perda de vitalidade que para a morte do nativo. No entanto, a teoria afética tem uma aplicação mais abrangente que o mero cálculo da duração da vida e mesmo esta não deve ser desprezada com base num mero preconceito contemporâneo. O astrólogo não deve cair na tentação de dizer que é tudo bom, pois as crises, a destruição e a morte também fazem parte da vida.

  O quarto método é designado por Gramaglia de Diairesis: A Subdivisão dos Períodos Planetários. Ora o termo grego διαίρεσις tem o sentido de divisão, distribuição ou distinção e, neste caso, indica uma divisão e distribuição dos períodos planetários, em especial, dos períodos médios. Na análise deste quarto método, encontramos duas técnicas bastante interessantes: a circunvolução e a divisão do tempo a partir das partes da fortuna e do espírito. Esta última técnica, que Gramaglia apresenta em pormenor e com exemplos práticos, pode surpreender o astrólogo que a desconheça pelo seu potencial, tanto que deve ser conjugada com o tema da fortuna. O procedimento de fazer da Parte de Fortuna o Ascendente, o que aliás pode ser feito com qualquer parte, ponto ou astro, revela que a natividade era para a astrologia helenística - e em particular para a de tradição hermética - uma estrutura dinâmica.

  O quinto método, embora tenha a denominação medieval de Decénios (lat. decennium), ou seja, uma divisão em décadas, pode ser encontrado em Vétio Valente, Fírmico Materno e Heféstion de Tebas. É um método mais simples que os anteriores, mas com uma estrutura coerente e facilmente aplicável. O sexto e último método refere-se à Revolução Solar, que, na verdade, chega até nós por via da astrologia árabe, em especial, pelo contributo de Abū Ma'shar. No entanto, embora não tenhamos um texto antigo com uma metodologia para esta técnica, podemos encontrar nos textos várias indícios e referências, nomeadamente em Doroteu e em Vétio Valente.  O termo grego para este método é άντιγένεσις. A Antigénesis não é, todavia, um método que seja independente, ela surge, em particular, em combinação com a profecção. Valente descreve, por exemplo, a necessidade de se produzir a Antigénesis de forma observar-se a Revolução Lunar que ocorre no mês solar natal. Esta não é, porém, uma técnica tipicamente helenística.

  No último capítulo, Gramaglia explora os temas mais comuns numa consulta astrológica, seguindo as técnicas enunciadas pela tradição hermética da astrologia helenística. O primeiro tema é o do casamento, no qual podemos encontrar, por exemplo, as partes do casamento de Vétio Valente e de Paulo de Alexandria e a relação entre os amores ocultos e as fases solares. O segundo tema é o dos filhos. Neste ponto, analisa sobretudo a metodologia de Paulo de Alexandria. O terceiro tema é o da vocação ou profissão, que explora separadamente as posições de Paulo de Alexandria, Heféstio de Tebas, com referências directas a Doroteu de Sidon, e Fírmico Materno. O último tema é o da espiritualidade e do estado interno do nativo. Gramaglia esforça-se - e bem - por mostrar que, contrariamente a uma visão mais estreita que tende a persistir, a astrologia antiga, em especial, a hermética, abarca a espiritualidade. O recurso, por exemplo,  à Parte do Espírito, às fases heliacais ou ao eclipse pré-natal pode revelar-se bastante elucidativo. 

  Em suma, o livro Astrologia Hermetica: Recobrando el Sistema Helenistico de Eduardo Gramaglia é um importante contributo para o estudo da astrologia, pois ajuda a desmistificar alguns preconceitos, mostrando, nomeadamente, que a astrologia dita tradicional não é toda igual e que o sistema hermético é aliás bastante actual e, por outro lado, torna acessível uma forma de astrologia que tende a ser considerada erudita e académica, quando, na verdade, está ao alcance de todos.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Humano Atlas (Poesia)

Warburg, Aby, The Mnemosyne Atlas, 1929, Painel B.


Humano Atlas


Cartografado o velho mapa
Da imagem e da memória
Repousa no nosso ocaso
Da Mnemósine imensa
O registo desse guardador
Textuante de eleita palavra
E pigmentada representação


RMdF 12/10/2018

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O Sacrifício do Dependurado

O Dependurado
Tarot Rider-Waite


O Dependurado é o repouso, o regresso ao silêncio inaugural, que confere gravidade ao fim de um ciclo.

O Dependurado é a expressão humana que conduz ao entendimento de que a queda é apenas a procura do centro. 

O Dependurado é aquele que entrega o medo de não ser quem julga que é ao sacrifício da sua própria vontade. 

O Dependurado é a tensão da solitude, o conflito interno de encontrar o lugar do humano entre a natureza e o divino. 

O Dependurado é a humana certeza, do ser espiritual, na derradeira finalidade da fé, na contemplativa esperança.

O Dependurado é aquele que, no verdadeiro caminho, não avança, nem recua, não age, nem reage, mas eleva-se, levita. 

O Dependurado é a síntese humana do ser zodiacal, a revelação do espectro solar e a acção da luz sobre a alma.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Sermão do Amor que Deus é

David, Gerard, O Casamento em Caná, c.1500.
Paris: Museu do Louvre.



o mè agathôn ouk égnô tòn theón, 
hóti o theòs agápê estín.

Primeira Epístola de São João, 4, 8.



  Deus é Amor e aquele que ama, para amar verdadeiramente, terá de destruir o muro alto que torna o outro em morte. A destruição que a morte produz é sempre esse outro que avança, sem rosto, até nós. Porém, se, como um dilúvio, transbordares para além de ti o Amor que Deus é, a morte deixa de existir. O Amor que Deus é vive permanentemente. 

  Não te deixes enganar e julgues que transbordar o Amor que Deus é se afirma como coisa fácil, pois não o é. Transbordar de Amor implica ir para além de ti próprio e, despojado, avançar pela força do Amor que Deus é para o reino que a morte governa. A cada passo que deres, nessa alameda amorosa, perderás uma parte de ti, não o lugar Deus habita, mas sim a superfície de todas as vaidades, as camadas profundas de ignorância, erro e ilusão. 

  Por vezes, existem passos que são dolorosos, onde caminharás, descalço, sobre pedras aguçadas, pois não queres perder aquilo que julgas que é teu. Como tens tantas superfícies vãs sobre a pele da tua alma, não sabes que aquilo que é verdadeiramente teu é tão pouco, que é o que basta. 

  Aquele pequeno lume, aquela chama que, escondida, ocultas entre as tuas mãos, guardada no abismo da tua existência, é tudo aquilo que és. Esse pequeno lume, pela força do Amor que Deus é, pode conflagrar o universo e consumir tudo o que permanece apartado, fechado na confusão das coisas. 

  O Amor que Deus é está em ti como uma estrela no firmamento. Tu és a tua própria constelação. E, com a liberdade que emana da Providência, poderás escolher a ilusão daquilo que pensas que és ou diluíres-te na imensidão do Amor que Deus é. Na verdade, aquilo que julgas que é uma escolha não passa de uma afirmação da vontade, não daquela que move as paixões e a ignorância, mas sim aquela que é uma e a mesma.

  A Vontade de Deus é também a tua vontade, mas para compreenderes esse mistério terás de te despir de todas as vaidades, da ilusão que alimenta a tua identidade, e avançar como um recém-nascido na senda do Nada, da anulação da ignorância. Quando compreenderes que o mal é apenas a força confusa da ignorância, poderás imergir na vastidão da Vontade, da Sabedoria e do Amor. Essa Trindade surge à humanidade como Pai, Mãe e Filho.

  O Amor que Deus é revela-se como um dos três caminhos, aquele que surge da síntese da Vontade e da Sabedoria e que conduz ao Divino Indeterminado, o Deus que não pode ser nem palavra, nem pensamento. Somente no Nada conhecerás a totalidade de Deus. Essa é a verdade que tanto vezes negas. Sê portanto o Amor que Deus é.


RMdF
04/09/2018

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Ekpyrosis da Alma (Poesia)


Cossiers, Jan, Prometheus Carrying Fire, 1637. 
Madrid: Museo del Prado.

Ekpyrosis da Alma



Se brilha a alma
Não sejas lume
Brando e manso


Sê o incêndio
Que conflagra
Terra e gente
De ignorância
Contaminada


Sê o fogo cósmico
Que cria e consome
Que nasce e renasce


Sê o abismo
E a montanha
A paz e a guerra


Sê água e fogo
Dilúvio imenso
Incêndio universal


RMdF 04/09/2018

A Sabedoria não tem Idade (Poesia)

Watteau, Jean-Antoine, A Dança, 1716-18.
Berlim: Staatliche Museen.

A Sabedoria não tem Idade

Vetusta criança 
Que antes de ser
Já de si o era
Que nos lábios
Colheu o passado
A secura do Letes

Doce pueril anciã 
Que do fio tecido
A memória guardou
E sem aquela sombra 
Da morte escura
Ou da vida olvidada
Todo o tempo velou

Venerável petiz
Por não ter anos
Mas sim idades
De ceifar a hora
Eleita e certa
Tornou-se a alma
Prudente e sábia
Negada e simples

Prístina menina
Que ao dançar
Muito recordas
De outras eras
Outras danças
Quando foste
Menina mãe
Viúva Trindade
Como o tempo


RMdF 03/09/2018

sábado, 22 de setembro de 2018

A Luz que o Eremita guarda

O Eremita
Tarot Rider-Waite


O Eremita é aquele que resume em si a gestação do espírito e que multiplica, na consciência, o mistério da Trindade.

O Eremita é a candeia da sabedoria, ignorada e rejeitada, e a voz do exílio que, na solidão, contempla a hora de ressurgir. 

O Eremita é aquele que guarda a chama sob o manto como se fosse a síntese da realidade, a inteligência que impera sobre as coisas.

O Eremita é o mestre dos sonhos e peregrino da imaginação que,  despojado, só com a força interior, oferece uma estrela à escuridão. 

O Eremita é aquele que transforma o som das gentes e o desespero da multidão no silêncio da alma e na paz do espírito.

O Eremita é um louco renascido, um caminhante que seguirá a via da noite, guiado pela luz Lua.

O Eremita é aquele que é um pastor da verdade sem rebanho e um senhor da vontade que é poder, pois ao amar domina a Sabedoria.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O Fado do Velho Príamo (Poesia)

Ivanov, Alexander, Príamo a pedir a devolução do Corpo de Heitor, 1824.
Moscovo: Galeria Tretyakov.

O Fado do Velho Príamo

Despojado de si
Crente em Apolo
Indiferente e ledo
Segue suplicante
De Tróia o rei Príamo

Roga ao meio deus
O corpo do filho morto
Ao belicoso carrasco
Implora o recto juízo 
Clama só a justa morte

Na noite da negra Nyx
Espera sem sorte ou arte
Uma prudente luz
Da luminar razão 
E sem nada almejar
Além da morte certa
Suplica a benevolência
De um cruel algoz

Áquiles surpreso decide
Sem puder recusar
Dar o corpo morto
Aos lúgubres lumes
Nem sempre a espada
Move a ilustre coragem
E pode a superna alma
Ter força de falange

Príamo o suplicante
Fez de glória vã
A vitória de Aquiles
E deu ao morto Heitor
A sombra da dignidade

E na noite avançou
Como vazio vulto 
Para a morte próxima
Pras perdidas ruínas 
Da sua nobre cidade

Assim seguiu despojado
De Tróia o rei Príamo

Assim pela morte vai
E à morte regressa

18/08/2018 RMdF

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Desenhar o Corpo Humano (Poesia)

Da Vinci, Leonardo, Estudo das Mãos, c. 1474.
Windsor: Royal Library.
Desenhar o Corpo Humano

Não nem lápis ou carvão
Nem pincel ou pigmento
Nem martelo ou cinzel
Virgem a tela despida
Frio o mármore casto
E apenas com o aparo
E aquele fluído índigo
Se cria a forma informe
Sugerida por símbolos
E conformados sinais
Com traços de alfabeto
E sombras de metáfora
Seguindo sós e textuantes
Esses sulcos de tinta
Na folha alba plantados
Sem rosto ou corpo
Da mão poética gerado
O desenho do corpo humano

08/07/2018 RMdF

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Biblioteca I: Dorian Gieseler Greenbaum, The Daimon in Hellenistic Astrology

Apresento aqui algumas sugestões para uma biblioteca astrológica. Contudo, como critério de coerência, não irei apresentar nenhum livro que não tenha lido. O objectivo é sobretudo apresentar títulos que permitam aprofundar os conhecimentos astrológicos e que, por norma, não sejam os mais comuns. Um dos piores erros em que pode cair um astrólogo é cingir-se ao superficial e cair no lugar-comum e na frase-feita. Deve-se portanto procurar como se nunca nada se encontrasse. Um livro lido deve assim servir de ponte para o seguinte.


Greenbaum, Dorian Gieseler, The Daimon in Hellenistic Astrology: Origins and Influence.
Leiden e Boston: Brill, 2015.
ISBN: 978-90-04-30621-9
Páginas: 574
Preço: 190.00 €


Comentário

Este livro reproduz a tese de doutoramento da autora, apresentada ao Instituto Warburg da Universidade de Londres. O conceito de daimon (daímōn) serve de base para toda a investigação. Ora este termo, bem como o de týchē, fortuna, como demonstra Greenbaum, estão na origem de alguns dos mais relevantes conceitos astrológicos, como por exemplo as casas V, VI, XI e XII e as partes da fortuna e do espírito. Greenbaum usa em epígrafe inicial o fragmento de Heraclito que serve de mote para toda a conceptualização em torno da palavra daimon: ēthosἦanthrópōi daímōn (O carácter é para o ser humano o seu destino). O termo daímōn surge aqui como indicador do destino, o que está em sintonia com seu significado primordial de demiurgo, de ser intermediário. 

Na primeira parte do livro, Greenbaum explora os conceitos de daímōn e de týchē enquanto representações culturais, religiosas e filosóficas e, recorrendo a um vasto número de fontes antigas, com especial destaque para Plutarco e Vétio Valente, analisa a relação entre os dois termos. Ora dessa relação nascem dois princípios duais: Agathós Daímōn e Agathē Týchē, de um lado, e Kakós Daímōn e Kakē Týchē, do outro. Estes princípios estão na génese das casas V e XI e VI e XII e da sua atribuição quer aos benéficos, Vénus e Júpiter, quer aos maléficos, Marte e Saturno. Estes dois conceitos, de extrema importância sobretudo no período helenista, foram como alicerces para a criação do sistema astrológico tal como o conhecemos. A astrologia foi sobretudo uma criação egípcia de matriz grega, tendo como suporte astronómico a evolução científica em torno da herança babilónica. A divisão da eclíptica, enquanto modelo conceptual, em casas, decanatos, termos, dodecatemoria ou monomoiria e as relações geométricas e simbólicas que resultam da presença dos planetas nesse modelo são um produto do helenismo alexandrino. As concepções filosóficas e religiosas em torno das ideias de daímōn e de týchē foram acolhidas pela astrologia que, por sua vez, renovou as suas significações.

Na segundo parte, é abordada a natureza do conceito de daimon enquanto mediador. A relação com a esfera divina traduz-se numa análise do neoplatonismo, do gnosticismo e mitraísmo, passado naturalmente pela noção do daimon pessoal. Nesta parte, aborda-se também a presença da ideia de daimon nos papiros mágicos e no corpus hermeticum ou hermetica. Aquando desta última fonte, Greenbaum firma nas estrelas  o nascimento dos daimones, o que está em estreita ligação com os últimos capítulos desta parte. O estudo em torno dos decanatos mostra o sentido profundo deste conceito astrológico que deve mais aos decanos egípcios que à ideia limitada de faces. Greenbaum analisa a forma como os vários autores antigos abordam este tema. A tradição que vai Teucro de Babilónia até Heféstion de Tebas, chegando até Cosme de Jerusalém, é fundamental para que a astrologia contemporânea construa uma teoria dos decanatos que se funde para além dos períodos de dez graus e das regências planetárias. Este parte termina com a análise da obra de Porfírio, em especial, no que à noção de oikeîos daímōn (daimon pessoal) concerne. Esta ideia permite o sentido astrológico que une a individualidade ao destino.

Na terceira parte, Greenbaum estuda a relação de daimon com as partes astrológicas, klēroi. Estas são, segundas as palavras da própria autora, uma das principais técnicas da astrologia helenista. Ao ler-se esta terceira parte, ninguém voltaria a designar as partes por partes arábicas. A parte da fortuna ou roda da fortuna,  como hoje a designamos, é em grego týchē e a parte do espírito é o daímōn. Estas duas partes, como representantes do Lua e do Sol, estão na origem do cálculo das outras partes, quer seja elas a pouco conhecida parte da base ou fundação (básis), as partes herméticas ou planetárias de Paulo de Alexandria ou as partes de Eros e da Necessidade de Vétio Valente. Segundo a tradição, as partes teriam sido criados por Hermes e passadas a Nechepso e Petosíris. A razão que origina as partes é mesma que se inscreve no procura da duração da vida. Greenbaum analisa, com erudição, os vários testemunhos e teorias sobre esta profunda relação entre as partes e a vida. O leitor pode, sem esforço, perceber que as partes são um importante legado da astrologia helenista e que têm uma aplicação mais integrada na linguagem astrológica que o uso que posteriormente lhe foi concedido. 

Nos apêndices, encontramos, numa primeira parte, uma síntese dos elementos da astrologia helenista e, numa segunda, a apresentação das principais fontes e das respectivas traduções. O livro de Greenbaum é um importante contributo para a dignidade da astrologia enquanto forma de conhecimento e é também a prova de que astrologia pode e deve ser estudada em meios académicos. Para o leitor menos familiarizado com a cultura clássica, a leitura pode ser um pouco densa, mas o que se ganha compensa o esforço. Este livro será sempre uma valiosa aquisição para uma biblioteca astrológica, seja ela física ou digital.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

A Justiça que permeia o Mundo

A Justiça
Tarot Rider-Waite

A Justiça é a eterna lei do equilíbrio e da harmonia que está guardada no centro da criação, no lugar onde o intelecto tudo vigia. 

A Justiça é o princípio que une a alma do mundo, o macrocosmo, ao humano, o microcosmo, que é a sua imagem e representação.

A Justiça é aquela força primordial que tudo domina e que tanto pode ser chamada de destino como de providência.

A Justiça é a eterna lei que conjuga a Vontade com a Providência, concedendo ao humano o dilema de dar liberdade ao destino.

A Justiça é o princípio universal da justa medida que, no universo, na natureza e no humano, balanceia o potencial e a acção.

A Justiça é aquela verdade que quando não é uma abstracção, torna-se naturalmente a unidade espiritual do perdão.

A Justiça é, para o ser humano, o equilíbrio entre o dom e o esforço, o mistério que permite o casamento do céu com a terra. 

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Um Fragmento Astrológico de Óstraca (Poesia)

Óstracon Demótico
(O. Chicago M. H. 3377)

Um Fragmento Astrológico de Óstraca

Num estilhaço se gravam
As estrelas e o destino
Num acidente de oleiro
Se cinge um futuro
Escrito no barro quebrado
Não se perde o papiro
Na sorte do comum
E abreviando se guarda
Uma vida inteira


19/05/2018 RMdF


Fonte da Imagem: Neugebauer, O., Demotic Horoscopes in Jounal of the American Oriental Society, Vol. 63, Nº 2, 1943, pp. 115-127

terça-feira, 19 de junho de 2018

As Asas do Anjo da História (Poesia)

Klee, Paul, Angelus Novos, 1920.

As Asas do Anjo da História 

E como um tornado de luz
Ou redemoinho de sombra
Tanto o humano seduz
Como o povo assombra
Sem seu trilho ou paisagem
A história é cinza ou poeira
Ora vestígio ora miragem
Pra quem vence soalheira
Dos vencidos sombra extensa
Dos escribas mais que alegoria
Outros julga e de si não pensa
Mas de ninguém os pecados expia

E como memória ou vendaval
Assim segue o anjo a sua via
Como vivente não se torna actual
E no seu coro ou seguia ou caia
Sem sua vontade o vento avança
Ora com força ora com graça 
Das asas vem toda a esperança 
E do humano se afasta a barcaça 
Sobre os estilhaços não há morte
Com o progresso tudo é passagem
É a fé de quem nos dados tira a sorte
Dos outros não deixa de ser viagem

Assim vai o anjo da história 
Assim chega o vendaval
Para o humano sombra ou glória
Da humanidade um outro mal

13/05/2018 RMdF

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Os Fragmentos são Poeira

Fuseli, John Henry, The Artist Moved by
the Grandeur of Antique Fragments
, 1778-79.

A actualidade é estar no tempo sem ser tempo, é soprar para longe as fagulhas da história e inspirá-las quando o vendaval as devolve. Viver a actualidade é como caminhar numa ponte sem lugar sobre o abismo da memória, sem olhar para o sol que cega, para a luz divina.

&

A hipótese do nada é sempre melhor que a pretensão do todo, pois a hipótese alberga o seu contrário e a pretensão tem por por hábito negar tudo o que está para além de si. Nessa arrogância da certeza, acaba sempre na ignorância.

&

Não foram os grilhões que mataram o feminino, foi a vergonha. Aqueles que o calcaram, pisando a luz e a aura, destruíram a harmonia dos opostos.

&

O livro que vive no tempo é aquele cujo desfolhar permanece na frequência do acaso. Sem sentido, encontra-se o único sentido e por livre vontade firmamos-nos no não-lido, no vislumbre de uma palavra solta.

&

O mistério segreda a luz, o enigma solve e resolve.

&

A guerra é essa força que ignorante avança e destrói e oprime, negando a palavra e o texto. A guerra nem sempre é armada, por vezes, serve-se apenas da intolerância.

&

A actualidade é o presente a validar o passado, é um abeirar-se das suas ruínas, um acto que se estende no tempo, no limiar do abismo.

&

Os mitos não morrem, adormecem, repousam entre o sonho e a imaginação, à espera de um novo despertar. O mito não teme a razão, mas sim um longo esquecimento, um sono profundo.


&


Quanto maior a sabedoria, maior será a tormenta. E a tormenta é a via única para a felicidade. Já a ignorância conduz à dormência e a dormência é o caminho para o prazer, pois este luta contra outra, embora sem nunca a vencer.

&

A arrogância e a vaidade intelectual desejam a sabedoria, mas deitam-se sempre com a ignorância.


Fragmentos Escrito entre 2017 e 2018 RMdF

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Os 7 Sistemas de Termos da Astrologia Antiga (7): Yavanajātaka



   A tabela de Sphujidhava é, segundo Pingree, a mais simples e, embora não exista registo dela no ocidente, deriva de fontes egípcias e gregas (1976, II: 216). Este defende também que todos os autores indianos seguiram este modelo, indicando-nos as seguintes referências: Mīnarāja, 1, 22-23; Satya, citado por Utpala em Brhajjātaka, 1, 7; Parāśara, Pūrvakhanda, 3, 5; Varāhamihira, Brhajjātaha, 1, 7 e Laghujātaka, 1, 10; Kalyānavarman, 3, 20; Vidyānavarman, 3, 20; Vidyāmādhava, 1, 17; Gunākara, 1, 18; Jyotishprakāśa, citado em Jyotirnibandha, p. 59; Pseudo-Prthuyaśas, 1, 19; Vaidyanātha, 1, 13; e Mantreśvara, 1, 19. Pingree estabelece, desta forma, uma tradição em torno deste sistema de termos. Ora esta ideia está intimamente relacionada com o valor que este atribui ao Yavanajātaka, considerando-o o texto sânscrito da união dos conhecimentos astronómicos e astrológicos da cultura greco-egípcia e indiana-védica mais antigo. 

   Na edição de Pingree, baseando-se sobretudo na informação do cólofon, os últimos três versos do Capítulo 79, denominado Horāvidhih, concluiu-se que o Yavanajātaka, ou seja, A Horoscopia dos Gregos, era uma versificação de Sphujidhvaja de uma tradução em prosa de Yavaneśvara de um texto grego, provavelmente alexandrino. A versão de Sphujidhvaja dataria de 269/270 E.C. e a tradução de Yavaneśvara seria de 149/150 E.C (1976, I: 3). Convém antes de mais referir que o termo Yavana, que está na base do título da obra e do nome do tradutor original, designa grego, num sentido etimológico próximo de iónico. Pingree defende também que Yavaneśvara e Sphujidhvaja, designados pelo título rājā, eram homens que exerceram alguma forma de poder nas colónias gregas nos domínios de Kshatrapas Ocidental. Os Śakas ocidentais, embora tenham uma origem indo-cita, foram contaminados, como aliás foi todo a área geográfica entre a Macedónia e a Índia, pelo império de Alexandre Magno e a cultura grega. Ora essa influência estendeu-se no tempo. Pingree afirma inclusive o Jyotisha deriva dos conhecimentos do império aqueménida e, posteriormente, dos do império de Alexandre (1973: 1-13). 

   O Jyotisha (astronomia/astrologia) é um dos seis vedangas, ou seja, das seis disciplinas que auxiliam o estudo e a compreensão dos Vedas, sendo as outras Shiksha (fonética), Chandas (prosódia), Vyākarana (gramática), Nirukta (etimologia) e Kalpa (instruções rituais). Dentro do Jyotisha existem, por sua vez, três ramos (skandhas): horaśkandha, horoscopia; samhitā, astromancia, semelhante à do Enūma Anu Enlil sumério; e ganita, teoria astronómica de origens greco-babilónicas e desenvolvidas pelas obras astronómicas do tempo de al-Bīrūnī (Pingree 1978, I: 5). No entanto, seria errado concluir que o Jyotisha deriva exclusivamente de fontes externas. A cultura indiana exerce, por seu lado, um influência predominante, como aliás o próprio Pingree reconhece. Estas relações são contudo importantes para demonstrar que o conhecimento, neste caso o conhecimento astrológico, não pode ser compartimentado de forma separá-lo do seu todo, pois deve ser sempre considerada a interacção entre os povos e a transmissão cultural. Não podemos portanto concluir que o desenvolvimento da astrologia se deve apenas uma herança ou uma raiz, daí que a integração histórica das doutrinas astrológicas seja tão importante. 

   Desde os anos 70 que a edição de Pingree tem sido a referência para o estudo do Yavanajātaka, todavia, a análise das suas fontes, um microfilme do manuscrito Kathmandu I 1180, conhecido por N, escrito em folhas de palmeira no início do Século XIII, tem levado algumas questões. Bill Mak, através de Michio Yano, tomou conhecimento de um manuscrito alternativo do Yavanajātaka que põe em causa as conclusões de Pingree a partir do cólofon (2013: 4). Segundo Mak, Pingree baseou-se num microfilme de má qualidade de um manuscrito bastante danificado, o que o levou por diversas a extrapolar a interpretação textual. Ora o novo manuscrito nepalês, identificado como Q, permite retirar outras conclusões. No que à datação diz respeito, Mak defende que a composição de Yavanajātaka se situa entre 22 E.C. e o início do século VI, sendo, todavia, provavelmente, dos séculos IV a VI (2014: 1104). Face a esta datação, a progenitura do Yavanajātaka de outras obras posteriores Jyotisha torna-se assim questionável. Mak afirma inclusive que o Vrddhayāvanajātaka de Mīnarāja é anterior ao Yavanajātaka, dado que Pingree, que o colocou no século IV, traduziu o prefixo vrddha como aumentado e não como antigo (2014: 1103). É também de notar que a obra do erudito Varāhamihira, Brihajjātakam, do século VI, não revela qualquer conhecimento do Yavanajātaka, pondendo-se pois especular que a circulação do texto seria muito limitada e que só depois de Varāhamihira é que se expandiu. Por outro lado, Mak duvida da tese dos dois autores e acredita que possam ser apenas um (2013: 16), pois refere que Bhāskara, no seu comentário ao Āryabhatīya, cita duas verso 55 e atribui-o a Sphujidhvajayavaneśvara e que Utpala, em todas as citações do Yavanajātaka, designa Yavaneśra como seu autor (2013: 16, n.43). 

   O aspecto é mais relevante, seja qual for a datação ou qualquer que seja o autor, é que o Yavanajātaka, bem como as outras obras similares, demonstra a influência greco-egípcia na astrologia indiana, particularmente no que concerne aos termos. O sistema descrito pelo Yavanajātaka é também um reflexo dos princípios fundamentais que regem todos os sistemas. No entanto, neste caso, a sua base conceptual ou teórica sustenta-se na distinção entre signos ímpares e pares, masculinos e femininos. A distribuição dos termos é constante, variando apenas segundo essa distinção formal. Naturalmente, não existe neste modelo uma preocupação com os totais planetários. Acerca deste sistema, o Yavanajātaka, na edição de Pingree que é a única de que dispomos e sendo o mais fiel possível à tradução inglesa, diz o seguinte: "Nos signos ímpares, cinco graus (constituem os termos) de Marte, cinco (os) de Saturno, oito (os) de Júpiter, sete (os) de Mercúrio e cinco (os) de Vénus; nos signos pares, a sua ordem é a inversa" (1, 42, Ed. Pingree, Vol. II, p. 4, trad. do inglês). Observa-se portanto uma valorização de Júpiter e do conjunto central de termos, contrariando o imperativo dos primeiros termos. Mercúrio também sai reforçado em número de graus. Por outro lado, Vénus tem aqui a sua qualidade de benéfico algo diminuída. Já os maléficos dominam os primeiros dez graus nos signos masculinos e os últimos dez, nos signos femininos. Em resumo, este modelo, à semelhança daqueles que seguem as triplicidades, apresenta uma grande coerência formal, mas não o potencial do sistema egípcio e do sistema ptolemaico. 

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Os 7 Sistemas de Termos da Astrologia Antiga (6): Ptolomeu


   O sistema de Ptolomeu, praticamente sem adeptos durante a Antiguidade, foi aquele que imperou sobretudo após a Alta Idade Média, primeiro em alguma astrologia árabe e depois na Europa Cristã. Este é o modelo expresso por William Lilly e seguido por grande parte dos astrólogos tradicionais contemporâneos. No entanto, os termos aqui apresentados diferem em alguns elementos daqueles defendidos por Lilly. O modelo aqui transcrito segue a lição de Heféstion de Tebas, que nasceu a 26 de Novembro de 380 E.C. e que completou o seu livro, Apotelesmatika, em cerca de 415, cerca de dois séculos e meio após a morte de Ptolomeu. Heféstion, no Capítulo 1 do Livro I, que contempla uma das mais completas descrições dos doze signos e a mais extensa descrição dos decanatos egípcios, inclui o esquema dos termos egípcios e ptolemaicos. 

   A questão dos termos de Ptolomeu deve-se sobretudo ao facto da recepção do Tetrabiblos se sustentar em manuscritos tardios. O manuscrito mais antigo data do século XIII e existem dois ou três do século XIV, destes só um é completo. A maioria dos manuscritos é dos séculos XV e XVI. Este constrangimento no número de manuscritos foi compensado pelo manuscrito do século X da Paráfrase de um Pseudo-Proclo, datada entre o século V de Proclo e o período bizantino e traduzida por Allatius, à qual se juntou um texto em grego anónimo, um comentário ao Tetrabiblos, atribuído também a Proclo e publicado em 1559 por Hieronymus Wolf. No caso da língua inglesa, até à tradução de Robbins (1940) todas as traduções seguiram a Paráfrase. O problema, na verdade, não está na fidelidade da Paráfrase ao texto de Ptolomeu, pois, exceptuando o caso de ter sido escrita num grego mais simples e acessível, o seu conteúdo está muito próximo do original. No entanto, na questão dos termos e, em especial na tabela de termos, a Paráfrase apresenta uma dupla atribuição de termos: uma principal, em caracter maior, e outra supra-escrita, em caracter menor (Houlding: 270-1). Esta opção, que resulta provavelmente ora da ambiguidade do próprio sistema de termos, ora da inconsistência das fontes, levou a que existisse uma necessidade de escolha, de modo a fixar um sistema passível de ser posto em prática. É por essa ordem de razões que existem tantas variantes nos termos. 

   O modelo preservado por Heféstion obedece, em primeiro lugar, a um critério de antiguidade e de maior proximidade temporal ao autor. Deve-se salientar que a sua Apotelesmatika serve de compêndio para a astrologia antiga, pois preserva, numa primeira ordem, as obras de Doroteu de Sidon e de Ptolomeu e, numa segunda ordem, um vasto conjunto de referências, de autores como Nechepso e Petosíris, Critodemo, Anúbio, Antíoco de Atenas, Antígono de Niceia, Trasilo de Mendes e muitos outros. Torna-se assim compreensível a preferência pela sua lição. No entanto, a preferência tem também um critério substantivo, visto que, tal como Houlding refere no seu artigo, as escolhas de Heféstion têm uma maior adequação aos pressupostos metodológicos de Ptolomeu. Ao modelo de termos expresso por Heféstion correspondeu também uma tradição. A astrologia árabe, embora não siga as suas indicações à letra, conservou a sua herança. É nessa linha conjunta de Ptolomeu e Heféstion que encontramos a tradução árabe do Tetrabiblos de Hunain ibn Ishaq (809-873 E.C.), a qual serviu de base à tradução para latim de Plato de Tivoli, em 1138. Nesta tradição árabe, temos também a tradução anónima de 1206 e o Comentário do século XI de Ali ibn Ridwan, conhecido por Haly e traduzido no século XIII por Aegidius de Thebaldis. Estas referências são importantes para a questão dos termos, pois a tradição árabe dos termos ptolemaicos, seguida na Europa Cristã por Guido Bonatti, via Plato de Tivoli, revela algumas diferenças daquela que culminará em William Lilly. As tabelas comparativas podem ser encontradas no artigo de Houlding.

   Ptolomeu coloca este sistema no fim de uma linha argumentativa, iniciada pela exposição crítica do sistema egípcio e desenvolvida pelo sistema caldeu. Porém, este sistema não surge como sendo da autoria de Ptolomeu e, apesar das inconsistências apontadas, não deixa de dizer que o sistema egípcio é o mais comum. Já sobre a génese daquele que ficou conhecido como o seu sistema, Ptolomeu diz o seguinte: "Contudo e sem mais demora, encontrámos uma cópia de um manuscrito antigo e muito deteriorado da sua [termos] ordem e quantidade e que, ao mesmo tempo, apresenta a tabela de graus das já referidas natividades e do valor das somas, o qual se encontra em concordância com a disposição dos antigos" (I, 21, 1127-1132, Ed. Hübner, trad. do grego). Do manuscrito referido por Ptolomeu não existe qualquer registo ou referência, o que leva a crer que a história do manuscrito pode ter sido um artifício textual para escapar à dificuldade de justificar filosoficamente o sistema de termos. Por outro lado, a descrição do manuscrito revela uma grande semelhança com o sistema egípcio, pois a questão dos totais planetários apresenta-se como determinante, o que aliás é observável nos termos retidos por Heféstion. À excepção de um pequeno erro nos termos de Sagitário, onde existe uma inversão no número de termos de Marte e Vénus, os totais planetários concordam com os do sistema egípcio. Desta forma, podemos concluir que toda a edição dos termos ptolemaicos que não reproduza estes totais está errada. Plato de Tivoli e Guido Bonatti, ao discordarem de certas disposições de Heféstion e ao corrigi-las, acabaram por prescindir do imperativo dos totais. Convém lembrar que estes totais servem para os anos planetários, os quais, por sua vez, são utilizados para o cálculo da duração da vida, logo, embora Ptolomeu afirme que não compreende a razão por detrás dos termos egípcios, está consciente do seu potencial.

   Ptolomeu define do seguinte modo as premissas metodológicas para criação de um modelo termos: "Para a sua ordem dentro de cada signo (dôdekatêmórion), são consideradas as exaltações (hypsómata), as triplicidades (trígôna) e os domicílios (oikoi). De um modo geral, a estrela que no mesmo signo tiver duas destas regências (oikodespoteías) é colocada em primeiro lugar, mesmo que seja um maléfico (kakopoiós). Porém, se não se obtiver esta condição, os maléficos serão sempre colocados em último, os regentes das exaltações em primeiro, de seguida, os regentes das triplicidades e depois os regentes dos domicílios, seguindo um após o outro a ordem dos signos. Mais uma vez aqueles que possuem duas regências devem ser preferidos face àqueles que, no mesmo signo, possuem apenas uma" (I, 21, 1140-1149, Ed. Hübner, trad. do grego). As directrizes são bastantes claras, todavia um critério no método proposto esteve na origem de uma confusão que persistiu no tempo. Ptolomeu diz o seguinte: "Contudo, uma vez que não são  atribuídos termos aos luminares, Caranguejo e Leão, que são os domicílios do Sol e da Lua, são distribuídos pelos maléficos por não terem a sua parte na ordem, Caranguejo a Marte e Leão a Saturno, nos quais preservam o seu lugar na ordem dos signos e dos domicílios (oikeía)" (I, 21, 1149-1154, Ed. Hübner, trad. do grego). Foi esta atribuição que gerou a mais significativa diferença nas tabelas dos termos ptolemaicos. 

   Os primeiros termos de Leão foram consagrados, pela maioria, a Saturno. Heféstion, por seu lado, entrega-os a Júpiter. A tradução de Robbins segue essa via e Houlding justifica-a (287-8 e 295-8). No entanto, quase todas as edições desde a Paráfrase seguem a opção de Saturno. O erro parte de duas falsas premissas: uma confusão na dupla atribuição da Paráfrase e uma má interpretação dos textos de Ptolomeu acima traduzidos. A Paráfrase coloca Júpiter na posição de destaque e Saturno no lugar supra-escrito (Houlding: 271). À primeira vista, Júpiter seria a escolha certa, mas a maioria dos tradutores e astrólogos preferiram Saturno, falsamente guiados pelo texto do Tetrabiblos. Ptolomeu está somente a colocar Marte e Saturno nos domicílios de Caranguejo e Leão e não a atribuir-lhes ad hoc os primeiros termos de cada signo. A tradução da palavra oikeía é parte do problema, pois Robbins (1940) e Schmidt e Hand (1994) optaram por traduzi-la por "adequado" ou "próprio de", todavia, tal como o Liddell & Scott refere, a palavra indica também os signos domiciliários. Desta forma, podemos concluir que Marte, em substituição da Lua, é o domicílio de Caranguejo e Saturno, em substituição do Sol, é o domicílio de Leão. O caso de Caranguejo é mais fácil de compreender, visto que Marte já é o regente da triplicidade, tendo portanto precedência sobre o regente do domicílio, todavia, ao tornar-se também o domicílio acumula as tais duas regências que permitem a um maléfico ocupar o primeiro lugar. O caso de Leão é menos óbvio, mas também não deixa grande dúvida. Júpiter é o regente nocturno da triplicidade, logo, na ausência do Sol e porque Leão não tem exaltação, toma o seu lugar. Saturno não se poderia qualificar, pois, segundo as regras estabelecidas por Ptolomeu, o regente da triplicidade tem valor superior ao do domicílio e, por outro lado, para os maléficos ocuparem os primeiros termos teriam de reunir duas regências, algo que Saturno não reúne. Alguns ainda poderiam argumentar, dizendo, tal como Doroteu determinou, que Saturno é o regente co-participante ou cooperante da triplicidade, todavia, não existe qualquer referência à utilização desse tipo de regente na atribuição dos termos, pois se assim fosse, outros termos teriam de ser alterados. Desta forma, a lição de Heféstion é aquela que deve ser seguida.

   Quanto às sugestões propostas por Houlding, indicadas entre parêntesis na tabela, devemos fazer uma avaliação individual. Existe uma que já foi falada e que deve ser sempre aceite, pois determina os totais planetários, ou seja, a inversão dos totais dos graus de Vénus e Marte, passando Vénus a reger 6° e Marte, 5°. Depois é também razoável a inversão de Mercúrio e Vénus, e respectivos graus, nos signos de Caranguejo e Leão. Este pode até ser um erro, pois os glifos destes planetas em manuscritos antigos são ainda mais semelhantes que aqueles que hoje usamos. Quanto às outras sugestões, deve existir alguma reserva, pois comprometem os totais planetários, todavia a justificação que Houlding faz, signo a signo, deve ser considerada (299-305), pois consolida a preferência pela tabela de Heféstion. Em suma, o contributo de Ptolomeu para a doutrina dos termos é incontornável e, quer se siga o seu sistema ou qualquer um dos outros sistema, o seu esforço de teorização deve ser sempre estudado.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Os 7 Sistemas de Termos da Astrologia Antiga (5): Sistema por Triplicidade Caldaica ou Hermética


   Este é o segundo sistema a estabelecer-se pela ordem das triplicidades e o primeiro a manter uma constância variável dos graus de cada conjunto de termos, pois somente o sistema de Critodemo preserva uma constância invariável, ou seja, todos os conjuntos de termos têm um arco de 5°. No Tetrabiblos, Ptolomeu apresenta este sistema da seguinte forma: "O método caldaico é, de facto, mais simples e bem mais plausível, embora não auto-suficiente no que concerne à regência das triplicidades e à sequência das quantidades, podendo-se, no entanto, compreende-lo facilmente sem o recurso a uma tabela" (I, 21, 1088-1092, Ed. Hübner, trad. do grego). Existe, nesta passagem, um esforço para distinguir este sistema do egípcio, ou seja, Ptolomeu pretende que este modelo esteja, em termos da correcta adequação ao seu propósito formal, entre o egípcio e aquele que ele próprio vai apresentar. Não deixa, todavia, de referir as suas debilidades. Na verdade, este sistema é bem menos consistente que aquele que Vétio Valente apresentou, não só na atribuição do número de graus aos conjuntos de termos, como também ao nível das dignidades e da sua influência na tabulação.

   Ptolomeu confere a autoridade e a autoria deste sistema aos caldeus, sobretudo pela importância da sequência dos planetas. No entanto, como Pingree refere (Yavanajātaka, II: 214), a ordem dos planetas no período selêucida (312-63 A.E.C.) era Júpiter, Vénus, Mercúrio, Saturno e Marte, logo semelhante à utilizada nos termos egípcios. Foi, por outro lado, no período neobabilónico (626-539 A.E.C) que a ordem Júpiter, Vénus, Saturno, Mercúrio e Marte, a sequência da primeira triplicidade deste sistema, foi utilizada. Esta questão da ordem dos planetas serve também para mostrar que a comum ordem caldaica, Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio e Lua, com base nos dados que possuímos, não é nem caldaica, nem de grande antiguidade, será porventura uma criação do século II A.E.C. e uma consequência da troca de conhecimentos resultante do império de Alexandre, o Grande, o que também levanta algumas dúvidas acerca da certeza absoluta de um geocentrismo. No entanto, a questão dos planetas é também levantada por Vétio Valente, quando diz: "Para mim não me parece acertado o que alguns propõem a respeito dos termos das sete esferas enquanto 8, 7, 6, 5 e 4 (e mais não existe harmonia nessa escolha), mas de outro modo seria se fosse de acordo com os domicílios, as exaltações e as triplicidades" (III, 6, 20-22, Ed. Pingree, 1986, tradução do grego). Esta passagem foi a que serviu também para introduzir o sistema de triplicidade por segmento, mas, no sistema em agora em análise, o problema de Valente é a relação das sete zonas (heptázônon) e o número de graus dos conjuntos de termos. Valente critica a artificialidade do modelo 8, 7, 6, 5 e 4, mas, na verdade, também não se aborda aqui a heptázônon, pois o modelo exclui o Sol e a Lua, coisa que o sistema expresso por ele, em alternativa, não fazia.

   Vétio Valente usa, por outro lado, a fórmula 8, 7, 6, 5 e 4 para legitimar a origem deste sistema, pelo menos esta é a tese de Pingree (Yavanajātaka, II: 214). O excerto em causa refere o seguinte: "Se elaborares a profecção (perípaton), deves consultar as unidades horárias (hôriaíois) [8, 7, 6, 5 e 4] ou se recorreres ao ano ou mês solar, então deves contar do Sol em trânsito até à Lua natal e igual distância a partir do horóscopo, assim como eu próprio retive de Hermeias" (IV, 29, 14-17, Ed. Pingree, trad. do grego). Nesta passagem, a atribuição de Pingree não é imediata, pois relacionar a palavra hôriaíois com o sistema de termos pode parecer forçado. Por um lado, o termo em causa, devido ao facto de uma hora, uma unidade, ser também convertível em um grau, pode indicar qualquer sistema de divisão da eclíptica, da monomoiria aos decanatos, passando pelos termos e a dodecatemoria, mas, por outro lado, a relação entre a soma planetária dos termos e os anos e os ciclos planetários pode, de facto, indicar o sistema de termos. A certeza sobre esta tese é frágil, todavia, é preciso salientar que Valente é dos autores que melhor preservou as tradições anteriores e, tendo em conta que a autoridade sobre a doutrina das profecções é claramente atribuída a Hermes, podemos extrapolar, sem prejuízo e com base nos indícios textuais, para o sistema de termos. 

   A comparação entre os dois sistemas de termos baseados nas triplicidades permite que se conclua que este sistema revela um maior número de inconsistências. As debilidades que se destacam, até mais que a constância dos graus, são sobretudo a regência das triplicidades e o recurso aos segmentos. A exclusão do Sol e da Lua obrigou este sistema a eleger uma regência das triplicidades sustentada nos domicílios, em vez de uma regência que conjuga exaltações e domicílios. A inclusão, por outro lado, de uma regência por segmento para a terceira triplicidade resulta das próprias debilidades do sistema. Na primeira triplicidade, na ausência do Sol (domicílio de Leão e exaltação em Carneiro), Júpiter é apresentado como regente por ser o domicílio de Sagitário. Na segunda triplicidade, na ausência da Lua (domicílio de Caranguejo e exaltação em Touro), Vénus é o regente por ser o domicílio de Touro, embora nesta triplicidade a Lua, por razões óbvias, teria sempre de ser o regente nocturno. Na terceira triplicidade, Saturno é o regente diurno por ser o domicílio de Aquário e estar exaltado em Balança e Mercúrio é o regente nocturno por ser o domicílio de Gémeos, o que torna as inversões de regência um pouco artificiais, embora coerentes. Na quarta triplicidade, por exclusão de partes e por ser o domicílio de Escorpião, Marte é o regente diurno e nocturno. É a soma de todos estes aspectos que permite distinguir as intenções de Ptolomeu e Vétio Valente ao apresentar este sistema. O primeiro pretender introduzir o seu sistema de termos, apontando as incongruências dos outros sistemas, e o segundo pretende, por um lado, referir a superioridade formal do sistema de termos por triplicidade por si enunciado e, por outro lado, legitimar como hermética a sua doutrina das profecções. Independentemente da razão, este é um sistema que merece sobretudo uma avaliação comparativa.